TODOS IGUAIS TODOS DIFERENTES

        Antes de viajar para a República Tcheca, Lourdinha, uma boa amiga, pediu-me apenas duas coisas: o Menino Jesus de Praga e uma garrafinha de neve. E não foram estes os únicos desejos inusitados, Eder, o rapaz das letras esmeradas, reivindicou nada mais nada menos que uma das torres de sua capital.
        De Janaúba a Praga, passando por Belo Horizonte, São Paulo e Frankfurt, foram mais de 20 horas de viagem. Pousei no meu destino final às 9h00 do dia 14 de fevereiro de 2001. Eu estava ansiosa para descobrir o frio próximo a zero. Precisava senti-lo tocar a minha face, acostumada a manhãs ensolaradas e temperaturas médias de 30 graus, para ter certeza de que ele era possível.
        Era. Suportei-o mal debaixo de meias de lãs, calças, blusas, luvas, cachecol e chapéu.
        Íamos, nós, três brasileiros — Rui, Cecília e eu — participar de um seminário com jovens de cantos diversos do mundo promovido pelo Students Forum 2000, parte de um programa de incentivo a projetos sociais.
        Do aeroporto até Prohonice, um subúrbio de Praga, onde aconteceria o treinamento, tivemos que pegar um ônibus, dois metrôs e mais um outro ônibus. A primeira aventura aconteceu exatamente a espera do 363, nossa última carruagem, longe de ser encantada, que nos levaria aonde queríamos, simplesmente porque demorou, demorou e demorou. Seria fácil não estivesse o frio pretendendo congelar até nossas almas, a despeito do sol brilhando num céu azul claro sem uma só nuvem.
        Desde o instante em que me enxerguei em Praga, quis me sentir num país estrangeiro e não consegui. Os prédios e as casas, ainda que me parecessem, às vezes, casinhas de bonecas, eram feitas de matérias que me são conhecidas e nelas eu sabia que pessoas viviam ou trabalhavam com em qualquer outra parte do mundo há pessoas e seus lares e seus trabalhos e suas vidas enfim.
        Constatações óbvias de minha criança, mas que eu considerei iluminadas. As pessoas, por sinal, também feitas de carne e osso como eu e ao passar por elas eu percebia que algumas estavam alegres, outras apressadas para chegar a algum lugar, outras ainda preocupadas talvez. Contavam-me afinal através de seus rostos sobre emoções que são universais. Talvez até alguma delas pudesse perceber a minha cara de boba ouvindo aquela língua, para mim, com alguns signos irreconhecíveis, olhando para tudo, tentando me sentir numa terra estranha, coisa que não aconteceu.
        Inclusive, não cheguei a ter problemas com o fuso horário. Por muitas vezes, tive que tentar visualizar um mapa mundial para me lembrar que eu estava a milhas e milhas de minha casa. Logo eu, cujo senso geográfico não é dos melhores. Sempre sinto dificuldades para distinguir entre o leste e o oeste: onde mesmo nasce o sol?
        A espera do 363 enxergamos uma menina. Uma moça pequena, cujas tranças enrolavam-se num extraordinário coque - pelo menos assim a Cecília achou e eu concordei — com uma mala ao seu lado. Como entre ônibus que iam e vinham, ela continuava a espera, chegamos à conclusão que deveria estar indo para o mesmo lugar que nós. Então, eu e meu caótico inglês resolvemos fazer uma aproximação. Foi terrível. Ela não entendeu nada e balançou a cabeça negativamente com veemência enquanto eu lhe mostrava um papel onde estava escrito todos os nomes dos participantes do treinamento. Será que eu a assustei?
        E nossa carruagem - longe de ser encantada, é bom lembrar — demorou mais. Houve tempo ainda de vermos o Dominic chegar. Mas nesse caso não houve dúvidas. Nos olhamos, nos reconhecemos e logo ficamos juntos e começamos a conversar.
        Quanto à moça pequena, àquela altura, eu conseguira descobri que era sim do nosso grupo e que era da Moldávia, por uma etiqueta que meu olho biônico e curioso enxergou em sua mala. Com a lista dos participantes em nossa mãos, soubemos que se chamava Elena. Mas não tive coragem de fazer outra aproximação. Ela não olhava, não nos fitou uma única vez.
