Viagem a Maricá.

Queridos Amigos de Blocos,

Tenho vivido de expediente, como se diz... Um dia filo um computador aqui, outro dia ali e vou levando. Meus contatos com o mundo virtual têm sido bissextos e cheios de lacunas. Não posso ficar pendurada na rede tempo suficiente para ler todas as mensagens e participar das discussões. Em questões de Internet, time, indubitavelmente, is money, e não dá para ficar onerando meus gentis anfitriões.

Por isso é que acho que essa questão de vida rural tornou-se muito relativa nos tempos atuais: minha mãe e minha irmã Clélia, vivendo no coração do Rio de Janeiro, estão mais isoladas do que eu que, da roça de Floripa, tenho acesso até aos lares do Gabão. Ao mesmo tempo, não sofro de grandes preocupações com segurança, ou seja, curto as vantagens do progresso sem me submeter ao que ele tem de negativo.

Meu tempo de vivente no Rio de Janeiro já vai tão longe que, agora, quando venho de visita, fico um tanto amedrontada, esperando um perigo em cada esquina. Ao chegar a Maricá para visitar Leila e Urha, por exemplo, estava toda atrapalhada no orelhão, manejando ao mesmo tempo cartão telefônico, óculos e agenda para pedir que me fossem resgatar, quando percebi alguém muito perto demais de mim, dizendo-me alguma coisa. Morri de susto acreditando-me prestes a ser assaltada, mas era Urha que se havia adiantado ao meu chamado.

Depois do sobressalto inicial, relaxei rapidinho!... O casal sitiante de Maricá desperdiçou palavras recomendando que eu me sentisse em casa, pois sua atitude foi muito mais eloqüente. Lá, cada um faz o que quer sem nenhuma cerimônia. É bem verdade que isso implica em pertencerem anfitriões e visitantes à mesma tribo, senão não dá certo.

Nossos fusos horários são diferentes, o que foi facilmente administrado. Quando eu já estava tonta de sono, os dois preparavam-se para começar a trabalhar. Aí, eu acordava cedo e eles, claro, permaneciam dormindo. Mas, logo na primeira noite, fui apresentada a todos os utensílios de fazer café e encorajada a usar a cozinha. Madrugava noite fechada e, munida de minha caneca fumegante, dava as boas-vindas à luz e aos passarinhos, enquanto escrevia abobrinhas ou explorava a biblioteca.

Os dias de Maricá foram tudo, menos monótonos. Numa das manhãs, Leila e eu estávamos tricotando na sala quando Urha nos chamou lá fora para ver uma cobra. Pensando que ia encontrar uma minhoca aumentada, quase caí dura ao dar de cara com uma jibóia de metro e meio no mínimo. Um animal lindo, deslizando elegantemente pelo jardim após ter escapado de um terreno recém roçado. Seguiu-se a discussão sobre o que fazer com o bicho, todo mundo falando ao mesmo tempo — eu, os donos da casa e mais um pessoal que estava trabalhando por lá. Leila permaneceu corajosamente encastelada na varanda, de onde gritava ordens, recomendações e aflitamente evocava os céus. Finalmente, ficou decidido prender a cobra numa caixa de madeira para soltá-la outro dia longe da civilização, antes que virasse ensopadinho na mesa de alguém. Leila gritava:

— Ela vai morrer de fome!

— Esse bicho pode passar semanas sem comer! — respondia Urha.

— Escute aqui, você perguntou a ela quando foi que comeu pela última vez???

A outra preocupação de Leila era com a respiração do réptil dentro da caixa fechada, mas Urha dizia que entrava ar de sobra pelas quase inexistentes frestas entre as madeiras pregadas umas às outras. Tomara que ele estivesse certo... Não posso contar o fim da história porque vim antes embora.

Maricá é uma cidade simpática e com todo o jeito tranqüilo de interior. Tem belos prédios antigos e pelo menos um monumento importante, que é a estátua de Anchieta no local onde ele realizou seu primeiro milagre. Alguém sabia disso?... Fui levada lá por meus orgulhosos cicerones e admirei-me com o que vi: realmente uma bela estátua — sem cabeça.

— Ué, cadê a cabeça?! Perguntavam eles.

