TODA LONDRINA

I
a rodoviária

digo que não conhecer a Londrina densa é pecado mortal. pois na Londrina me esbaldo e me sirvo da noite-Londrina para tecer extensas sagas: já conheço o teu centro, a tua parte antiga, as tuas muitas praças e alamedas e avenidas e vielas e esquinas frias. e mais: na Londrina existe um relógio de sol. quem já viu vai confirmar. fica próximo ao mistério alienígena da rodoviária de Niemeyer. e na noite louca é que o relógio marcas as horas. pois quando os ônibus partem na noite alta aquela parte exala um mistério quase bandido: o relógio soa então secreto , macambúzio. já a rodoviária é um caso à parte. quem de vocês conhece? do meio da estranheza circular da construção se ergue uma torre extraplanetária de mistério. nas escadas pode-se ouvir o retinir secreto de naves fazendo contato e no jardim central, de onde observo a torre elevando-se, passeia um senhor sorumbático, de olhar profético.
 
 

II
a avenida

digo que de dentro da Londrina densa escorre um mel. às dez horas da noite de um sábado, na avenida Higienópolis, é só o desfile de faróis que nos cega. em cada carro os namorados falam, as namoradas fazem que sim com a cabeça ou vice-versa. e no peito da avenida, o canteiro que divide as pistas, sopra um vento, um certo vento que me acalma e me põe dentro das vozes – o burburinho cresce – eu experimento um prazer insidioso, metálico.
 
 

III
a tarde

e na Londrina existe a tarde. sim, a tarde na Londrina arde feito papel em brasa. podemos quase ver o tempo escorrendo, cada instante é de uma nitidez insuperável. porém  a tarde da Londrina é mais tarde se estamos no Zerão.  um círculo de dois quilômetros onde se corre, as moças riem num sábado, os moços suam e aprovam. no meio do círculo uma depressão abriga quadras de esporte onde cada bola quica e atinge certeira a cesta, todos olham. mas são os eucaliptos. eles que me seduzem. pois se ousamos percorrer o Zerão na tarde aberta, percebemos que a lufada de vento que assanha as folhas é a mesma que nos assanha e assanha os moços, as moças. no Zerão a Londrina padece de um sossego alucinado e solto.
 
 

IV
a noite

vou contar-lhes sobre a madrugada da Londrina alerta. é que agora mesmo me encontro numa delas. eu já dediquei páginas e páginas à ela: qualquer dia lhes envio um texto meu chamado “O Documento Noturno” onde a noite-Londrina é dissecada e exposta ao atônito de todos os olhos. a noite londrinense ferve feito um óleo espesso. dizemos que percorrer Londrina à noite é uma experiência doida, tresloucada. não que seja muito perigoso. mas é de um delícia pânica. existem pequenas praças com luz mortiça. existem ruas longas com muros de hera, existe a beleza do lago – a noite aquática – o lago treme e nos traduz no seu reflexo uma Londrina toda nova, diluída, amaciada. a minha amiga querida Terezinha possui uma pequena chácara na beira do lago. eu me sento numa pedra, nos sentamos, e é aí que a noite da Londrina vive, se agiganta. e sorver um chá na margem é todo o prazer noturno que desejamos.
 
 

V
a noite louca

a avenida Tiradentes então se enche de mulheres da vida, a vida explode. num bar da parte antiga um homem diz uma palavra rude. a noite fatal da Londrina: as caras esguias, untadas pela noite nova, os quartos lacrados – suspiros – as casas trancadas onde só se ouve o ressonar das senhoras nas frestas. mas o farol do aeroporto continua desperto. é o facho de luz que eu avisto do último andar do meu prédio. a luz branca varrendo uma Londrina inteira de sonhos.
 
 

VI
a feira viva

e quem se atrever a observar o despertar da Londrina verá então a feira. ah, sou privilegiado: a feira é logo ali, na minha rua, às quintas e domingos. e nessa feira a vida escorre, cada feira é uma primeira feira, todos se animam a ir comprar uma fruta, um legume. e bem ao lado do cemitério São Pedro é que ela se instala. nas seis horas da semi-obscuridade cada feirante é um vulto: a feira fantasmagórica. mas lentamente o sol descobre a feira. e de repente, sem que ninguém nos avise, somos expostos ao turbilhão efervescente da feira, a feira vive uma vida que grita, a feira excita o olho com sua terrível lucidez de fruta exposta, os frangos giram num forno, uma maçã espera pelo fio dos meus dentes, uma senhora escolhe calma seus tomates escarlate – brilhantes.
 


VII
o meio-dia

e preciso absolutamente contar-lhes sobre o meio-dia da Londrina. mas o que me exaspera é que o meio-dia guarda em si uma essência inenarrável. nunca vou poder transmitir a vocês a força insana do meio –dia de julho. que é quando o vento meio gelado nos visita – uma senhora passa – um guarda apita para que saibamos que a vida transcorre, a vida nos escorre pelas palmas frias e seguimos alvos com o meio-dia inteiro nas retinas. queria deixar essa poesia inteira fincada sob o sol de inverno. terrivelmente frágeis sob o sol a pino. a delícia de andarmos provisórios pelo meio-dia – outra senhora passa – o sol esconde o seu rosto de flama. a garota que desce a ladeira invernal nem sabe da minha existência. nem tampouco sabe da loucura aberta do meio-dia que acontece agora. mas na ginga do seu corpo percebemos. no leve movimento dos quadris o meio-dia opera intervenções tão finas – e nem nos damos conta – ela desaparece na esquina e larga atrás de si seu leve rastro de avalanche.

Ygor Raduy


 

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