"Ama e faz o que quer" é o lema do apóstolo S. João.
Eis-me em Lisboa com o coração rutilando de amor e fazendo
o que quero. Estou em Belém, a quinze minutos do centro velho, no
bairro peregrinado pelos turistas por se encontrar os célebres pastéis-de-Belém,
uma empada de ovos e leite, e o espetacular Mosteiro dos Jerônimos,
um monumento erguido para receber as sepulturas do rei D. Manuel I, mas
que hoje reflete história de Portugal do último meio milênio,
principalmente a glorificação da Idade de Ouro, com as Descobertas.
Algumas ruas acima, no Restelo, pousei durante meses. Exatamente em frente
a uma praça dominada por uma igreja barroca, imponente, a de Nossa
Senhora da Memória. Foram meses de absoluta melancolia, muito vinho
e uma nostalgia redentora de viver num paraíso arquitetônico
e paisagístico. Dava uns passos e estava nos túmulos de Camões
e de Pessoa ou no Jardim Botânico sem ninguém além
dos jardineiros; na Praça do Império, com a sua fonte cravejada
de brasões e os jardins de oliveiras, onde lia poemas de Marianne
Moore; em frente aos palácios de Belém e da Ajuda, na torre-fortaleza;
lendo cartas de amor nas margens do rio Tejo, de tonalidade suave de açúcar
mascavo, na desaparecida Praia das Lágrimas, por ser no séc.
XV o local da despedida de marinheiros, que iam enfrentar um destino de
tempestades, doenças, terras estrangeiras, solidão e fome;
e no Centro Cultural de Belém (CCB), um moderno prédio onde
vi cantar Hannah Schygulla, Jessie Norman e Cassandra Wilson, a atuação
de Giorgio Albertazzi em "Memórias de Adriano" e as fotografias
hipnóticas do mexicano Manuel Álvarez Bravo.
Lisboa é como uma caixinha de preciosidades que guarda sustos
e resignações. É a terra do fado, da dor, da resignação.
Um labirinto de pormenores, de jogos emblemáticos. Sou como uma
das figuras de pedra do claustro dos Jerônimos, apontando o céu,
pisando a cabeça de reis e enxergando os mortos dos últimos
quinhentos anos de história. Seria capaz de fechar os olhos e ver
o terremoto de 1755 que não poupou a maior parte da cidade. Absorvendo
todas as influências possíveis, experimentando personagens
diferentes, o meu eu solitário com os meus livros e um diário
inseparável, dividiu o mesmo apartamento térreo do Restelo
com os fantasmas de uma mulher e um gato. Nenhuma oração
nenhum lamento conseguiam demoli-los de sua visita notívaga. O gato
saltava na cama, a velha e magra senhora sentava junto aos meus pés
e dali não se moviam. Na janela aberta para um quintal com um limoeiro
e elegantes copos-de-leite, a minha cadela Sidhi - significa em hindu algo
como "iluminada pelos deuses", creio - metia as patas e a cara, com olhos
luminosos observando os vultos ao meu lado. Era assustador. Sei que são
coisas que não se diz, soa falso, provoca incredulidades, estamos
numa época que se dá importância à realidade
que nada esconde, quando ela própria, afinal, nada é. Vivemos
sob uma lógica globalizada, e os que vivem segundo a lógica
apenas conseguem dizer o que está certo e o que está errado
e quando percebem que algo não bate certo em seus conceitos,
tentam eliminá-lo. Uma mente que apenas opere pela lógica
é perigosa, tal como é uma mente que apenas opere pelo sentimento.
Tenho viajado muito nos últimos meses. Consigo enxergar a Europa
como um continente onde o homem está certo de viver no centro do
mundo, onde o passado se chama história e a ação é
preferida à contemplação; é onde se pensa que
a vida banalizada vale a pena ser vivida e duas ilusões como a ciência
e a política são tomadas a sério. Na Europa, o belo
sempre foi premeditado. A beleza do Brasil tem uma origem completamente
diferente. Suas cidades são formas que, isoladas, são sujas
e de mal-gosto, e encontram-se umas ao lado das outras numa vizinhança
perfeitamente improvável, que inesperadamente as faz brilhar, como
uma poesia cintilante. Deixarei de atravessar os meus olhos na triste e
opressiva Lisboa de Pessoa, o poeta de "Mensagem". Como não recordar
aqui Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Cesário Verde?
"Nas nossas ruas ao entardecer, / Há tal soturnidade, há
tal melancolia / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia /
Despertam um desejo absurdo de sofrer". Está em "O Sentimento de
um Ocidental". Nas ruas loucas do Bairro Alto, divertia-me com Emílio
Santiago assistindo um espetáculo com bonitos travestis heroínomanos
no Finalmente. Antes, um chá de kava-kava no O Outro Lado da Lua,
uma ginginha no Portas Largas, a música saudável do Frágil,
a sordidez de As Primas, a suntuosidade delirante do Lux. Mesmo assim nunca
fui feliz em Lisboa.Sinto uma sensação de romantismo e ausência.
É que existem alguns mistérios que simplesmente sentimos
que não conseguimos entender.
Não aprecio a arte portuguesa de uma forma em geral. Os atores
atuam como ventríloquos - com exceção da dócil
expressividade de Maria de Medeiros; o cinema me provoca enfado, inclusive
João César Monteiro, Pedro Costa ou o veterano Manoel de
Oliveira nos seus momentos acertados (como "Vale Abrãao");
a música é aborrecida, desde o mito superior que é
Amália Rodrigues a Tereza Salgueiro, do Madredeus, que é
como a nossa Adriana Calcanhoto, talentosa e sensível, mas depois
de três canções seguidas incomoda o ouvinte com a ladainha
de infelicidades. A literatura é o que há de melhor na criação
artística lusitana: Eça, Pessoa, Al Berto, Herbert Helder,
Cardoso Pires, Saramago, Lobo Antunes, Gabriela Llansol. A pintura não
cresceu nem mesmo com o incentivo da soberania de Paula Rego e Julião
Sarmento. Em Lisboa repete-se a melancolia, e a repetição
leva ao cansaço e ao desprezo por si próprio. É claro
que, como em qualquer outra grande cidade, as pessoas estão mais
isoladas e alienadas. O país é liderado pela depressão,
que de certa forma é controlada pela indústria farmacêutica,
que fabrica comprimidos que evitam que as pessoas se suicidem. Deve-se
ir ao campo ou a praia para ouvir outras vozes, para iludir melhor as esperanças,
para lembrar menos a incompetência dos nossos governantes. Nesse
instante, movem-se as minhas rígidas palavras, dançando,
despindo uma cidade, cobrindo-a de flores inquietas, como se num abrir
e fechar de pálpebras a cidade pudesse vir ao encontro de um motivo
inesperadamente vívido de compaixão, defendendo-se numa pergunta:
"O que se espera de um poeta?". O silêncio das palavras rasgadas
e comovidas, responderia, caso alguém com o impensável dentro
quisesse ouvir-me.
Antonio Júnior