        Quando, enfim, chegou o ônibus, o 363, a nossa última carruagem — longe de ser encantada, é bom lembrar — sentei perto de Elena e chamando-a pelo nome eu me apresentei. Mais tarde, em outras conversas, ela tentou me convencer que eu não a havia assustado, apenas não dissera algo que ela compreendesse. O que para mim ficou na mesma. Coincidentemente ou não, ao chegarmos no Hotel, descobrimos, Elena e eu, que seríamos colega de quarto.
        E eu ainda não me sentia num país estranho.
        Nesse mesmo dia, quase todos já havíamos chegado e tivemos uma noite de boas vindas. Os trabalhos só começaram de fato na manhã do dia 15. Éramos em torno de 25 pessoas, 19 jovens de cantos diversos do mundo - o Brasil foi o único a ter mais de um representante — 5 jovens facilitadores e Monika, também jovem, coordenadora do LTTC, o nome do Programa.
        Eram meninos e meninas da Croácia, Cazaquistão, Zimbabwe, Gana, China, Bolívia, Holanda, Noruega, Macedônia, Líbano, Vietnã, Estônia, Moldávia, Romênia, Hungria, Latávia e Brasil. Meninos e meninas da Argentina, Estônia, mais Romênia, Alemanha e Inglaterra, os facilitadores.
        Alguns desses países para mim lendários, como a Macedônia, cuja história perpassa praticamente toda a história da humanidade, e um outro recém descoberto, a Latávia.
        Praticamente desde o primeiro momento, eu vi em quase todos aqueles rostos alguém familiar. Pareceu-me que poderia encontrar qualquer um deles em uma rua do Brasil. A exceção de Peter e Piret, talvez. Peter, um indefectível inglês, e Piret, cuja combinação de cor de pele, olhos e altura nunca passaria imperceptível para nenhum de nós, brasileiros: alta, íris azul e branca como a neve, que por sinal, pela primeira vez eu vi.
        Apesar da dificuldade com a língua ter sido considerável - acentuada pelo meu pendor natural para o drama — e a comunicação em certos momentos ter acontecida cheia de pausas e pedidos para repetir a fala, ainda assim, eu não me senti num país estranho nem com pessoas estranhas a despeito de seus hábitos e visões diferentes do mundo.
        Visões estas, inclusive, que se mostravam às vezes construídas pelos mesmos caminhos e por instrumentos idênticos, como jornais e televisão. E costumamos esquecer, todos nós, o quão restritos e parciais eles são.
        Foi surpreendente para mim, por exemplo, que a pessoa mais alegre de todo o grupo fosse do Líbano, aquele país cujas notícias que recebo pela mídia contam apenas sobre guerras e dores e tristezas. Assim como não me surpreendeu que me perguntassem se no carnaval do Brasil andávamos sem roupas. Num metrô de Praga, num dia de passeio, enxergamos na página de um jornal uma foto enorme de uma mulata quase nua na tradicional festa brasileira.
        Diferente as comidas e os hábitos alimentares. Em Praga tivemos a oportunidade de experimentar vários temperos e receitas e, ainda, num certo dia, um surpreendente costume da República Tcheca: doce como prato principal.
        Diferente os sotaques, as danças, as canções, algumas visões do mundo, algumas crenças, mas o mesmo motor interno, a mesma essência, a mesma matéria.
        O mesmo boa noite em língua e gestos próprios.
        A mesma melodia em versões nacionais.
        A mesma música podendo ser cantada à la Brasil ou à la Líbano ou à la Gana.
        As formas, os exteriores, esses eram diversos e ricos e surpreendentes. Mas eu quis prestar uma atenção especial ao que nos era comum, como o riso e o riso pelas mesmas coisas, como o ter um projeto e acreditar na mudança de uma realidade. Ainda, montes de pequenas coisas como o mesmo estilo de roupa, como todos ligados pela Internet, como a McDonald's.
        Por tudo isso, em nenhum momento, me senti num país estranho.
        Elena, ao saber que eu gostava de histórias, contou-me um conto de Oscar Wilde, o Príncipe Feliz. Minha criança foi, então, agraciada.
        E Odília me tocou com sua voz. Roberto, Jerry e Florin com sua gentileza. Gilbert, o libanês, indiscutivelmente, com sua alegria.
        E Nora que me salvou algumas vezes com seu sorriso e o sorriso de Czez que parece abraçar o mundo.
