VIIAGENS DE SONHO
Foi no Verão, no mês de Agosto de 2000. Depois de um voo charter que é o mesmo que dizer num machimbombo daqueles que em Moçambique se arrastam aos solavancos pelas picadas como se fossem elefantes amestrados, tremendo por todos os poros quando a pata pisa terrenos gretados pelo calor. Não foi uma ida a Hidra, que trazíamos na memória cardíaca, mas a Bodrum (ex-Halicarnasso), depois de passar por Istambul, Ancara, Lagos Salgados, Konya, (Capadócia) Pamukale e Éfeso. Desaguámos a cinco quilómetros da terra natural do nascimento de Heródoto, o célebre historiador grego, que aqui nasceu e desta terra disse que nunca tinha visto noutro lado, céu mais bonito. Ele tinha razão. O céu é divino, mas o mar é um banquete para os adoradores de Neptuno. Límpido, cristalino, macio, denso, morno e ao mesmo tempo refrescante, pois que a nossa pele está quente de tanto Sol. Sempre me fez pensar, isto de escolher férias. Que é que queremos, do que é que gostamos, o que é faz falta para quem vive no mar ou na serra? Descobrimos as nossas carências quando comparamos as nossas experiências. Gostamos também logicamente de variar. O que não traz nenhum mal ao mundo. A obsessão por ideias fixas é um mal a evitar.
A viagem de Lisboa a Istambul demorou quatro horas traduzidas em duas, por causa da diferença redonda espacial de dois fusos horários. Istambul é uma cidade paradisíaca. Podemos desfrutar da sua história em cada monumento, nas mesquitas, nos palácios, nas torres, nas muralhas, nos museus, na cisterna monumental (onde há cabeças de Medusas invertidas, colunas jónicas, roubadas da Grécia e humilhadas neste túnel enorme), em cada pedra lavrada. O seu povo é uma miscelânea de raças orientais e ocidentais, as quais nem eles próprios sabem decifrar. É uma cidade que se divide entre a Europa e a Ásia, em dezenas e dezenas de quilómetros plasmada em planuras com algumas elevações fortificadas, especialmente à entrada do estreito do Bósforo, separando o Mar Negro do Mar de Marmara.
Pareceu-me que o turco tem duas imediatas atitudes face ao turista, primeiro o desejo de mostrar-lhe a magnificência da sua arquitectura e em especial as suas riquezas, em segundo lugar levá-lo a comprar tapetes e confecção de cabedal, os quais nas visitas guiadas são apresentados em fábricas, mostrando a confecção dos mesmos no próprio local de laboração com exposição imediata de modelos privativos à maneira ocidental numa verdadeira arte de pantominar o papalvo. Um tapete de seda pode descer de preço de seis milhões de escudos para um milhão, sendo apresentado nos bazares mais competitivos a quinhentos mil escudos depois de se marralhar com artes matreiras de compradores astutos, que eles também apreciam, para baixarem para metade. É um autêntico escândalo, esta lógica de comércio cigano, nunca visto em nenhum outro País, e tem raias de ser a arte do logro puro. Uma autêntica e inolvidável decepção.
A arte de bem servir está longe de ser uma pretensão turca, muito menos um remedeio. São pouco cultos estes asiáticos, não sabem línguas, é um desespero tentar que nos entendam. A preocupação de sacar os dólares é de tal ordem que, vejam bem, até nos lavabos dos cafés têm porteiros a cobrar pelo serviço manual individual, esforço personalizado, de despejar a bexiga ou a tripa. Quer seja depois ou antes da despesa. Nunca vi tanta ânsia de chupar o dinheirito ao turista menos avisado. Mas tolo é quem compra às vezes até o que nem sequer precisa em terras cujo comércio é aciganado, tendo ao lado da porta artigos de boa qualidade e que neste acto é preciso frisar bem, é uma ajuda à economia caseira a todos os títulos. A nossa. A nacional, ressalvando os casos em que tudo o que é nacional nem sempre é bom! Há efectivamente de tudo mais lá do que cá. O que é preciso é estar atento.
