Expedição Surucucu

       Após a expedição de reconhecimento, aprendi como chegar até a base de partida para a escalada ao Pico Itaguaré.
Narrarei os fatos como sempre fiz, sem superestimar nada, contando exatamente como foram os acontecimentos na íntegra.

Eu almejava realizar uma aventura completamente nova, um caminho que  nunca havia feito anteriormente. Com um parceiro com metade de minha idade e que também não conhecia o caminho, ingressamos na trilha que nos levaria ao cume do Pico do Itaguaré. Momentos antes um cidadão perto de um sítio havia registrado a primeira imagem de nossa aventura. Iniciando nossa subida, para nossa surpresa percebemos logo que cara que a mata que nos levava para cima, era extremamente longa e fechada. Característica completamente diferente para a escalada ao Pico dos Marins, pois a trecho de trilha fechada não demora mais que 40 minutos, depois é só rochas pela frente. Bem, já que tínhamos que percorrer aquele caminho, olhos atentos e ouvidos aguçados, pois os animais mais perigosos preferem a mata fechada ao invés das rochas. Inicialmente as mochilas que carregávamos pareciam ter apenas 10kg. Após 1 hora de caminhada as mochilas aparentavam ter 50 kg cada uma. A subida era íngreme e cansativa, por isso, tínhamos que adotar um ritmo na caminhada. Já vi muitos jovens atletas serem vencidos pelas montanhas, retornando após algumas horas de caminhadas.
    Academias não fazem milagres! Para a prática de escalar montanha é preciso muita perseverança, ritmo, controle emocional e resistência. Anos atrás, quando comecei a subir as primeiras montanhas, achava que iria morrer de exaustão. Hoje, um pouco mais  experiente, tenho maior controle da situação. Bem... Prosseguindo com a esclada, a trilha parecia não ter fim. Após mais duas horas de caminhada, resolvemos parar para preparar algo para comer. Acreditávamos estar no caminho devido a informações da leitura de um livro, encontrando algumas referências e desviando de bifurcações que poderiam fazer com que nos perdêssemos. Almoçamos e descansamos por uma hora. Depois retomamos a árdua caminhada. É incrível como as horas passam rapidamente nestes locais. Pelas minhas contas, não tardaria a escurecer. Faltava apenas uma hora e meia segundo meu relógio biológico, pois sou inimigo de relógios ainda mais estando de férias. Dormir no meio da trilha seria praticamente impossível. Teríamos que abrir um pequeno trecho na mata, mas seria extremamente desconfortável devido à inclinação. Para nossa alegria, chegamos ao primeiro cocuruto. Tínhamos que escalá-lo rapidamente para montar as barracas. Assim o fizemos enquanto o sol começava a inclinar-se no poente. Assim que terminamos a montagem, tínhamos que encontrar água em apenas 20 minutos se não quiséssemos ficar perambulando na noite gélida daquele ambiente ainda não desbravado por nós. Eu sabia que havia água, mas tínhamos que achá-la. Sem mochilas fomos rápido até uma enorme vala entre o primeiro e o segundo cocuruto. Lá achamos água e voltamos na boca da noite.
        Preparamos nosso jantar e exaustos caímos no sono. Horas depois eu acordei e percebi que um bicho rondava a barraca, encostando-se e revirando os restos de comida. Poderia ser um simples gambá a um animal mais agressivo, por isso, mantive-me dentro da barraca, pois  os bichos costumam atcar barracas. Uma coisa eu aprendi nestes anos de mata, é que nossas possibilidades ao deparar-se com animais perigosos, são muito melhores quando os vemos primeiramente. Onças (ainda não vi a não ser em uma foto que um morador tirou) e jaguatiricas principalmente. Estres animais costumam não enfrentar pessoas de frente. Escolhem uma boa oportunidade para atacar por trás, escolhendo sempre o mais fraco do grupo (seja homem ou uma presa). Já os lobos são mais temperamentais e podem lhe atacar de frente. As cobras quando estiverem esticadas não representram perigo, mas se tiverem enroladas é bom ficar esperto pois o bote não demorará. Animais à parte e o dia amanheceu. Nas montanhas não existe gelo como encontramos a 1.600 m, ou seja, 800 m abaixo do lugar onde estávamos. Isto se deve ao fato de que nos cumes rochosos o vento é muito intenso, impedindo que o gelo permaneça sobre este tipo de ambiente na Serra da Mantiqueira. Logicamente que dependendo do lugar e do clima, existe a formação de neve mesmo com vento, como é o caso de São Joaquim em Santa Catarina. O dia amanheceu com um belo nascer do sol. Lá em cima estava um céu de brigadeiro, abaixo, olhando para as cidades do vale, só víamos neblina. Tomamos um café reforçado e, como o vento ainda persistia, tivemos que adaptar o fogareiro dentro da barraca, pois fora dela não havia milagre que mantivesse qualquer fogo aceso. Cerca uns 50 minutos depois, resolvemos começar a explorar o local. Não demorou e descobrimos que estamos sós, não havia nenhum aventureiro nos arredores. Ao retornar para o almoçar, meu companheiro insistiu em um caminho que disse não estar correto. Mas ele insistiu e disse que poderíamos aprender um novo caminho. Não demorou muito e estamos escalando uma enorme parede rochosa. Para infelicidade de meu parceiro, ele começou a escorregar. Eu estava perto mais não havia como lhe dar as mãos, pois eu escalava a mesma rocha pela parte de cima. Olhei nos olhos dele deslizando e vi seu desespero. Seus olhos pareciam reconhecer a morte. Tudo o que disse foi: “Calma! Procure uma fresta para se segurar”. Assim, ele encostou todo seu corpo e permitiu que o atrito da enorme rocha diminuísse a sua queda enquanto procurava um lugar para segurar. Mais vinte centímetros deslizando e o parceiro iria desta para melhor, pois a rocha se convergia em uma negativa. Pelo Bom Deus ele conseguiu parar e sair desta. Que sufoco! Não foi brincadeira, gente, jamais me esquecerei daquela cena. Bem, horas depois do almoço e resolvi escalar o terceiro cocuruto, o conhecido Pico do Itaguaré (2.300m). Meu parceiro ressabiado pelos acontecimentos anteriores disse que não iria, mas vendo que isto não me faria desistir, resolveu me acompanhar.

