Lembro-me que foi em noites de lua cheia. Lembro-me da terra vermelha,
do pó de argila alinhado por cima do horizonte, das casas caiadas
sublinhadas a amarelo ou azul, do calor escaldante e do silêncio
alentejano. Era um silêncio cheio de ruídos renegados, grandes
carros descarregando pesados equipamentos de sons, os ramos dos eucaliptos
levados ao vento, os primeiros adolescentes empoeirados, a bizarra imponência
do "Franklin Freak Show". Silêncio à beira da morte, agonizando,
dizia dentro da minha cabeça. No dia seguinte, o espaço do
Festival do Sudoeste, o mais célebre do verão português,
a 4 km da aldeia de Zambujeira do Mar, abrigava cerca de trinta mil jovens,
peregrinos dos quatro cantos do país. Disse adeus as horas que corriam
lentas e despreocupadas, caminhando pela "cidade de lona". Era um mundo
paralelo, subterrâneo. Panelas sendo lavadas, ignição
nos isqueiros para mais uma ganza (*), folhas pisadas por milhares de pés,
a inevitável batucada de djambé: tam tam tam. Um recinto
com uma geografia e bairros próprios. Havia portões feitos
de ramos, havia grafittis: "Encontramos deuses no fundo de um copo de vodca".
Na entrada do camping, na Rainha dos Cachorros, ouvia-se death metal.
Pertinho, a todo volume, tocava-se o trance, um dos mais inaudíveis
gêneros sonoros da história da música. Vendedores de
cachorro-quente, de bifes fedorentos, de sorvetes. Uma trupe de malabaristas
hipnotizando com bolas de fogo. A euforia coletiva na Herdade da Casa Branca,
na quinta edição do mais sólido e famoso dos muitos
festivais que invadiram Portugal, começou na sexta com a esmagadora
presença de uma voz poderosa: P J Harvey. Look bruxa moderna, ela
surgiu em palco de vestido negro justo e botas longas de salto alto. Atuou
durante 70 minutos, numa viagem pelo seus mais diversos álbuns e
momentos, com canções como "Down by the water" e "Angeline".
Polly Jean Harvey é uma das figuras de referência natural
do rock feminino de 90, um rock de tons sujos e sensibilidade autoral,
se aproximando bastante da sonoridade de Patti Smith. Na mesma noite, a
multidão delirou com os Placebo e seu cenário geométrico.
Ainda assim, o que me vem à memória com mais nitidez é
o rosto expressivo de um homem belíssimo, deitado no gramado, logo
após o concerto dos Divine Comedy, no sábado.
Charro (*) na mão, abanando a cabeça como um headbanger
metaleiro, eu estava em tranze com o humor e o talento de Neil Hannon,
o divertido vocalista dos Divine Comedy. Ouvi-lo cantar "The Perfect Love
Song" foi inesquecível. O grupo mostrou ter vasta multidão
de fiéis, as pessoas gritavam e assobiavam depois do espetáculo,
pedindo mais uma canção. Então vi o estranho solitário
e caminhei em sua direção para o poder ver mais de perto.
Ao passar, percebi que estava mais drogado do que tinha suposto. Não
porque o rosto tivesse desfigurado, era mesmo um desses rostos imaculados,
ambiguamente imunes à mediocridade destes tempos rápidos
e vazios. Havia uma beleza quase mítica, que lhe incendiava a pele.
Regressei a barraca de cerveja, do outro lado do gigantesco gramado, tirei
minha garrafinha escocesa do bolso, tomei três tragos seguidos, e
abri o caderno de anotações.
As pessoas passavam falando dos Divine Comedy. Eu precisava escrever
um poema imediatamente, que poderia ser intitulada Ganimedes. Aliás,
as palavras que em mim ressoavam não eram palavras, antes uma série
de sensações psicodélicas. O meu sangue parecia hesitar
em circular. Então vi a gigantesca lua cheia e sob ela, o "estranho",
caminhando lento mas decididamente. Era alto, muito alto, magro, e eu não
tirei os olhos dele. Ele caiu, levantou-se, e eu não fiz qualquer
movimento. Sentou-se ao meu lado e pediu que eu dissesse de onde ele me
conhecia. Eu nada respondi, e queria falar com ele, disse para mim. Falar,
sem mais, fora do festival, fora desta escrita, fora do mundo. Fixei com
precisão os cabelos pesados e pretos contornando o rosto e os olhos
semi-fechados que, visto daquele ângulo, trazia a sombra de desencanto.
"Não tenho amigos. A gente normalmente é falsa comigo. Por
isso, prefiro falar com desconhecidos, contar meus segredos e ouvir o que
o outro tem para dizer, pois sei que não há necessidade de
mentiras, afinal não nos veremos nunca mais", disse-me. O som da
sua voz tinha a cor do paraíso. Fumamos vários charros, contamos
com crises de risos as histórias das nossas vidas, bebemos um bocado,
caminhamos abraçados sem enxergar ninguém, bailamos na tenda
de dança e, duas horas depois do nosso encontro, poupando o meu
embaraço e o dele, nos perdemos no "Freak Show". "Eu sou de Sintra.
