AL GARB

      Desde logo a costa única, característica, inimitável. Praias em nichos de escarpas. Morros de grés castanho, amarelo,
cinza, ocre, sangrados, alterados com o tempos. Pedra sobre cré. Também a barlavento* extremo, rocha, xisto, vegetação
rasteira,  verde bravio, ervas castigadas pelo Sol, giestas, pinheiros mansos anões, rosmaninho, gramão, esteva, oleandro exótico,
mimosas e outras espécies exóticas. Em cima o azul cristalino, sobre o mar quase o mesmo, mais pleno à distância, turquesa mais
perto para se tornar mais esverdeado junto à areia dourada e prateada.

      Assim é num flache repentino à velocidade da luz, o extremo Sul de Portugal na linha finita da sua costa tangendo o mar.

      Al Garb, agora Algarve. Um misto mágico de luz e sombra, figurativamente um buraco redondo no cimo do morro
côncavo, oco, com a luz iluminando um pedaço de areia prateada bordejada de água-verde-petróleo com torrões à volta e a
aparição da sereia  de todos os mitos.
 
 

      Começar no Algarve, por onde se começa? Pelo Cabo de São Vicente, naturalmente. Com um local mítico e místico.
Vindo à costa o corpo de São Vicente, junto a este Cabo com o seu nome, depois do seu martírio no século IV, ali permaneceu
durante séculos, foi vigiado por corvos até empreender em 1173 a viagem definitiva para Lisboa.

      «Promontorium sacrum» dos romanos, este topo era lugar apropriado par venerar as forças e os espíritos que se
elevavam acima dos poderes e saberes humanos. Os fenícios aí o elegeram como seu santuário ao deus Melqart, e os gregos
veneraram o seu deus Kronos. E os milénios assim sucederam, confluindo num farol dentro duma muralha ao longo da escarpa,
uma fortaleza inexpugnável. Uma defesa sempre vitoriosa na Costa Vicentina transformada hodiernamente em reserva natural.

      Foi e é local histórico, pelo seu espaço marítimo onde se deram grandes e memoráveis batalhas navais. O francês
Tourville derrotou à sua vista a esquadra anglo-holandesa em 1693. Em 1780 o almirante inglês Rodney desbaratou uma esquadra
espanhola. A essas lutas pela posse dos mares, o Cabo de São Vicente, firmado nas suas rochas graníticas, assistiu imperturbável,
e nele, nos dias de tenebrosa tempestade,  o rufar das ondas pelas grutas da falésia, é a melhor sinfonia jamais ouvida em todas as
catedrais do mundo, soada pelos seus órgãos, aqui mumificados na expressão da mais original força bruta e abrupta da natureza.
O farol orienta a navegação e permite que se conheça o roteiro para todas as rotas seguras.

      Desconhecido ou erro de saber histórico,  julga-se que as primeiras naus partiram de Lisboa, mas não, foi de Lagos. Pois
foi, ficou-nos na memória, o episódio célebre do Velho do Restelo, no cais de Lisboa, onde o ancião de “aspecto venerando”
vaticinou as maiores desgraças ao povo lusitano, pelo facto de se lançar uma empreendimento macrocéfalo, primeiro virtual,
visionário, depois concretizado. Efectivamente, todas as pragas, desventuras, lutas sobre-humanas, doenças e devastações
suportaram os mareantes, mas o certo é que um novo mundo se abriu nos horizonte de todos os europeus que dominaram, em
consequência dos factos ocorridos, e em que os portugueses foram protagonistas, outros continentes durante quatro séculos.
Lisboa não teve qualquer privilégio por qualquer início de coisa alguma. Recorde-se que D. Afonso IV, reuniu por exemplo no
Porto a esquadra que iria conquistar as praças do Norte de África, e foi aí onde ela se abasteceu, antes da partida, da carne
necessária para o feito heróico e histórico, ficando também memorável o acontecimento, pelo facto de, nesta cidade ficarem as
tripas e as entranhas dos animais, que os tripeiros aprenderam a confeccionar, ficando assim para sempre anotadas, como pitéu
apetecível e atractivo nos cardápios gastronómicos das gentes do Norte.

