PRAZO DE VIVER
É sensação, no mínimo, inédita pra
brasileiro graças a Deus, essa de saber que o Boulevard Saint Michel
em que você tanto
gosta de passear, foi cenário de atentado terrorista. De volta
pra casa, em meio ao engarrafamento do trânsito, você vem com
o coração na mão, preocupado com os filhos em
que ali estudam por perto onde o cara fez explodir a bomba. Felizmente,
o
trem é da banlieue que eles não têm razão
de tomar. O horário já não é mais escolar.
Apesar disso, você vive um alívio muito
grande, ao encontrá-los em casa e em paz, longe dos artefatos
assassinos.
(Fiz tal registro antes de outra ação terrorista, esta
última na Étoile onde um desalmado deixou bomba no interior
de lata de
lixo.)
*** Saio, porém, à procura de assuntos menos sangrentos.
De comida, por exemplo. Não me amarro em feijoada. Nem saio
pelaí, feito doido, atrás da maminha do Francisco
ou do caranguejo do Itapariká. Sou, em França, porém,
assaltado por
outras nostalgias gustativas. Por exemplo, nada mais saboroso, o dia
ainda claro embora seja noite, que encarar um cuscuz de
milho com leite de vaca, aqui em Paris na rue de Vouillé. Pra
inveja desses parisienses que não sabem o que estão perdendo.
Também me apraz uma rapadurinha de Cascavel, depois do almoço.
Pra prover minha ucharia, no último fim de semana, fiz
expedição gastronômica. Comprei rapadura chinesa
( pude comprovar que a nossa é muito melhor mais saborosa), batata
doce, macaxeira e pitomba. Bem como um doce de sapota da Tailândia
que eles chamam saboutier. Neste passo, fui, em vão,
depois, até a rue de Mouffetard, não pra seguir os rastros
de Ernest Hemingway jovem jornalista e marido estreante. Minha
motivação era mais chã. Procurei, na rua onde
morou o romancista americano, farinha de mandioca. ( Terminei encontrando
o
produto num supermercado que instalaram aqui perto de casa ). Pois
bem. No curso de tão inútil pesquisa, parei numa loja
portuguesa. A cachopa, ao final da consulta, me confidenciou fraternalmente:
"Segunda feira, estou voltando."
Não entendi. Voltando, pra onde? quero saber.
Aí ela me explicou que era o seu último dia de trabalho.
Entrará de férias e irá gozá-las na santa terrinha,
mais precisamente no
Porto. Percebo que se trata, como eu, dum ser mordido por fundas nostalgias.
Fala em volta quando se refere a um mero
descanso do trabalho.
*** Dia seguinte, à entrada do Jardins das Tulherias, o vendedor
de souvenirs é um negro simpático, falante, cheio de charme,
de andar elástico. Não me surpreenderia que ele, ali
mesmo, no calçamento parisiense, ensaiasse alguns passos de capoeira.
Enquanto escolho cartões postais, ele não chega a tanto,
toma, porém, a iniciativa de falar do futebol brasileiro e mostrar
que é
seu fã ardoroso.
Em meu parco francês, para alimentar a conversa, lembro-lhe de
que, infelizmente, no último jogo, perdemos pra Argentina.
Ele me corrige. A derrota foi para o Uruguai e não pra Argentina.
Fico justamente envergonhado, reconheço que me enganei.
Digo-lhe que, à moda da grã-fina de Nelson Rodrigues,
em matéria de futebol, só sei que a bola é redonda.
Não vão, além
disso, meus conhecimentos do chamado esporte bretão. Pra mais
me desmoralizar, o interlocutor declama, então, com boa
pronúncia, os nomes de todos os integrantes da seleção
brasileira.
*** Vou à revisão na cardiologista. Ela considera a operação impecável. Acha-me ótimo:
"Você pode viver até cem anos".
É muito. Sinceramente não quero tanto. Com tanta idade nas costas que companhia você pode ter? Vai conversar com quem?
***
No hospital, o cirurgião, autor do feito, o examina orgulhoso
e chama um colega pra que contemple sua obra. . Enquanto eles
se demoram em tais observações, sinto-me devassado. Coisificado.
Uma página de manual de cirurgia cardiovascular.
Tem mais. O grande médico não me quer apenas sadio. Isto
não lhe basta. Sonha-me virtuoso. Quer, pra mim, o Céu dos
sóbrios, dos abstêmios. Estou, há quase três
meses, da cirurgia. É justo, humanamente justo que queira fazer-lhe
um brinde.
Tomar um ou mais copos de Mouton Cadet ou dum Bordeaux branco, seco,
como pede, reclama minha sede sobralense.
Consulto-o expressamente. Ele faz que não ouve e recomenda:
"Beba água. Beba muita água!"
Digam-me, leitores e leitoras, isto é coisa que um cidadão
maior de cinqüenta anos, tenha obrigação de ouvir, e
pior, de
acatar? Os vinhos estão diante de mim, amontoados no armário
da sala, desafiando-me, conclamando-me a que os consuma,
a que os beba, para isto foram produzidos e eu? Pobre de mim. Vou a
um restaurante e ouço o cara solicitar um rouge.
Acompanho, invejoso, a trajetória do garçon transportando
a garrafa, retirando a rolha, servindo a primeira dose. Vejo a
beleza daquele líquido rubro, dum vermelho cardinalício
escorrer no copo, o prazer sensual do outro curtir o bouquê , sorver
aquele divino licor, elaborado nos céus para matar a sede dos
deuses, enquanto eu, pobre mortal, com jeito ( e tudo o mais )
de besta, bebo água. Muita água. É demais pro
meu pobre coração recauchutado.
***
Um amigo liga para citar velha crônica de Carlos Drummond de Andrade,
registrando encontrar-se numa idade em que só
encontrava os amigos, de pé. Nos velórios. Não
é felizmente, ainda, o meu caso. ( O poeta partiu com quase noventa
anos )
.Estou longe disso. Graças a Deus, vou mais a casamentos e aniversários
que a enterros. Fico, porém, triste quando um amigo,
um contemporâneo vai embora. Sinto-me ameaçado, atingido.
É toda uma estória comum que se encerra. Um patrimônio
de
vivências, de lembranças, de experiências comuns,
boas, menos boas que se acumularam , ao longo da estrada, e que se
perde definitivamente. Foi o caso do Mardônio Barreto Lima ,
colega de juventude, que encontrei, no ano passado, no Beco
do Cotovelo e que nos deixou. Nunca vou esquecer sua alegria, seu bom
humor, sua simpatia (Paris, 1995).
Lustosa da Costa