Livorno, 04 de agosto 1998

Num transatlântico. E nós não estamos sur l’Atlantique. Mar Mediterrâneo, rumo Córsica. O cinzeiro lotado. Dutch Royal, a cerveja. Amendoins. O diário do Chet Baker. Marguerite Duras, que eu disse a Beat que deve ser lido com calma e pausa. Talvez tenha sido, junto com Edith Piaf, uma das mulheres mais de voz e alma da França. Conheci Dimitri, um menino que mora “près Marseille”; diz  que o pai tem origem ítalo-greco: entre ortodoxia e polenta da nonna. Nasceu em Bordeaux, abençoada terra dos vinhos.
 

                     Bastia, 04 de agosto de 1998

Já na ilha, fomos batalhar a Rue de la Poste, nosso hotel com mesmo nome. Perto do Porto Velho. Descarregamos o que era necessário e fomos pra Vieux Port, que é bonito  de noite com as luzes e as barcas. Renoir deve ter passado por aqui. Dizem que Bastia, que vem de “Bastilha”, espelha Gênova. Eu, como não conheço Gênova, fica só a impressão de que Bastia é única. Não se parece com nada que eu vi antes. Tudo, nada é igual, areia ou grão de sal. Por coincidência, temos de novo o Gal Acústico, que acho, foi a Garbe que deu pra gente. Ali tem quase tudo de melhor que a Gal canta, inclusive Vapor barato, do Wally Salomão, entremeada com um som do Zeca Baleiro, de voz quente. Tem Melodia, Herbert. Bonito que só.
 

                      Calvi, 05 de agosto de 1998.

Fomos parar aqui, onde nasceu, dizem, Cristóvão Colombo, que se encheu o saco de ficar ilhado e foi pra outros continentes. Não vi tanto charme em Calvi. Só uma loja da rapaziada, com aves, papagaios, jóias, tatoos temporários, e como fundo, um som do Chet com um fio de voz. E um spaghetti aos frutos do mar, em abundância, sem comedições. Fartura. Let’s go. A vegetação vai mudando. Em certos lugares, é baixa; em outros, árvores mais altas. A estrada vai ficando cada vez mais estreita, e a cada curva, você vai tendo vários sustos escandalosamente bonitos. Chorei ao ver um penhasco que dava prum mar azulão besta. Azulaço. Daí pensei em escrever uma carta pro Josua, dizendo mais ou menos isso: “Agora entendo Ícaro e o seu desejo de voar. Boeings. Asas. Ultra leves. Sonhos. Territórios que o Coração pode tocar”.
 

                     Galéria, 06 de agosto de 1998.

Stop. Depois de quilômetros, é bom armar a barraca. Um camping arborizado, motos, carros, bicicletas, alemães, holandeses, franceses. Chegamos aqui ontem, mais ou menos às 4 da tarde. Jantamos spaghetti com lagosta e um peixe maravilhoso. Veio até o mistral, o vento, pra gente conhecê-lo. da varanda, vê-se o mar e os céus ofereceram um espetáculo com vários raios. Feito laser. Rainha dos Raios. A gente aplaudia. Dans mon île. Agora eu penso: quantas ilhas? A primeira foi a Ilha do Mel. Floripa. São Francisco do Sul. Brissago, no Lago Maggiore. Isola Bella. Dei Pescatori. Burgazada, Turquia.
 

                     Galéria, 07 de agosto de 1998.

Depois de uma noite de chuva, o mar índigo blue. Lagartear ao sol. Sessão champagne à tarde e um giro pela cidadezinha que tem 350 habitantes, segundo o guia. Entendi o que falava (Verlaine ou Rimbaud) de cemitério marinho. Dali, a gente viu um penhasco cor de ocre. Tinha até uma árvore com as raízes de fora, como se dissesse que resistirá até a última raiz. Galéria, estamos indo. Direção: Porto e Ajaccio.
 

                     Cupabia, 07 de agosto de 1998.

Pensei: as oliveiras de Israel. Irlanda. Mas Córsica não é nada igual neste mundo. Fiquei mudo diante das “Les Calanches”, que são rochas esculpidas pelo vento. Daí chegamos a Ajaccio e levamos um susto e corremos dela como o Diabo foge da cruz. Terra de Napoleão Bonaparte e basta.
 