— Estava aqui!!! Diziam.

Acreditei, claro, e aproveitei a chance para exercitar minha imaginação reconstruindo mentalmente o monumento. É uma pena: nem um lugar sossegado como aquele escapa do vandalismo.

Aliás, dizem que Floripa é a terra do "já teve", mas acho que está perdendo para a concorrência neste quesito. Num passeio lindo que fizemos a Ponta Negra (depois eu conto), o barzinho onde pretendíamos comer peixe frito e tomar cerveja olhando o mar estava fechado. Já mortos de fome, pois passava das cinco da tarde, rumamos para Barra de Maricá com Urha voando baixo por cima dos buracos de uma estrada "de chão", como se diz na minha terra. Entrou resolutamente na rua à qual nos destinávamos mas, chegando à praia, não vimos nem sombra de restaurante. Enquanto eu pensava "eles endoidaram", Urha e Leila repetiram o mote:

— Ué, cadê ele???

— Homessa!... Reclamou meu estômago. A cabeça de Anchieta, vá lá que suma. Mas o restaurante também?!

Após um atento exame do local, entretanto, acabamos distinguindo os alicerces de construção num pedaço desbeiçado de calçada: tudo mais havia sido carregado pelo mar na última e recente ressaca. Seguimos em frente, quase desfalecidos. Acabamos conseguindo almoçar — ou jantar — num lugar muito agradável, com a Lagoa de Maricá aos nossos pés. Embora minha mãe ache o termo pouco fino, "entupimo-nos" de pastéis, trilhas fritas e vatapá, foi ótimo.

Em matéria de beleza, Ponta Negra não existe! E olhem que o metido casal ainda disse que o dia não estava dos melhores, etc, etc... O primeiro impacto é a visão que se tem do alto, antes de chegar à praia: quase 360 graus de horizonte marítimo, sem a interrupção de ilhas, a restinga, a lagoa e o canal. Este, entretanto, perde em beleza para o da minha Lagoa da Conceição, que ninguém nos ouça.

Muito tempo passamos curtindo em casa mesmo: conversas ao redor da mesa, fofocas na conta certa, confidências, risadas e cerveja para mim e Leila, porque Urha não bebe — ninguém é perfeito. Por outro lado, Leila não fuma — o que me confirma a tese. Eu, como hóspede bem educada, galhardamente acompanhava um e outro.

A tranquilidade só era substituída pelo estresse durante as refeições de Whisky, um gato persa amarelo, igualzinho ao meu Vincent, que só come quando um de seus donos senta-se no chão ao seu lado, implora e dá-lhe tapinhas no bumbum, que viram palmadas em raros momentos de impaciência. Fiquei com a impressão de que o felino é capaz de morrer de inanição à beira de sua transbordante tigelinha, caso não lhe dêem a atenção a que está acostumado.

Uma experiência muito interessante foi assistir novela com os sitiantes de Maricá, ouvindo seus abalizados comentários. Se por um lado, porém, é legal a gente sacar as imperfeições e méritos que o leigo não percebe, por outro abdica-se da benfazeja ignorância e conseqüente tolerância que tornam apetecíveis até cenas e desempenhos sofríveis.

Numa de suas mensagens à lista, Leila mencionou que, embora eu já tenha estado em seu sítio antes, apenas nessa visita mais recente houve tempo para um estreitamento de minha amizade com ela e Urha e a comprovação de que nossa convivência é fácil e gostosa. Para mim, assim foi.

Aliás, que Urha não me leia, houve uma tarde em que ele virou as costas e Leila e eu aprofundamos nossos papos — enquanto tomávamos cerveja, claro. Foi uma daquelas gostosas "conversas de mulheres", com direito a confidências e histórias antigas... Senti-me tão próxima dela quanto se a conhecesse desde criancinha. Eu iria embora naquele mesmo dia, à noitinha, mas fui convencida sem nenhum trabalho a ficar até o dia seguinte, o que me valeu um treino noturno para o apagão. Senti-me, então, completamente em casa, pois já venho praticando o exercício desde que me mudei para o Sítio. Na roça, pelo menos, não precisamos de elevador e temos direito a pirilampos.

Maria Emília Berthier


 

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