Comprei um tapete turco, mas que maravilha, disto não se faz em lado nenhum, e o palerma do burguês acha que o objecto é mesmo um espanto, e fica com um frisson de homem danado, com ganas de lá ir também gastar as suas economias, em uns objectos quase iguais aos nossos, julgando que na bagagem trará ouro das arábias ou seda das índias perdidas nos mares distantes. Tesouros de naus renascentistas, ilusórios. Não há nada a fazer, a inveja e a cobiça são do mundo desde que ele assim é, de tal modo que padecemos de erros seculares que a raça humana ainda numa fase imatura não conseguiu expurgar.
Quem compra um tapete, compra um casaco de pele de cordeiro, forrado se possível. O design é aparolado, mas o cordeiro é de primeira, vindo do sacrifício islâmico de oferta a Alá, no dia da sua celebração. E é um ver se te avias a explicar ao turista que não há melhor pele no mundo e quem aqui compra se não é santo vai ser papa ou se for mulher, sacerdotisa.
De Istambul a Ancara, a capital administrativa, são 640 Kms de avião, muitas horas de viagem por terra, quase uma jornada de Autobus. Uma jornada com paragens para petiscar, esvaziar necessidades, que o físico não aguenta suportar, no meio do calor tórrido de Agosto. De Ancara a Konya, 478 Kms, passando pelos lagos salgados. De Konya a Kusadi 400 Kms passando pelo estância termal de calcário Pamukale. E daí até Bodrum 141 Kms. Não fomos à Turquia oriental, região onde o calor faz deserto, e onde habitam sedentários a criar carneiros, ex-nómadas sem poiso certo nem raça definida, obrigados pela vigilância força da civilização actual a mudar de cultura de vida. Os curdos de lá estão perto das fronteiras onde o perigo espreita, e a ameaça é forte, por causa do petróleo que se esconde nos desertos, revoltosos ajudados pelo Iraque e Irão com promessas de santificação muçulmana. São interesses económicos em jogo e o espírito de cruzada islamita contra o cristão americano, os que movem a revolta curda.
Quando fomos visitar Marrocos, havia esse mesmo medo. Os revoltosos sarauís do deserto, os nómadas do Sul árido e arenoso dizem possuir território autónomo. A África é de facto um continente em ebulição, perigoso. Imaturo, medieval, enraivecido, pela sua própria condição de subdesenvolvimento. O Médio Oriente sempre foi um subcontinente de gente belicosa. Faz parte da sua cultura genética e continua clonada assim geneticamente. (Atenção não se enganem, quero dizer mesmo clonada).
Ataturk, primeiro Presidente eleito nos moldes ocidentais, é o pai da Turquia. Tornou-a independente no início do séc. XX, dominou as facções beligerantes, depois da 1ª Grande Guerra, dissolveu os privilégios das castas de califas e sultãos dominantes, democratizou-a, deu instrução à juventude, formou quadros. Os jovens da Turquia ocidental veneram-no (ela está dividida entre a Europa e Ásia Menor, tendo uma pequena parte junto à Macedónia). Ataturk foi o unificador dos turcos, o lutador pela independência de um território vastíssimo, que sempre foi devastado por guerras, cobiçado, dividido, espoliado. Deixou-a, depois de morrer, no trilho do nosso modelo de democracia. Só que para um território tão vasto com a Turquia, é preciso um Exército muito forte, e um vigilância constante, por causa dos revoltosos de Oeste. E isso custa muito dinheiro. E é também por isso que com uma inflação de 30, 40%, derivada da despesa pública, não coberta por receitas equivalentes, este País terá muitas dificuldades em acompanhar os europeus, e na Europa integrar-se como é sua sincera e necessária aspiração. O velho Continente, a Europa, com certeza, achá-la-ia bem vinda na comunidade das Nações, se não fosse a sua dificuldade em manter a ordem na região oriental. Seria decerto uma dor de cabeça para esta Comunidade Europeia integrar a Turquia como está, a CE que se quer pacífica, ainda que procurando tomar medidas para ter um Exército próprio e multinacional, capaz de pacificar os focos de revolta que se ateiam por alguns sítios, mais