O gozo de férias nem sempre redunda em descanso, repouso ou prazeres. Estive mais uma vez em Piumhí, a mais ou menos 60 km. das nascentes do rio São Francisco (que já está secando). Minha permanência nesta cidade durou quase dez dias. Mais uma vez constatei o imobilismo sócio-cultural desta centenária cidade do sertão sudoeste de Minas Gerais.
Algumas esquinas ostentam sinais de trânsito enquanto cruzamentos sêxtuplos como o da Toca do Coelho (nos quais você nunca deixa de ser surpreendido por bicicletas que transitam normalmente em estreitíssimas “calçadas” — por motos, por carros, por caminhonetes e caminhões ou peruas, mesmo que tente olhar em todos os sentidos). Mulheres bitelas e bitoladas, com longos cabelos e corpos avolumados, em seus pesados corpos e em seus movimentos às cegas, ocupam as estreitas “calçadas” com carrinhos de bebês que entoam segmentos de músicas clássicas à medida que ultrapassam ou caem nos buracos e falhas destes passeios públicos. Também crianças com patinetes e bicicletas de médio e de pequeno porte (e também adultos com bicicletas a si apropriadas) em ruas e “calçadas” pontilhadas por pedras pontiagudas avançaram sobre mim várias vezes. Nuvens de poeira correm pelas ruas da cidade de noite e de dia. A Prefeitura local prefere asfaltar as ruas sem qualquer tipo de calçamento (onde teoricamente viveriam os mais pobres), mas ao mesmo tempo diz que, querendo ou não, são estes moradores que pagarão pela pavimentação. Enquanto isso, ruas como a Dr. Eduardo Heringer, onde temos padaria, depósitos de gás, água mineral, farmácia e até posto de saúde (rua que oferece serviços básicos) continua até o dia 23 de Abril de 2001, em grande parte, sem asfalto. O melhor serviço público oferecido a esta população sertaneja parece ser o da coleta quase que diária do lixo cotidiano. Mas, a miséria, algumas vezes, nem permite que muitos moradores tenham sacos de lixo cheios para colocar nas calçadas e contar com tal coleta. Alguns proprietários de barracos ainda nem rebocados e recentemente construídos no antigo Morro do Marruaz (hoje bairro Bela Vista) terão de pagar até R$44,00 de IPTU (valor proporcionalmente muito superior ao cobrado de moradores de residências padrão classe média da cidade de Ribeirão Preto – SP!... O valor do IPTU-2001 cobrado pela Prefeitura de Ribeirão Preto ao imóvel/ casa que alugo- com várias dependências com armários embutidos, garagem, suíte e lavanderia não chega a R$54,00!... E, diferente do que ocorre em algumas das citadas ruas do ex-morro do Marruaz, a rua em que resido tem iluminação pública, água encanada, rede de esgoto e pavimentação com sinalização restaurada recentemente). (...) A ascensão e a queda de fazendeiros, comerciantes e de agiotas marca a monótona dinâmica do mercado local. Jovens, antes desempregados, compraram ou contrataram a produção queijeira altosanfranciscana revendendo-a no interior paulista e até no Paraná. Estes revendedores de queijos até há poucos anos atrás repassavam aos agiotas (pagando-lhes altas taxas de juros por tal repasse) uma boa parte dos cheques obtidos durante tais revendas em distantes cidades do estado de São Paulo e paranaenses. O desemprego humilha e submete a maioria da população a sub-empregos e a condições de penúria social. Cheiros de carniças agridem os narizes mais sensíveis. Muitos trabalhadores braçais impõem-se dupla jornada: primeiro trabalham para fora e, depois que chegam do emprego, trabalham em suas casas fazendo barulho e mais poeira, incomodando vizinhos. A crônica policial piumhiense registra um número crescente de casos de violência doméstica (principalmente contra mulheres e crianças). O tráfico de drogas, assédios e violências sexuais, acelerados processos de desestruturações familiares com numerosos divórcios e desquites (ou casais que arrastam seus conflitos por décadas a fio), assaltos e roubos, violência no trânsito (principalmente contra pedestres), violência nas escolas, uma tensa superlotação na Penitenciária do bairro Colina e uma apática e displicente juventude sem causa são outras manifestações que evidenciam os descaminhos das gentes que hoje vivem nas proximidades das nascentes do rio São Francisco.