                     Cupabia, 08 de agosto de 1998.

Não esquecer: a fantástica engenharia das teias de aranha. Alimentamos uma, perto da barraca com moscas e vespas. Em Galéria, tinha uma vespa que roubava a gelatina do patê e levava pra rainha. Não achei ainda meu anel de pirata, talvez em Bonifacio ou Propriano. Dizem que o litoral perto de Porto Vecchio é o mais bonito. Aqui o mar é manso, cristalino. Talvez no Pacífico ou Caribe existam iguais. O Hawaii seja aqui. Não esqueça: o Canto Polifônico da Córsica. Córsica é quadrifônica. Tem até o som das folhas de uma árvore, que imita a chuva. Chico Buarque ainda canta, num bar de Cupabia, dizendo que esta moça tá diferente. Talvez a musa inspiradora já é uma senhora, mas como a música não tem tempo, ela vai continuar sendo eternamente uma moça.

Allumer les feux. Acender os fogos. Acender os faróis. Iluminamos, então. O encanto da língua francesa. Quando eles dizem qualquer coisa mesmo a mais banal, parece ter saído de um texto. Teu olhar blasé me deixou tonto. Zonzo.

Por aqui também tem uma cidade que se chama Zonza. Zonza, zanza nua, noite de lua cheia.
 

                    Bonifacio, 09 de agosto de 1998.

Em ritmo de Gal, fomos parar na charmosíssima Sartène, cafè de la Victoire. Ruelas estreitas, pedras, cenas. É aí que rola na Semana Santa, uma procissão famosa, com as pessoas encapuzadas. Devoramos o “Corriere della Sera”, e vimos o que rolou na África. Eu me deliciei com a produção de imagens da “Coté Sud”, maravilhosa revista de casas.

Pé na estrada, fomos a Bonifacio batalhar um camping e se chama U Dolce Far Niente. Aumentamos as estrelas: são 4. dormimos agora num jardim de oliveiras. Um canto charmoso, com pedras no fundo, árvores que fazem balé. Curiosa é uma oliveira, que, mesmo caída, continua verde. Embriaguez de uma noite? Perdida de amor pelo vento?

Fiz uma colheita de coisas: sementes azuis quase violetas, musgos, caracóis, galhos de folhas vermelhas.

Bonifacio é linda, todos querem ter o prazer de uma noite ou um dia com ela. Mulher de porto. Dengosa. Cheia de cheiros.

Não sei quando, mas pensei: todos, sem distinção, quando nascessem, deveriam ter o direito assegurado pela Constituição, de viajarem pra Córsica.
 

                    Bonifaziu, 10 de agosto de 1998.

Cortiça quer dizer liège. E são tantas florestas aqui na Córsica. Imagens que marcaram: Les Falaises à noite, a lua cheia batendo no mar, perto do farol. Illuminations. De novo, Rimbaud.
 

                    Bonifacio, 11 de agosto de 1998.

Daqui, de novo na estrada, em direção Porto Vecchio. Stop em Rondinara e depois, Santa Giulia, uma mar maravilhoso e tranqüilo. Winsurf, rapaziada bonita. À noite, um rolê pelo supermarché Géant, que é um delírio na seção de peixes, patês  e queijos.
 

                  Porto Vecchio, 12 de agosto de 1998.

Encontrei meu anel corsário. Bem perto da praça, onde a gente tomava cerveja bière à la pression e poire. Foi aqui, no restaurante Roi Theodore que a gente teve um jantar dos deuses, com a famosa sopa de peixe, Boullabaise. Depois do jantar, embriagados, entramos numa igreja, onde rolava um concerto de violinos de Paris. Vivaldi.

Córsica se associa a cerâmica, porco selvagem, Obelix, lã, tapeçaria, cortiça. Ensacados. Oliveiras. Cheiros. Rola até uma história de que um corso, mesmo anos longe   da ilha, e de olhos vendados, sabe dizer, só pelo olfato, onde é Córsica. De arrepiar.


Tuti Maioli Neto

 

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