belicosos, por herança de séculos raivosos herdados, ainda persistentes, de lutas contra a vizinhança, como é o caso dos ódios e vontade de vingança que ainda subsistem nos Balcãs. Ódio que de repente explode, só porque um chefe acicata o orgulho xenófobo, o ódio ancestral, a virtude étnica, recorrendo à histórica exaltação do poder e domínio sobre os povos vizinhos. Isto é tão ridículo e obsoleto, uma atitude tão disparatada, que exemplifico desta maneira Vejam um chefe a exortar o nosso povo apelando a uma raça pura lusa de descobridores, amalgamar um exército, empenhar-se numa armada mais ou menos bem equipada e abalançar-se por essa costa africana e começar a guerrear os seus povos para novamente os dominar. Mas que coisa tão obsoleta, disparatada, quixotesca e ridícula nos dias de hoje, como se estivéssemos no reinados de D. Afonso V em guerra contra Marrocos ou D. Manuel I nas guerras da Índia e Ásia ou D. Carlos I na colonização guerreira africana. Que disparate sem sentido. Mas esta ideia, tão anacrónica, para algumas etnias ainda tem valor e neste acreditam. Para infelicidade de todos nós! Não há ninguém que seja feliz se vir um pobre na estrada a pedir esmola. E sabemos quanta miséria traz a guerra ao mundo. Somos coniventes.
Em Marrocos deliciámo-nos há dois anos com as tagines, de carne e peixe e com o chá de hortelã. Na Turquia, adorámos os yogourts, os queijos, gostámos quase sempre das almôndegas de cordeiro, ou carne assada de vitela, fruta deliciosa (comprada nos bazares, porque nos restaurantes era proibitiva, pelo preço, ou nem sequer existia nos menus). Na gastronomia não há dúvida que os marroquinos são melhores cozinheiros que os turcos. Mas os espanhóis estão acima deles, basta mesmo a célebre paelha, para os mais modestos com pouco dinheiro. Peixe quase não se serve na Turquia. Fala-se da poluição impeditiva do Estreito do Bósforo, por ser atravessado por petroleiros. No Sul fritam-no e sabe sempre ao mesmo, isto é a muito pouco. Come-se porque é peixe e estamos habituados a variar. É´ preciso muito boa vontade para dizer que o peixe deles sabe a peixe. Mas comemo-lo só para matar saudades.
Foi em Bodrum, a famosa Halicarnasso grega, onde comemos peixe.
Bodrum, no mar Egeu, rodeada de ilhas gregas, excepto Chipre que está dividida em duas por um pacto de paz e de guerra, foi a terra, como dissemos, de origem de Heródoto, cognominado «o pai da História», autor de uma escrita historiográfica sedutora e segura. Fiel à busca da verdade nas fontes onde se baseou, ganhou assim notoriedade. Tendo viajado imenso deixou para a posteridade lendas bem contadas das terras que visitou. Todos os historiadores consideram que os seus textos são um monumento da antiguidade helénica. Já dissemos que ele considerou este céu de Bodrum, o céu mais bonito do mundo. É-o sem dúvida. A ele me referirei em texto próprio e único.
Perto, ali a 20 minutos de barco Expresso da antiga Halicarnasso, a ilha de Cós recebe-nos com invulgar beleza. Cós foi a ilha onde nasceu Hipócrates, o pai de Medicina. Como já perceberam, estas regiões estão carregadas de história antiga. Suam a antiguidade por todos os poros. Nas pedras lavradas, nas muralhas, nos fortes, nos vestígios das casas, cisternas e palácios, nos aquedutos e pontes, nas colunas. Na verdade, Hipócrates foi o mais ilustre médico da antiguidade. Baseava os seus diagnósticos na observação do doente, as unhas, o rosto. É conhecido e ainda hoje se usa o juramento de Hipócrates, no fim dos cursos de medicina, lembrando que o médico tem de manter sigilo rigoroso acerca dos males físicos dos doentes. O mesmo acontece com o padre, no juramento de sigilo acerca dos males morais dos seus diocesanos pecadores, e os advogados também o deveriam fazer acerca dos males sociais e económicos dos seus clientes. Não vos vou falar do antagonismo entre Hipócrates e Galeno, seu rival e com que quem estava sempre em desacordo, sumariando-se este antagonismo no verso: Hipócrates diz sim, mas Galeno diz não.