Cinismos, mentiras, desrespeitos de vários teores ou tipos, fingimentos, sacanagens, velhacarias, desonestidades, hipocrisias permeiam as relações inter-pessoais entre vizinhos e entre parentes também naquelas plagas sertanejas mineiras.
Cheguei a encontrar numa mercearia piumhiense uma lata de leite-em-pó Ninho (da Nestlé) sendo vendida por R$4,85. Diferenças enormes entre os preços de um mesmo produto em estabelecimentos comerciais do mesmo porte chamam a atenção dos que prezam os valores que custosamente recheiam seus bolsos.
Restaurantes considerados “chics” servem refeições e “marmitex” com conteúdos de gosto discutível. Reuniões de empresários que exploram empreendimentos turísticos ensejam discussões sobre estratégias de atração de turistas a esta região onde a seca e vários costumes predatórios da natureza vão lançando ao passado a existência de rios (que há pouco tiveram até os seus leitos desviados do curso natural por ambições de garimpeiros), poluindo, minguando ou secando cachoeiras, córregos e até o reservatório da usina de Furnas, devastando cerrados (recentemente ocupados e explorados por “modernos” fazendeiros paulistas atraídos pelas falências dos tradicionais fazendeiros da região). À beira da rodovia MG-50, que passa ao longo da cidade, temos vários postos de gasolina, ”show-room”s de revendedores de piscinas, casas de diversões íntimas e restaurantes. Algumas ruas da cidade ostentam out-doors com publicidade de lojas e de outros tipos de empreendimentos comerciais e industriais nesta pequena cidade de 25 mil habitantes que um dia o farmacêutico e escritor Adolfo Lasmar (de Campo Belo-MG) chamou de “um acampamento de aventureiros”. Talvez porque descendentes de jogadores que aventuravam colocar em jogo os diamantes que garimparam nos córregos e rios do sudoeste mineiro.
Algumas vezes, o culto romântico de certos aspectos bucólicos ou a “curtição” de uma vaga e atrasada “mineiridade” pode nos custar caro. No ano passado, em Julho, um médico de posto de saúde, mesmo sabendo que eu sou diabético, me receitou uma injeção de glicose!
Sitiantes e fazendeiros decadentes abandonaram seus cães no cemitério municipal (onde podem ter ossos à vontade ou onde dormem sem perspectivas entre os túmulos e carneiras). Algumas vezes são tratados pelos moradores das adjacências do cemitério com seus restos de comida. De vez em quando, as autoridades, querendo mostrar serviço, desencadeiam ondas persecutórias contra estes cachorros que não têm culpa de terem sido abandonados por seus donos e nem são responsáveis pelo fato de terem nascido porque seus pais não foram previamente esterilizados ou vasectomizados.
Recentemente um casal “gay” comprou uma carneira neste cemitério. Talvez queira provar aos que se tornarem cientes do seu intento que nem a morte o separará. Aos homossexuais da região de Piumhí foram reservados serviços domésticos, de embelezamento e cuidados corporais, diversões e lazer e de costuras. Tal divisão sexual do trabalho me sugere semelhanças com o estabelecido há milênios em tribos indígenas brasileiras ou em culturas africanas e européias. Grande parte das mulheres que trabalham fora de suas casas ainda se dedica a afazeres considerados tipicamente femininos (exemplo: lavar e passar roupas e faxina). As crianças ficam brincando em casa ou pelas ruas, ou até partem para a mendicância. E até para negócios ilícitos. Claro, aliciadas ou usadas por adultos.
