Foi Sereníssima República e Porta do Oriente. Berço
das caravelas que descobriram o resto do mundo. Cenário de Shakespeare,
das festas venezianas, da arte do vidro -Casanova, Veronese, Marco Polo,
Vivaldi, toda uma escola de arte que ficou entre as melhores da história
humana. Apesar disso -ou por causa disso —, Veneza continua apodrecendo
em luxo e beleza, uma agonia nobre, de doge medieval. Olhada em conjunto,
a cidade merece a sua desgraça porque ainda merece a sua glória.
Como o reino de Deus, ela não foi feita para este mundo. E a decadência
que se prolonga nos últimos séculos apenas acrescentou mais
encanto aos fatigados palácios chafurdados no lodo. E mais feitiço
em suas pontes e casas com peitoris florindo de gerânios. E suas
gôndolas negras, elegantes e fúnebres, cravos vermelhos abertos
nas proas afinadas: à noite, o cravo é substituído
por uma chama que ilumina em silêncio as águas esverdeadas
e escuras da laguna.
Quem gosta de cinema lembra Rossano Brazzi e Katherine Hepburn num
sucesso dos anos 50, "Summertime in Venice", a música é tocada
até hoje, em surdina, sob as pontes que cruzam o Canal Grande. Há
também a voz rouca de Charles Aznavour lamentando que Veneza é
triste.
Quando o turista não é muito exigente, os próprios
gondoleiros se encarregam de cantar o "Anônimo Veneziano" (Cuore,
cosa fa?), sim, só Veneza tem clima para essas coisas e cantos.
O cheiro das águas paradas. Nas igrejas desativadas, feitas
de boa madeira das florestas de Friuli, há concertos de música
antiga, partituras assinadas por venezianos anônimos, um deles, sabe-se
hoje, foi Marcello, e quem quiser ouvir Benedetto Marcello pode ir a San
Pietro di Castello, no órgão restaurado que é um dos
melhores da Europa — e tudo isso é muito bom e eterno para afundar
no delta formado pelo rio Pó: no pó e na memória dos
homens.
Em Veneza, tudo é fluido, brilhante: o saguão do Danieli,
o imenso lustre rendado no hall principal. O barulho da água batendo
no casco envernizado das gôndolas. A concha do teatro Fenice, as
cúpulas douradas de San Marco, a basílica parruda e levantina,
o apito dos vaporetos, o balanço do cais em cada estação
do metrô de água — e o labirinto daquelas "calles" (lá
não existem vias como em outras cidades italianas, mas calles, como
no mundo hispânico). E, acima de tudo, o sol seguindo o curso do
grande canal. Quando cai a noite, em alguns ângulos da cidade é
fácil surpreender os fantasmas do poder ou do amor. Cidade decadente,
cadente, no coma de muitas águas e lembranças.
Na imensa praça, que Napoleão considerava a mais bela
do mundo, sala de visitas da Europa, cada café tem sua pequena orquestra,
um repertório belle-époque, foxes de operetas antigas, "Hindustan",
"The Sheik of Araby", "Amapola" — tudo parece já ter acontecido:
de repente.
Naquela passagem abobadada que leva ao Cavaletto, passaram os grandes
de Veneza, os Dandalos, os Foscari, os Candianos, os Contarines, os Falieros,
os Renzos, os Grandenigos, os Mocenigos, os Bembos, os Pisanos, os Cornaros.
E, naturalmente, Ruskin e, por causa dele, Marcel Proust.
No Café Florian, a turista sueca, cabelos brancos e óculos
grandes, parecida com Greta Garbo na velhice, lê T.S. Eliot. O garção
lhe serve aquavit com gelo num cálice rendado. Lá fora, os
músicos acabaram de tocar "Fascinação" e descansam,
olhando os pombos que voam diante da basílica.
Nas lojas ao redor, brilham os cristais vermelhos, azuis e verdes dos
cinzeiros murano, as máscaras prateadas de pierrôs banhados
de luar. "Arranca a máscara da face, pierrô, para sorrir de
sua dor" -não há lugar para o "povero Arlechino" da ópera
de Leoncavallo.
O mundo, embora o mereça, ainda não afundou. Quem afunda,
vagarosamente, dois, três centímetros por ano, no lodo e na
história, é a própria Veneza, com seus palácios
de mármore e sombra. No cemitério de San Michelle, está
enterrado aquele que muitos consideram o maior poeta do século,
Ezra Pound. Ali, depois da ponte que faz uma curva no espaço, a
casa de Lorenzo Perosi, o pequeno "harmonium" no qual escreveu sua "Pontifical".
Quando se está perdido nos becos atrás de San Marco, de repente
um cheiro de pão e azeitonas pretas, é só entrar na
primeira birosca e tomar spumoni gelado com bolinhos de bacalhau — parece
que não combina, mas em Veneza tudo combina enquanto há vida.
A urgente vida.
Pois há um apelo triste no amor que se faz e se tem por Veneza.
Um apelo final e calmo. Thomas Mann fez aquele músico inspirado
em Mahler morrer na praia do Lido, num final de verão, engolindo
sem prazer os últimos acordes de sua sinfonia e a beleza de um jovem
que apontava o sol caindo sobre a laguna.
A decadência da nobre Veneza, com cheiro de morte e flor. Tantas
vezes o mundo acabou, mas começou de novo. Veneza não. Está
acabando, lentamente, sem pressa, sem vontade de pertencer ao universo
de acrílico e néon que fabricamos e será o legado
para aqueles que herdarão a terra, mas não herdarão
Veneza -cidade sepultada e viva, soberana das águas, sereníssima
senhora do tempo e do lodo.
Carlos Heitor Cony
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 11/01/2002
Enviado por: Márcia Maia