Um vento muito forte soprava. Inclinávamos o corpo e começávamos a soltá-lo lentamente para sentir a força do vento em algumas ocasiões. O vento era tão forte que ficávamos inclinados a 80° de costas e com os braços abertos sem cair. A brincadeira estava interessante com o vento até o momento que fui saltar de uma rocha para a outra e ele me desestabilizou. A partir daí passei a respeitar sua enorme força e velocidade, pois não é qualquer ventinho que desestabiliza mais de 90 kg de massa no ar. Com o coração na boca continuamos subindo. Breve avistei uma fenda que poderia nos levar mais rapidamente ao cume. Pedi para o parceiro não ficar abaixo e aguardar para que eu escalasse primeiramente. Quando estava na subida, resolvi lançar minha pochete para cima em um lugar menos inclinado para facilitar minha subida e pegá-la assim que subisse. Assim o fiz e para minha surpresa ela voltou rolando e caiu desfiladeiro abaixo. É... Pelo visto o lugar que eu tentaria subir não era um lugar pouco inclinado. Isto serviu de alerta para eu voltar, resgatar a pequena bolsa e depois tentar um caminho mais seguro. Depois de um tempo escalando, finalmente conseguimos atingir nossa meta e objetivo. Estávamos no cume, onde até alguns pássaros voavam abaixo de nós. A imagem era linda e indescritível. Após muita contemplação, tivemos que começar a voltar. Próximo da base do cocuruto, vejo meu parceiro se desequilibrar após um salto em local que não era necessário. Depois de escorregar de um lado para o outro ele finalmente conseguiu se estabilizar. O motivo do salto? Uma cobra! Pelas descrições mais detalhadas cheguei a conclusão que era uma surucucu. Trata-se de uma cobra venenosíssima, mas com uma característica peculiar, ou seja, comumente ela foge dos seres humanos e só dá bote se estiver encurralada. Justamente o que aconteceu. Após mais este susto, voltamos para perto das barracas para apreciar o pôr-do-sol. Assim que escureceu e eu sabia que o frio não seria brincadeira. Eu estava com 4 blusas grossas (jaqueta, moleton e outras), duas calças, duas meias, ivanhoé (toca ninja), outra tôca por cima, as luvas para escalada (emborrachadas por baixo). Não demorou muito para que nós recebêssemos aquela visita animal. Novamente não abrimos a tenda. Exaustos, pegamos no sono. Ao cair da madrugada, com todas as blusas e dentro do meu “sleeping bag” que suporta até zero grau, acordei com uma tremedeira no corpo inteiro. A pequena  abertura da touca ninja que permitia que parte de meu rosto ficasse para fora, fazia minha pele arder com o frio. Certamente a temperatura estava negativa.  Se eu persistisse com aquela tremedeira, seria uma questão de minutos ou horas e eu não estaria aqui para contar esta aventura. Possivelmente eu teria uma hipotermia, se é que posso chamar assim. Nesta hora, eu só tinha uma alternativa, ou seja, tirar toda a roupa e colocar as únicas duas peças de lã por baixo que levei após muita insistência de minha mulher. Assim o fiz colocando primeiramente a meia calça de lã e depois a blusa. Depois recoloquei todas as outras. Ainda com as mãos trêmulas, enchi uma caneca de conhaque, que levei justamente para casos críticos,  e tomei rapidamente para esquentar. Voltei para o saco de dormir fechando completamente com o seu zíper. Ainda assim demorou uns cinco minutos para que eu me reaquecesse. Não demorou muito e comecei a não sentir as minhas pernas, mas depois de um tempo comecei a sentir uma enorme dor no local que fiz a cirurgia (joelho esquerdo). Eu pensava comigo... Pelo menos voltei a sentir uma das pernas (risos). Agora eu dou risada, mas na ocasião fiquei preocupado.  A impressão que se tem é de que o vento vai levar a barraca. Fiquei acordado por uma hora, procurando me mexer dentro do “sleeping bag” buscando calor e uma posição mais confortável. Finalmente dormi novamente.
      No outro dia estávamos prontos para ver o sol nascer. Não demorou muito para percebermos que estávamos literalmente acima das nuvens.
 