No “circuito” das artes plásticas piumhienses predominam as pintoras pretensamente “acadêmicas”, um artesanato rústico ou a confecção de miniaturas, maquetes e brinquedos toscos. A literatura contemporânea local destaca as contribuições de Nhô Thomé (literatura de cordel), a poesia pós-romântica e semi-erudita de Mozart da Paixão, as crônicas de Hebe Bruno e a poesia intimista e trovadoresca de Rita Marciano Mourão (laureada, legitimada e imortalizada pela paulista e insossa Academia Ribeirãopretana de Letras). A música piumhiense no ano 2001 é aquela veiculada pelas rádio-emissoras da região (quase sempre pseudo-sertaneja e nitidamente comercial), as marchas e trechos eruditos entoados em procissões pela quase extinta Lira de São José, algumas tentativas isoladas de se fazer rock e MPB e nada mais. Arquitetonicamente pouco ou nada restou de interessante ou atraente em Piumhí: dois ou três casarões (cujas restaurações são tecnicamente discutíveis), o prédio do Grupo Escolar Dr. Avelino Queiroz (que há vários anos pegou fogo) e, talvez, uma parte do conjunto arquitetônico conhecido como Capela da Cruz do Monte (ou de Nossa Senhora da Abadia). Teatro e espetáculos operísticos só se algum culto piumhiense se deslocar até Belo Horizonte, Rio, São Paulo ou até a Europa ou América do Norte. Os esportes são o futebol dos pobres, a pesca e alguns esnobismos pseudo-esportivos dos ricos e a natação dos que freqüentam o Piumhí Tênis Clube (entidade que atravessa uma sensível crise administrativa). As lojas de móveis vendem móveis de compensados e de estilos modernosos de gosto convencional ou discutível. Várias butiques espalhadas pelas ruas centrais dessa sertaneja cidade mineira revelam a existência de uma orgulhosa, ambiciosa e pretensiosa classe média, ávida por aparecer nas colunas sociais e em fotos coloridas estampadas no semanário Alto S. Francisco. Essa mesma cidade não tem sequer uma casa de espetáculos teatrais e nem cinema. Ou se assiste televisão, ou se ouve rádio ou se morre de tédio ou de alcoolismo pelos violentos botecos da cidade.
À noite, o céu piumhiense (principalmente na periferia dessa cidade mineira) apresenta-se mais estrelado que o das grandes cidades e até se vê com uma certa freqüência a queda de satélites e de minúsculos asteróides ou meteoritos. Dizem que tais cenas cósmicas não devem ser apontadas pelos que as assistem sob pena de verem nascer berrugas em várias partes dos seus corpos. Grilos e sapos, em épocas chuvosas, nos entoam verdadeiras e apascentantes sinfonias rurais, periféricas ou sertanejas. Há poucos anos atrás ainda percebíamos ondas de maus cheiros provenientes de pocilgas ou chiqueiros instalados em vários pontos do perímetro urbano piumhiense. Agora, nestes tempos de seca e poeira, muitos marimbondos-cavalo esvoaçam na nossa varanda dos fundos, na cozinha e até nos quartos da pequena casa que nos acolhe. Fico apavorado e peço a um senhor que destrua suas casas grudadas nos caibros da varanda de lavar roupa.
Uma amiga costureira não aceita o pagamento que tento acordar com ela pelo serviço feito na barra de uma calça nova que ali quis estrear. Insisto e ela concorda, com relutância, em receber pouco mais de R$1,00 pelo seu trabalho!... Ela me diz que eu mereço esta sua gentileza e que esta tarefa é tão ínfima que nem merece ser cobrada ou paga. Com a citação deste fato estou revelando a minha disposição em não cometer caracterizações ou apreciações generalizantes a respeito dos moradores de Piumhí – Minas Gerais. Admito a existência sofrida de muitas almas generosas e ricas neste império de mesquinharias e mediocridades.
