MINHA CABEÇA
ESTÁ VAZIA
“(...) meu amigo poderoso,
as coisas vão levar volta,
quem sabe o que eu vou passar?”
(Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência
LXI)
A única forma de chegar a alguma parte é caminhar dentro
de nós mesmos. Ia pensando nisto enquanto caminhava pelas ruas do
bairro marroquino de Barcelona até chegar ao Bodega Fortuny, meu
boteco favorito e também de outros poetas, atores e viajantes de
pouco êxito. Abri o Diário e escrevi sobre a lúdica
imagem de um altar na entrada de um restaurante mexicano, homenageando
assim o Dia dos Mortos, ou melhor, as almas das crianças mortas.
Havia cores generosas no altar, frutos suculentos, flores mimosas. Um toque
estrangeiro magnânimo num país que não sabe o que fazer
com os seus milhares de imigrantes. Havia acabado de participar de uma
passeata na Plaza Catalunya, unido a búlgaros, hindus, árabes,
paquistaneses e latino-americanos. Ao ritmo de tambores, gritávamos:
“¡Papeles para todos! ¡La Ley de Extranjería es una
porquería!”. Passamos por Jaume I, Via Laietana, Paseo de Isabel
II, Plaza Pahu e avenida de Marquès de l’ Argentera, para finalizar
em frente a sede da Delegação do Governo. O meu corpo e a
cabeça empenhados em levar a famosa doutrina de William Blake: “É
necessário abrir as portas da percepção”. Quando a
noite derramou-se sobre minhas recentes lembranças, tomei o rumo
de casa para preparar-me para a noite do Halloween. Esta festa é
o último sintoma da norte-americanização silenciosa
de Europa, da adoção de um modo e uns costumes de vida que
ninguém impõe diretamente e aceitamos com prazer, da mesma
forma que o Brasil faz celebrando os shoppings centers. Halloween tem origem
nos rituais pagãos dos países celtas, como Grã-bretanha,
França e Alemanha. Era a festa do fogo e da morte, da noite em que
as almas regressavam as suas antigas moradias. Só nos finais do
século XIX, os Estados Unidos se apropriaram da idéia, incluindo
símbolos agora clássicos como abóboras em forma de
máscaras e velas. Disposto a esvaziar a cabeça, a conhecer
defuntos, resolvi entregar-me à noite que crescia. Nada de pensar
naquela noite na fome da África, na dívida latino-americana,
no ódio entre israelitas e palestinos, no desemprego crescente do
meu país, em todas as injustiças que chicoteiam o mundo.
Vesti-me totalmente de negro, coloquei óculos de sol, fumei um porro
e tomei uma dose dupla de Jack Daniel’s sem misturas, nem mesmo gelo. Não
entendo como os espanhóis misturam todas as bebidas, desde uísque
com fanta laranja a cerveja com limonada. Entrei na escuridão noturna
que soava ameaçadora, sinistra e eterna. Estava disposto a ser naquele
momento igual a essa gente cujo egocentrismo delirante a leva a ser indiferente
a tudo e a todos à sua volta – principalmente aos bons sentimentos.No
metrô, um moço bonito de cabelos longos e azulados, olhos
melancólicos e uma elaborada tatuagem da Virgem Maria no braço
esquerdo, olhou--me com uma rápida curiosidad e sentou-se ao meu
lado. Ele abriu um grosso livro de Dostoiévski, e pelos cantos dos
olhos vi sublinhado na página que lia:”A natureza humana como um
pesadelo sem jusficativa”. Era um rapaz muito interessante, interessante
na impressão causada logo ao olhar-me, de pele pálida e calça
apertada desenhando o sexo e as coxas. Pouco antes de descer na estação
Urquinaona, escrevi num pedaço de papel, entregando-o para ele:”A
apreciação estética suaviza o espírito humano”.
Enquanto as portas fechavam, vi que ele sorria e seus olhos cintilavam.
Sem deixar a estação, sentei no banco de espera, e cinco
minutos depois ele voltava no próximo trem. Sem abrimos a boca,
fumamos outro porro e seguimos para a festa. Era uma disco agradável,
divertida, com um manancial de energia evidente.
Comecei a julgar positivamente tudo ao meu redor. E não queria
julgamentos, necessitava da cabeça vazia. O desconhecido que me
acompanhava trouxe dois uísques e durante uns dez minutos dançamos
ao som de Morcheeba, Massive Attack e Pulp. Eu estava sob a noite, sob
o mundo oculto, numa vida de fatos vencidos e enigmas falsos. Uma vida
de adeus. A multidão parecia compreender que não há
volta, que a vida se chama nunca mais e os sonhos são flores altas,
de seiva e aroma de pequenos desejos, vagorosas saudades e silenciosas
lembranças. Uma gorda gótica surgiu no palco e cantou uma
melodia que dizia que a vida é complicada e os indivíduos
também, porém devemos expressar-nos com simplicidade, terminando
repetindo diversas vezes o refrão: ”Se pára para ver uma
folha cair, verá o outono”. Logo fui jogar sinuca com uma estonteante
coreana de 19 anos, Myra, enquanto o desconhecido procurava um vendedor
de êxtase. Eu não queria, preferia ficar no uísque
até o amanhecer. Pensei em como as drogas são interessantes
e como as pessoas vulgarizam-nas num consumo desenfreado, nada criativo.
Há pessoas que julgam poder saber mais e mais sobre porros, cocaína
ou qualquer outra droga, consumindo-as dia-a-dia. Sim, se sabe, porém
nunca se pode saber tudo sobre qualquer coisa. É preciso leveza
e nenhuma ansiedade para sobreviver nas “noites dos mortos”. Eu nunca me
tornei um dependente, um viciado, um interessado nas drogas, por viver
rodeado de livros, de correspondência, de objetos que são
o rio do tempo, da experiência. Sou viciado na memória.
Quero estar uma ou outra vez com a cabeça vazia, para conhecer
o segredo essencial que está no ser humano sem saídas. Estou
num mundo dividido, e sou um homem dividido porque um é a realidade
de onde está. O mundo é sutil, brutal, inexplicável.
Despedi-me da coreana de calça negra de escamas sintéticas
de cobra e do jovem onírico que me fez companhia toda a noite, com
beijos gulosos e redentores. Beijava-os como sedento de conhecimento e
revelação. Pura epifania. Peguei o primeiro metrô do
dia, disposto a observar personagens anônimos com dignidade de caráter.
A cabeça já não estava vazia. Deitei-me desnudo, abraçado
à minha gata siamesa, Genet, sabendo que nunca seria vencido pelo
reino dos disfarces, das conveniências de classe; nunca seria seduzido
pela superficialidade dos famosos, pela indiferença dos poderosos,
pela mediocridade das massas. Antes de dormir de uma vez, sonhei acordado
com o vulto do belo adolescente tatuado. Ele disse antes de desaparecer:
“Tudo isso vai e vem sem que possamos fazer nada, como também não
podemos borrar do infinito o sol, a lua ou as estrelas”.
Antonio Júnior
(de Barcelona)
«
Voltar