Por falar em mudanças de nome (o caso de Bodrum), também em Marrocos houve o nome de Mazagão. Mazagão foi fundada pelos portugueses, e hoje chama-se El-Jadida, mas cada esquina das ruas onde o arquitecto João de Castilho se notabilizou, lembra a nossa gesta guerreira. Em El-Jadida podemos ver as muralhas portuguesas canhões que foram nossos, misturados com outros franceses e espanhóis, o velho porto de pesca, que tem nome nosso, o palácio do governador luso, a cisterna feita em 1441 pelas mãos dos nossos guerreiros, sendo fortim antes de se muralhar os limites da cidade, passando a cisterna depois das muralhas. Não há dúvida que falar em Marrocos, é enaltecer a nossa gesta de povo guerreiro e aventureiro na Península e no Nordeste de África. O resto da África, Índia, Ásia e o Sul americano, dá outra visão da saga lusa, que achou novos mundos no Mundo. Não fica mal termos orgulho disso, antes pelo contrário, nesta época de alienação e “vil tristeza”.
O mar Egeu é o da lenda de Tróia, de Éfeso, de Halicarnasso. Lembram-se do enorme cavalo grego de madeira que ficou dentro das muralhas de Tróia. E depois dos autóctones estarem a dormir, da barriga de cavalo desceram soldados gregos que dominaram a cidade, pondo-se assim fim a dez anos de cerco. Pois é, o Mar Egeu foi palco de lutas e lendas, escritas em obras célebres, de escritores e historiadores famosos ainda nos nossos dias. Leia-se a Ilíada e Odisseia. Podem ter destruído cidades inteiras, hoje montes de ruínas, mas os livros ficaram e são indestrutíveis. Até a antiguidade tem a sua perenidade, mas se não houvesse livros físicos, haveria sempre o livro da memória humana, que se verte em literatura oral de geração em geração. Os livros, estes que estão na nossa memória, ninguém é capaz de os destruir. Hoje nem sequer há esse perigo. Só acabarão quando o homem desaparecer do Universo. Quando tudo morrer, ficando o vazio. Viva o cérebro humano no caso de todo o resto falhar!
Tróia, situada na Ásia Menor, hoje Turquia, localizada na cidade que hoje se chama Hissarlik, foi palco dum dos episódios da Ilíada de Homero. O gigantesco cavalo pariu soldados gregos (como já referi), que a tomaram de assalto, cena lendária também imortalizada em ópera por Heitor Berlioz na 1ª parte: A Tomada de Tróia.
De 1800 a 1200 a.C. foram os hititas que dominaram a Ásia Menor. Seguiram-se os Hurritas de 800 a 696 a.C., tendo-se tornado célebre o seu rei : Midas. Foi conquistada depois pelos Cimérios. Vieram os Jónios que a colonizaram, sendo estes derrotados pelos Persas. Alexandre, o Magno (334 a.C.), correu com os Persas à espadeirada na Anatólia. Aí proliferou a cultura helénica misturada com o espírito ocidental. A seguir a Alexandria, é Roma que ilumina o cultura da época e em 133 a.C.. Átalo III lega o seu reino a Roma, eregindo-se então importantes obras arquitecturais: pontes, bibliotecas, templos aquedutos, teatros, ginásios, estádios, termas. A biblioteca mais bela foi a de Éfeso, a residência dos governadores romanos. Depois das cisões do Império Romano, nasceu o império Bizantino. Roma cai sob o as mãos do Bárbaros e Constantinopla torna-se a capital do Império Bizantino. Centro do Mundo civilizado, ela atingiu o seu apogeu sob a sábia autoridade de Justiniano, Séc. VI, com a construção de Santa Sofia, Catedral, hoje Mesquita, autêntico ex-libris da cidade. Os Persas continuaram a ameaçar. A dinastia Macedónica retoma o domínio em 1054, repele Russos e Búlgaros. Bizâncio passa a ter no Médio Oriente um esplendor invejado, ajudada pelos genoveses e venezianos. O final do séc. XI foi marcado pelo cisma : dividiram-se os católicos romanos para um lado, os ortodoxos para outra banda. Bizâncio no