Nas estradas de Minas Gerais: o diário de bordo de Marília

            Num passeio de carro,  muito bem acompanhada (isto interfere na percepção da  cronista), percebo, nas estradas mineiras, além das plantações  de café e banana, um objeto atraente no acostamento. Peço que o motorista pare o carro e encontro um bloco de anotações.  Na capa, o título: "Diário de bordo" e na contra-capa, o nome Marília. Lembrei-me logo de "Marília de Dirceu" e resolvi seguir, nestes dias de abril, o roteiro turístico do pequeno caderno. Seguíamos para Belo Horizonte, mas na primeira página do bloco, em letras fortes, havia DIVINOPÓLIS.
            Claro. Como não pensei nisso antes? A cidade de Adélia Prado, próxima da  represa do Rio São João... Fiquei imaginando em qual d'aquelas casas residia a grande poeta, queria conhecê-la... Seria na rua Amazonas, Paraíba ou Ceará? Estava respirando o mesmo ar e esperava uma osmose poética (risos). Como  não acontecia, conheci a Universidade de Divinopólis e seguindo o diário de bordo, fui, agora sim, para Belo Horizonte.
            Na estrada, uma barraca de frutas e o jovem vendedor interrompem o trajeto. Ele vendia uma fruta que eu nunca havia visto chamada "articum", parecida com a fruta pão, mas você poderia abrir e comer... Enquanto meu companheiro comia a fruta, eu observava o diário de bordo. Na segunda página, a seguinte anotação meio manchada :"estátua branca com dois corpos femininos nus... museu projetado por Oscar Niemayer... Pampulha!".
            Em Belo Horizonte, eu só tive tempo de conhecer o café e o cinema Humberto Mauro, no Palácio das Artes...  Lembrei-me das minhas aulas de cinema e de um documentário poético sobre os trabalhadores com verdadeiros cantos do trabalho desse precursor do cinema brasileiro, chamado Humberto Mauro. Tive problemas em Belo Horizonte: bateram em Santiago (este é o nome do meu carro), assim não quis visitar outros pontos turísticos e fui imediatamente para Sabará.
            Linda Sabará... Os seixos rolados pelas ladeiras... o Chafariz do Caquende... A cor predominante das faixadas: Azul-Marinho. Nesse universo azul-marinho, conheci construções de 1713 da cidade que se chamava Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabarabuçú. Amei o Teatro Elizabetano, mas imaginei o sofrimento do povo negro que não podia se misturar com os brancos e entravam por uma escada separada de toda a estrutura do teatro e assistiam aos espetáculos distantes dos seus senhores. Nas igrejas, muito ouro e muita arte barroca do primeiro e terceiro períodos  com ornamentos como folhas de videira, cachos de uva e pelicano esculpidos nos altares ou colunas toscas com ornamentos menos trabalhados. Na igreja de Nossa Senhora do Carmo, construída em 1762, a fachada esculpida por Aleijadinho, com três anjos bochechudos de cabelos enrolados. Eu vi centenas de anjos nas igrejas mineiras, foi tanto anjo que continuo sonhando com esses querubins e serafins até hoje... Quem gostar desses seres alados pode seguir o diário de bordo da Marília...
            E por falar no diário de bordo, cheguei em Ouro Preto... Mais de dez guias ao redor do carro e um jovem chamado Zé Carlos, na janela, apresentando seus serviços como guia turístico... Ele foi muito simpático como todo o povo mineiro e aceitou seguir o diário de bordo da Marília...
            Na entrada da casa, uma placa cinza indicando: "Aqui viveu Thomaz Antonio Gonzaga. 1782-1788.". Na sacada dessa casa, em direção à ponte dos suspiros, um casarão enorme guardando lembranças e saudades. O amor proibido imortal nas ruas de Ouro Preto e no casarão de Marília, um vazio... A Escola Estadual Marilia de Dirceu não funciona aos domingos, dia em que os jovens podem descansar e namorar na ponte dos suspiros... Confesso que tive medo de seguir novamente o diário de bordo... Guardei-o na mochila...
            Viajei para Mariana, cidade vizinha de Ouro Preto, e conheci a casa onde morou Afhonsus de Guimarães. Nessa casa/museu, você pode encontrar os objetos pessoais do poeta como um par de alianças e várias fotos. Nas igrejas, muitas pinturas de Manuel da Costa Ataíde, entre elas, uma pintura próxima a uma pia batismal feita de pedra sabão, em que a figura de Jesus Cristo aparece com um corpo feminino. Conheci também as aquarelas do artista plástico vivo mais conhecido da cidade de  Mariana: Zizi Sapateiro, 86 anos. Assisti ao DIVINO concerto do órgão executado por Elisa Freixo. Este órgão foi construído em 1701 e montado pelo pai de Aleijadinho na Basílica da Sé, em 1752. Toda vez que lembro desse dia, parece que estou escutando Pastorale BWV 590 de Johann Sebastian Bach.
            Retornei para Ouro Preto e a curiosidade levou-me a abrir novamente o diário de bordo, encontrado na estrada. No meio do caderno: " Museu Aleijadinho".  Resolvi seguir essas anotações e encontro, numa sala, uma mesa de madeira, antiga... Fiquei encantada e aproximando-me do objeto uma  indicação em letras miúdas: "pertenceu a Marília de Dirceu". Vocês não sabem, mas eu sou muito medrosa... Corri do museu e decidi ir embora.
            Meu companheiro implorou para que eu continuasse a viagem, mas sem olhar para o diário de bordo. Então, eu viajei para Congonhas e tirei fotos dos doze profetas, depois, segui para Tiradentes. Nesta cidade, conclui que nunca se deve desistir de um projeto. Se tivesse desistido da viagem, eu não teria conhecido a cidade mais bonita de Minas Gerais. Lá, amigo leitor, você pode andar de charrete e conhecer a casa de um dos inconfidentes, além de comer caqui retirado do pé, numa propriedade particular chamada Lagoa dos Encantos. O dono deixa entrar e caminhar em volta do lago, mas cuidado com o "pitbull"...
            Finalmente, retornando para Campinas, no meio da estrada com plantações de café e bananas, abro a mochila com o diário de bordo... Na última página... O medo apoderou-se de mim. Joguei o diário de bordo no meio da estrada. Se você quiser saber o que encontrei, procure pelo diário de bordo da Marília, nas estradas mineiras e descubra...

Antoniella Devanier


 

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