Agora diz-me que não restará nada de mim em sua memória,
nem mesmo uma imagem". Foram suas últimas palavras. Não contestei-as,
fugindo para o aglomerado de palhaços exibindo entranhas de pano,
barbies com cabeças reptilizadas, frascos para conservar embriões
de bichinhos de pelúcia mutantes. Olhei-o de longe e ele procurava-me;
havia agonia nos seus gestos. Deixei o circo tentando guardar algumas de
suas confissões: "Sou modelo. É uma profissão de merda.
Não suporto o culto à beleza". Lembro-me de me ter dito para
não ter medo da brancura da solidão. "A solidão é
melhor do que qualquer parceiro", completou. Já não tenho
medo da solidão.
Acordei com o clarão vital do sol, massacrando sem piedade os
seres que deambulavam. Comprei papéis de arroz na tenda de artesanato,
tomei um banho gélido na barragem para animar o esqueleto e escrevi
sobre alguns músicos que me impressionaram: o ugandês Geoffrey
Oryema, a voz suave e intimista de Alison Goldfrapp, os Snaker Pimps,
o Dr. Frankwenstein, o conceito revolucionário de espetáculo
dos norte-americanos Flamingo Lips, juntando música, teatro, televisão
e cinema num todo coerente, e a corajosa Rita Cardoso, de uma bonita voz
lembrando Adriana Calcanhoto. Decepcionaram-me o argelino Khaled e os veteranos
e aborrecidos UB 40.
Seguindo a prática do FLU (Faz Lá UM), fiz um, acompanhando
os membros da tribo metálica chegando no fim-da-tarde. Todos diferentes
e quase todos iguais. No palco dedicado a "world music", que não
entendo bem o que significa (afinal de que planeta é a música
do palco principal?), pirei com o reggae do Cidade Negra. Como acreditar
que estava vendo uma das minhas bandas favoritas no agosto alentejano?
Fui ver o péssimo "Orfeu" de Carlos Diegues para acompanhar o trabalho
(ruim) de Tony Garrido.Comprei o disco, e gosto dele. O ritual metálico
dos Sepultura, já sem o carismático vocalista Max Cavalera,
era de bom ambiente e de uma tranqüilidade cheia de energia física.
Derrick Green, a nova voz potente, finalizou: "Portugal, você é
fixe (*) pra caralho!". Segui para a tenda de dança onde o dj John
Carter pocava numa coreografia de luzes e som. Lembrei do homem de olhos
quase fechados que eu não havia perguntado o nome. "Agora diz-me
que não restará nada de mim em sua memória, nem mesmo
uma imagem". Eu não havia recordado-o durante o dia inteiro. A minha
memória aceitava o desvanecimento do momento mágico a medida
que o encanto caminhava para se perder nela. Senti um súbito frio
nas palmas das mãos. Na altura, a lua soberba me pareceu triste.
Talvez lhe tivesse falado no nosso jogo sobre a melancolia da lua, e ele
sobre a noite seguinte, a que viria, a última noite, separados pela
multidão de rostos na semi-escuridão, sem nenhuma imagem
concreta. Porque as imagens existem como sinais de uma nova paisagem de
desejos. Os desejos que nascem da recordação, das imagens.
Senti-me indefeso como o Lenny (Guy Pearce) do inteligente "Memento" (2000)
de Christopher Nolan. Deveria anotar sensações, fotografar
pedaços de corpos, gravar frases na pele, fazer um mapa da situação.
Lembro-me da felicidade contida, inimiga de todas as exuberâncias,
quando ele passou o longo braço no meu pescoço e seguimos
conversando misturando assuntos, colocando nomes com cidades, datas e situações
improváveis. A conversação não era importante.
Ele não acreditava na simples idéia de que as imagens desse
encontro inventado representassem algum modo de sobrevivência da
sua próxima existência para mim. Eu tenho dúvidas.
Mesmo com a memória pouco privilegiada, ouço o som dos passos
das imagens que passam. Imóvel no meu gesto consumado, ouço
lá ao fundo, o som da imagem. Fica ali alguns sete segundos. A lua
explode em rutilância, todos os meninos que dançam tem os
olhos semi-fechados como os dele. Todos são ele e são eu.
Todos cantam o refrão:" Nem mesmo uma imagem". São segundos
de uma eternidade de quietuide e paz. Olho de forma breve e direta o fulgor
dos fiéis do festival. Fecho os olhos, sem ter mais certeza da veracidade
das coisas, caminhando em sentido inverso do movimento coletivo.
Antonio Júnior
de Zambujeira do Mar
________
(*)ganza, charro: baseado de haxixe.
(*)fixe: bacana.