Antes de sair em gozo de férias voltei a comentar com a professora Elza sobre a sensação de estar noutro mundo quando, no ano passado, viajei à Europa. Aí ela me disse que também aqui, por esse Brasil afora, temos muitos e vários mundos. Eu bem o sei. Mas, alguns nos fazem sofrer mais que outros. Não?
Sei que a aspereza ou a frieza solitária e até desesperada do homem europeu nos mostra que não existe paraíso neste mundo. Mas, às vezes, chego a admitir, que é preferível um mundo soturno e fechado do que um mundo viciado pelas intrigas, fofocas, competições destrutivas e outras atitudes cotidianas doentias e neurotizantes. Preconceituosas, hipócritas e tímidas. Partidas de faces das quais ecoam sorrisos amarelos e bafos de mau hálito.
Voltemos a Piumhi - MG. Ali, ao lado do analfabetismo, da miséria sócio-cultural, da miséria sexual, do autoritarismo ancestral e patriarcal ou machista, junto com séculos de catolicismo hipócrita, em meio a crendices, curandeirismos e benzeções vicejam inúmeras “igrejas” pentecostais, evangélicas, protestantes ou de classificação ou tipologia pouco conhecida e, quase sempre, acolhendo ex-camponeses emergentes da intensificação dos vários ciclos de êxodo rural. Entre estes ex-lavradores cito o Sr. Isoldino dos Santos, proveniente do Patrimônio da Lagoa dos Martins, que destina mensalmente dez por cento do salário mínimo de cento e cinqüenta reais que recebia até Março como trabalhador rural aposentado (dízimo) para a Igreja Universal do Reino de Deus, por freqüentar o templo da rua Santo Antonio, no centro da cidade alvo destes meus comentários. Isoldino gasta em certos meses até 80 Reais dos seus rendimentos com remédios para si e para sua esposa Eunice. Quando reclama com o seu Pastor sobre a sua pobreza e sobre as suas doenças e sobre seus escorchantes gastos com medicamentos, este sacerdote lhe responde que, se destinar com fé este dízimo ao Senhor, não precisará gastar esta avultada quantia com remédios. Deus o curará. Fico ainda mais chocado ao constatar que a cobrança deste “dízimo” não é feita apenas pela “Igreja” Universal do Reino de Deus, mas, sim, pela quase totalidade das “religiões”. Parece-me que a maioria do clero católico desta região tem um discurso populista ou esquerdista (por muitos classificado como “progressista”).
Na mais recente eleição municipal um dos candidatos ao cargo majoritário local adotou como jingle da sua campanha eleitoral aquela musiquinha que na letra de sua versão comercial trazia o seguinte e significativo fragmento: “Os de cima sobem e os de baixo descem....Pôt – pôt – pororô – pôt – pôt – pororô...” Lembram-se? Pois é... os fatos falam por si.
Numa conversa informal com um dos editores do único jornal de Piumhí, o semanário Alto S. Francisco, este jornalista reconheceu que as elites locais exploram durante o dia a população local e à noite se refugiam no condomínio de luxo das Escarpas do Lago (exaurido, ressecado ou pantanoso de Furnas) na vizinha cidade de Capitólio — MG. Ou seja, neste comentário, fica clara a conhecida constatação da irresponsabilidade avestruz das nossas elites. Claro!...
Enfim, em muitos aspectos, Piumhí é um tradicional museu a céu aberto, uma comunidade sem perspectivas, desalentadora e, há séculos, explorada e controlada por elites insensíveis, burras, desatualizadas ou, simplesmente, desumanas e irresponsáveis. Ponto final. Seja o que Deus quiser! Viva o constitucional e humano direito à livre expressão de idéias e de valores!... Pelo bem de todos e pela felicidade geral da Nação diga ao povo que eu continuo vivo, existindo, com meu coração pulsando com esperanças e fé. Tenho dito. O resto é o resto. Nem merece citação.
José Luiz Dutra de Toledo