As viagens de ontem

          O trajeto entre Goiânia e a Capital do país, à época, era difícil e demorado. Iniciava-se de carro e, após várias horas, atingia-se a cidade de Anápolis, ponto terminal da via férrea. Daí, baldeando-se da Estrada de Ferro Goiás para a Mogiana, a Rede Mineira de Viação, a Paulista e a Central do Brasil, chegava-se, após cinco dias — com o "guarda-pó" todo cheio de furinhos produzidos pelas fagulhas lançadas pelas chaminés das "Marias-Fumaças"— à meta final, que se julgava fosse o inatingível: o Rio de Janeiro.
            Goiânia firmava-se, tornando-se uma cidade progressista e promissora como nova capital de um Estado. Assim, a Vasp inaugurou, para cá, a primeira linha aérea São Paulo-Goiás, com várias escalas, com vôos diários dos aviões Junckers, que aterrisavam pontualmente às 16h20. Depois, outras companhias também estenderam suas linhas até o centro do país, como a Panair, a Nacional, a Varig.
            Na década de 50, programávamos aventurosas viagens de carro para São Paulo. Os preparativos iniciavam-se com uma vistoria completa do automóvel, numa oficina mecânica. Peças susceptíveis de quebrar e câmaras de ar sobressalentes eram adquiridas; a caixa de ferramentas tinha que estar completa; um recipiente emergencial de gasolina, abastecido; estojo de primeiros socorros, bem organizado; machado, enxada ou xibanca não podiam ser esquecidos e, se o tempo era de chuva, correntes deveriam ser colocadas em torno dos pneus.
            Possuíamos um Pontiac azul-esverdeado, de câmbio hidramático, ano 1951, que conosco "conviveu" durante quatorze anos. Era grande e confortável, com assentos revestidos de pelica cinza e azul marinho, com acabamento de fina qualidade. Tinha, porém, seus inconvenientes: gostava de se fartar de gaosolina, mas só fazendo, no máximo cinco kms por litro (apesar de, naquela época, isso não era problema tão sério como hoje) e, não tendo sido programado para o interior brasileiro, era baixo e pesado. Atolava com a maior facilidade, aninhando-se na lama ou na terra fofa e era uma luta desencavá-lo, algumas vezes só saindo à custa de junta de bois.
            Enquanto o carro sofria sua revisão geral, dentro de casa a azáfama era outra: preparar farofa de frango, sanduíches e biscoitos de queijo, que garantissem o estômago das crianças até que alcançássemos uma cidade, para uma refeição regular. E como "matula de nêgo num pula rego", mal a viagem tinha seu início, o "Mamãe, estou com fome", começava.
            Sendo no período das grandes férias, as chuvas incumbiam-se de dificultar, ao máximo, toda a programação. Ia-se dançando na estrada, à procura de lugar menos ruim para passar, dividindo entre os sulcos profundos feitos pelos caminhões de carga, ou desviando das crateras cheias de água. A velocidade só podia girar em torno dos 20 ou 30 km. por hora.
            Era bonita e até emocionante a solidariedade existente nas estradas. Quando um carro parava, todos perguntavam: —"Precisam de alguma coisa?" Se precisavam, eram com boa vontade atendidos: um recado para a família, o pedido para trazer um mecânico da cidade mais próxima, levar alguém até determinado lugar. Enfim, rotas eram alteradas para socorrer desconhecidos, ligados apenas pela dificuldade que os tornava companheiros.
                Quando um carro atolava, o chegante, gentilmente, unia sua força para tirá-lo daquela situação e, aí, entravam em cena o machado e a xibanca, cortando galhos de árvores que iam sendo introduzidos sob as rodas, para lhes dar sustentação. Se necessário, abriam-se desvios ou mesmo remendavam-se mata-burros quebrados.
                Como a pressa de chegar estava fora de cogitação, as paradas eram aproveitadas para se colher gabirobas. Redondinhas e doces, ficavam escondidas nas touceiras e o "cuidado com as cobras" era o aviso constante, pois também elas tinham bom gosto, sabiam apreciar o que era bom.
                Não existiam as jamantas transportadoras dos carros saídos das fábricas. Eles vinham rodando, lutando para não chegarem em Goiânia muito machucados. Certa vez, trouxemos um Fusca para nosso compadre Oton Nascimento. O carrinho veio fazendo o maior sucesso, sendo verdadeiro ponto de atração. Em todas as cidades em que entrávamos, pessoas reuniam-se em torno daquele novo e estranho modelo de automóveis e admiravam-se quando, abrindo-se o capô para ser abastecido, não encontravam o motor.
                Havia em Santa Rita do Parnaíba (hoje Itumbiara) um atoleiro famoso por sua extensão, onde caminhões ficavam impedidos de passar, por dias seguidos. O Fusca atravessou-o fagueiro, escorregando dali e deslizando dali. Atolou. /e bem verdade, algumas vezes, mas por ser leve, com facilidade era galeado, entre risos, pelos motoristas ali estacionados. Chegando em Pouso Alto (Piracanjuba), como vinha acontecendo, tornou-se o alvo da atenção geral. Nisso, um curioso perguntou: "Moço, de onde vem esse carrinho?" Informado de que era de São Paulo, tornou a perguntar: "E passou por Santa Rita?" Como a resposta fosse afirmativa, ele, desconfiado, duvidando, saiu-se com esta: "Só se foi no bico da cegonha!
                 Tudo mudou quando, em 1960, surgiu Brasília e, com ela, o maior fator de progresso para Goiás: as boas estradas. E, certo dia, ouvimos uma pessoa comentar com orgulho "que, devido ao esfarpo" que Juscelino havia feito, ia ser possível vender toda a colheita, por bom preço, fora de sua fazenda". E nós, calejados sofredores da lama e da poeira, ficamos com imenso desejo de transitar pela nova e tão elogiada estrada "asfaltada". E assim... conto depois.

Belkiss S. Carneiro de Mendonça


 
 

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