        E Cecília anunciando Recife nos passos do Maracatu e da Ciranda.
        E Ditta e Dominic que aprenderam e dançaram passos brasileiros num piscar de olhos. Teria ficado com inveja, eu, uma brasileira com pouco molejo, não tivesse, antes, ficado encantada.
        E Marko, que ao se queixar comigo, nos últimos dias do treinamento, que não havíamos conversado quase nada, anunciou termos sete meses até o próximo encontro, em outubro, para o encerramento do programa e e-mails, não é?
        E todas as máquinas fotográficas e as poses internacionais, tiradas em séries, sempre se podia congelar o sorriso um pouco mais. E a câmara de Dunja captando-nos furtivamente. E ainda uma outra, insuspeita, flagrando-nos em momentos que não conceberíamos, como uma pequena guerra, pelo que mesmo?
        E a neve que nos levou em grupos para brincar nas ruas e na praça como se crianças fôssemos.
        E a pergunta que mesmo que não fosse, deveria ser universal: "como você se sente?"
        E os mesmos olhos que brincaram e estiveram em Praga, entre suas ruas e jovens de cantos diversos do mundo, estes, os meus, os mesmos que voltam para os interiores do Brasil.
        Não eu a mesma, certamente.
        Trabalhar o meu projeto na perspectiva de tornar um sonho uma realidade foi um passo imensurável. Eu que o tinha quase pronto e acabado em minha cabeça, ao pensar e ao ser cutucada pelo meu grupo, o das artes — Odília, Dominic e Dunja com Ditta facilitando — revi tudo o que eu queria, mudei estratégias, cortei o que não era possível e reformulei os caminhos. Não foi tão fácil quanto escrever agora. Foi doloroso até, abrir mão do que eu acreditava perfeito, descer do céu à terra. Mas foi essencial.
        Como essencial a alma do projeto, que manteve o mesmo desejo do princípio: trabalhar auto-estima e cidadania através do resgate da cultura, da história oral e da contação de histórias. Mudou apenas a forma.
        E isso é tudo para que serve a forma, para tornar real uma possibilidade e eu me sinto imensamente feliz em perceber o quão rica é a capacidade do ser humano para criar possibilidades em visões ou em hábitos ou ao buscar uma expressão sua ou de sua comunidade ante o mundo.
        O treinamento terminou no dia 25 de fevereiro e, em verdade, muitas e mais foram as aventuras vividas nesse período. Há ainda as pessoas de quem não falei, Jorg e Viko e Anh Thu e Whyn e Janes e Anyars e Anuar, que, por sinal, amou um licor de jenipapo que levei, apesar de ter tomado-o a largos goles, enquanto eu tentava lhe explicar que seria melhor saboreá-lo sem pressa.
        Mais gente, mais alma, mais histórias do que cabem nessas páginas que não devem ir muito além do que já foram. Afinal, isto é apenas uma crônica de viagem para os amigos poetas da Blocos. Foi a Leila quem me pediu e como a saudade era muita, era tudo o que eu podia tentar lhes oferecer: algo verdadeiramente interessante e rico e intenso que vivi recentemente.
        Há muito tempo não escrevo. Contudo, como falar dos meus estados de encantamento e surpresa continua sendo um ato absolutamente necessário à minha alma e como me faltam outros talentos, escrever é meu único meio, não resisti ao pedido de Leila.
        Nenhuma torre coube em minha mala — e olha que ela era bem grande — e admirei tanto a neve e tanto nela e com ela brinquei que me esqueci de engarrafá-la.
        Na última noite em Praga, porém, eu e Cecília fomos a um supermercado e na fila do caixa, uma senhora tcheca, que estava logo a nossa frente, nos ouviu conversar em português. Em nossa língua, imediatamente, perguntou se éramos brasileiras e puxou de sua bolsa um papel com a foto do Menino Jesus de Praga com uma oração em português atrás.
        Essa viagem e tudo o que nela vivi, dos pequenos aos grandes momentos, me deixou uma profunda impressão: a de que sou filha do mundo, todos somos, não importa se esse mundo é Praga ou algum interior do Brasil. Não importa se esse mundo está no norte ou no sul, leste ou oeste do planeta. Continuo a admirar o nascer do sol, sempre.

Kelly Cristine Ribeiro


 

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