A CAVERNA DO DIABO (*)
A vegetação esconde a entrada? É a primeira idéia que me ocorre. Folhas e mais folhas, misturam-se, entrecruzam-se, como se quisessem ocultar a maravilha. Não: estão simplesmente ali, sem dar por isso, na beleza da simplicidade. É preciso esconder a maravilha. O milagre não deve ser visto, ou vão querer compreendê-lo. E a Caverna do Diabo é um milagre, do Diabo, mas milagre.
Logo vejo uma escadinha, com os devidos corrimões. Tudo iluminado, sem perigo de um escorregão, de um desequilíbrio. Certamente não é possível permanecer equilibrado naquele ambiente. A beleza penetra na pele. Não se contenta de pairar nos olhos. A pedra é uma outra face da beleza. A cada passo você vê novas imagens de pedra. O perene. A beleza anseia pelo perene. Mas aqui o perene se renova com o tempo, esse escultor inexorável.
Ando dois ou três passos, e vejo o marco inicial da Caverna: uma estalagmite da altura de três homens ou mais, erguendo-se em direção ao teto, soberba. Quanto tempo terá sido preciso para se formar esse monumento? A água se infiltrando da abóbada lentamente, caindo tão lentamente que é como se o tempo se estagnasse, um átimo do tempo se projetasse na eternidade, para esculpir essa figura delicada e forte. Um monumento ao tempo que o tempo constrói, e preserva, transformando-o imperceptivelmente, mais imperceptivelmente do que se poderia imaginar.
E são centenas e milhares de estalactites que descem da abóbada delicada, agulhas que pendem para o solo, que se encostam umas às outras, como se fosse a mesma pele da Caverna que se alonga, sempre de uma forma diferente. E são coloridas, vermelhas e azuis e verdes, e a luz brinca com os olhos, as cores se misturam, no alto criam-se nichos, altares, como se erguidos à estranha divindade que habita essas múltiplas salas, o Diabo. Nunca o Diabo foi tão suave, de uma beleza assim mágica, que lembra a palavra maravilha, ou milagre.
No alto, a mão do Diabo sai de uma pedra. Tem o formato de uma mão, só pode ser do Diabo. Está pedindo socorro? É a mão de alguém, o Diabo, agonizando? Parece a mão de um morto. A imaginação cria as imagens que quiser, e aqui, quer as imagens do Diabo.
Um pia batismal se oferece ao crente, é a pia do Diabo, mas se oferece ao crente da beleza. Interessante como se humaniza a beleza. Como se humanizam as pedras. A própria pele da Caverna é a pele do Diabo.
A pedra tem a forma da pele, do corpo do Diabo. Humana. Era preciso que o Diabo fosse humano. Dizem que Lúcifer era belo. O seu nome o diz: o que leva a luz.
E as luzes da Caverna foram apagadas. Para que sentíssemos – éramos umas quinze pessoas encantadas – o silêncio. A atmosfera de solidão das grandes salas. Como se estivéssemos no deserto, entre montanhas, envoltos de silêncio e solidão. A pele da pedra, humanizada nos envolvendo. Lúcifer traz a luz, e desce sobre nós a delicadeza da paz. A pedra é suave como a pétala de uma flor.
De sala em sala, a luz ilumina altares erguidos a essa estranha entidade, não o Diabo, mas a beleza. Um silêncio com algo de sagrado paira nessas salas, nesses altares erguidos à beleza.
A água de um pequeno riacho desliza no fundo, quieta, refletindo a pele do Diabo. A água quieta faz ouvir, com maior intensidade, o silêncio.
Não quero deixar esse lugar. Não quero me afastar desse encantamento. É quando a pedra fala. Ela tem sensibilidade. Ouve-se o silêncio da pedra. A sua pele é a pele da beleza.
Quedo-me num susto. Não deixar nunca esse lugar. O tempo parou – como me afastar, se para me afastar falta-me esse atributo essencial, o tempo? E tudo é pedra, pedra, pedra – nesse momento fora do tempo – no eterno.
José Carlos Mendes Brandão
01/01/07
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(*) A Caverna do Diabo fica no Vale do Ribeira, SP, entre os municípios de Eldorado e Iporanga. Pertence ao Parque Estadual do Alto Ribeira - PETAR.