      Conheceis já a história do terror dos mares, Dragut, o turco, lugar-tenente do terrível, Barba Roja, que devastou Cullera, e
aí conserva uma Cova-Museu.

      Mas, se vos falei já nos piratas depredadores da costa mediterrânea hispânica, no Algarve os seus efeitos não foram de
menor dimensão.

      Por toda a costa algarvia há também, além das fortalezas que passaram da mão dos fenícios, aos gregos, aos romanos,
aos árabes, aos castelhanos, e depois aos lusitanos, os fortes ou fortins que defenderam as terras das pilhagens com toda a sua
corte de morticínio e violações bárbaras, efectuados pelos piratas e corsários sanguinários e diabólicos

      Aliás, depois dos Árabes terminarem os seu reinado de terroristas dos mares mediterrâneos, vieram os ingleses e os
holandeses a tomar-lhes o lugar de bandos de rapina, depredadores das costas. E o Algarve não lhes fugiu à regra. É por isso que
Lagos vem a sofrer uma das maiores desgraças para o seus autóctones com o ataque sanguinário de Francis Drake. Em 1587, o
temido e facínora pirata inglês, destruiu todos os edifícios de Sagres quando atacou Lagos numa acção de horrorosa memória,
arrasando esta cidade. Esse mesmo que depois chamado pela rainha Isabel de Inglaterra, se deixou comandar por Nelson para
derrotar impiedosamente dizimando a Armada Invencível, na qual a Espanha apostou fortemente para dominar a Inglaterra,
desejando reduzi-la a uma potência insular sem voos malfeitores para o domínio das novas rotas dos Mares. Lagos, na verdade,
só viria a ser destruído mais tarde pela segunda vez, aquando do terramoto de 1775.

      Os vestígios arqueológicos deixados pelos fenícios e pelos gregos, e que remontam ao paleolítico, não se revelam só nos
utensílios domésticos coleccionados em Museus, também são patentes nossas fortalezas e mais tarde em fortins que pelas
encostas pontificam na maior parte quase imperceptíveis hoje-em-dia, dado que foram reconstruídos por romanos e mouros no seu
alternado tempo dominante. E ainda é assinalável uma séria de novos fortes que Filipe II de Espanha, I de Portugal, mandou erigir
para protecção dos assaltos de piratas e corsários ma sua senda de rapina e saque devastadores.

      Assinaláveis são também dois factos históricos de superior importância. O Algarve foi a última região na sequência
territorial com a forma de quadrilátero a ser libertada do jugo árabe, e esteve ainda sob domínio feudal de Castela, até ser
definitivamente restituída à coroa portuguesa no tempo de D. Sancho.

      Conquistado o Algarve para a coroa portuguesa no séc. XIII, D. Henrique, filho de D. João I, estabeleceu como sítio do
sonho maior, Sagres, erigindo aí a Escola de Mareantes. O destino de Portugal estava traçado para a descoberta da desconhecida
rota de África e das Américas, até à Índia. O traçado geográfico desta Nação apontava para o Sul, e Portugal precisava de se
expandir para cumprir a saga que Deus lhe tinha atribuído, motivada por todas as forças místicas endógenas e todas as
compulsões exógenas também ocultas, que foram secretamente alimentadas desde o tempo dos tártaros, escorraçados pela
Inquisição na Idade Média, aqui se fortalecendo na Ordem dos Templários, e seguidamente, quando a Inquisição chegou a
Portugal, chamada Ordem de Cristo, que no fundo só mudou o nome.

      Ao lado de Sagres, de Lagos partiram as primeiras caravelas para a descoberta de ignotas terras e desconhecidos povos.

      Há marcas da História em toda esta região, e em períodos cruciais da nossa existência como Pátria e Nação. Na Vila do
Bispo os Templários aí erigiram no séc. XIII, a ermida de Nossa Senhora de Guadalupe com harmoniosos capiteis.

Daniel Cristal

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