 

O vale estava todo debaixo delas e nós somente a contemplar. Conseguimos egistrar a imagem do sol nascendo. Segurei a máquina fotográfica de um lado e o parceiro disparou do outro.
 

Em síntese, não tenho palavras para descrever como são os dias lá em cima. Mas pelas imagens das fotos que registramos, vocês terão idéia. A paz não tem preço. Somente quando descemos encontramos um grupo de cinco pessoas subindo. Trocando conversa com o líder do grupo, ele me chamou de louco primeiramente por pernoitar dias lá em cima e depois por não usar um GPS (sistema de orientação via satélite). Informei que futuramente irei adquirir um, mas que por enquanto os pontos cardeais, a posição do sol e meu relógio biológico me bastavam. Afinal, mesmo com GPS, esta tecnologia no meio da natureza para nada serve se não tivermos uma boa intuição e senso de direção, pois ele registra os pontos linearmente e quando começamos a fazer curvas, mesmo na direção certa, o aparelho acusa que estamos na posição errada até atingirmos o próximo ponto registrado. Uma outra pergunta que geralmente as pessoas sempre me fazem é quanto ao fato de escalar sem cordas. Esta reposta é a mais fácil, pois eu amo viver grandes emoções. Um pouco de adrenalina sempre é bom! Chegará o dia em que eu e a natureza seremos inseparáveis. Aliás, todos nós! (“Tu és pó e ao pó retornarás” – Gênesis). Mas antes disto, garanto que terei assistido muitos belos espetáculos enquanto muitas pessoas permanecerão dormindo.

André Prado

« Voltar