séc. XII é ajudada pela Europa cristã. Foi a época das cruzadas destinadas a libertar Jerusalém. Os Seljúcidas ainda no Séc. XI apareceram na Anatólia e conquistam rapidamente a Pérsia, a Síria e uma parte das Índias. Cai o Império Bizantino. Konya torna-se um importante centro religioso islâmico, habitada por importantes poetas e artistas, como o idolatrado Mevlana. Os Otomanos entretanto progridem pela Europa conquistam a Grécia e a Hungria. Após dez anos de luta contra os Mongóis, o Império Otomano floresce então como nunca. Um dos sultãos anexa o Egipto e abre as portas da Síria e da Palestina. O sultão Selim I adquire o título de Protector dos Lugares Santos e transmite aos sucessores título de Chefe espiritual de todo o Islão e Sucessor do Profeta Maomet, herdeiro dos califas. Solimão «o magnífico» (1520-1566) marca o apogeu poderoso dos otomanos, conquista Belgrado, Rodes, subjuga a Hungria, cerca Viena, sem se apoderar desta, conquista o Azerbeijão e a Mesopotâmia (Bagdade em 1534). É´ a época duma administração celebrizada pela escolha que ele fez dos homens competentes, que ficaram notáveis para os vindouros. Na arquitectura foi celebrizado pela construção da Mesquita Solimão, objectivada para superar Santa Sofia, como de facto aconteceu tendo contratado um grande mestre: o Arquitecto Sinan. Depois de várias guerras com os povos vizinhos, tendo-se aliado na I Grande Mundial a favor dos Alemães, a Turquia é desmembrada. É o general Mustafa Kemal que põe ordem no território decadente e apático, submetido ao fausto inimaginável e ao deboche dos sultãos, contrastando escandalosamente com a pobreza do povo. Torna-o independente, homogéneo, democratiza-o, e passa a ser o actual “pai da Nação”. Morreu-lhes o “pai”, mas a democracia continua na Turquia. Com todas as suas naturais dificuldades pela sua imensidão do seu território, difícil de galvanizar, ao que se junta um vasto cruzamento de raças, a ameaça dos vizinhos orientais, que dão força aos curdos.
A República foi proclamada a 29 de Outubro de 1923 e Mustafa Kemal Ataturk torna-se o 1º Presidente. Faz importantes reformas:
Abolição do califado, dissolução dos tribunais muçulmanos e dos estabelecimentos religiosos de ensino; o uso do véu e do fez foram interditos,
Instituição dos novos códigos civil, comercial e penal.
Substituição dos caracteres árabes pelo alfabeto latino. Separação do Estado e Religião. Abolição da poligamia e obrigatoriedade do casamento civil
adopção do sistema métrico, as mulheres obtêm o direito de voto e de elegibilidade nas eleições nacionais, a instrução torna-se obrigatória e gratuita em escolas mistas. Obriga os cidadãos a tomar o nome de família.
A Turquia é, como foi dito, um País de cruzamentos: cruzamento de rotas, cruzamento de povos e raças, cruzamento de culturas. Um povo identificado com os cruzamentos, e cuja juventude aposta em definir-se assim, aceitar-se e conviver nesta diversidade. Os curdos da Anatólia Oriental desestabilizam-na, todavia. E não se sabe qual será o futuro. Mas a aposta é forte nesta identidade, e a juventude não desarma.
O que o turco procura, hodiernamente, do modo melhor que sabe, é transmitir ao turista o apelo ao deslumbramento pelas suas riquezas passadas, épocas de impérios esplendorosos, tais como o de Bizâncio, o Otomano, hoje repartido por maravilhas expostas em Museus, incluindo os museus ao ar livre: os palácios e as mesquitas, também faustosos. Aparte isso, o que mostra é a variedade de regiões, a fertilidade dos vales, o espectáculo sublunar da Capadócia, as ruínas ainda em recuperação de Éfeso, que de facto vale a pena visitar (a Grécia está aí presente, e Roma), os Lagos Salgados, as Termas de Calcário, o lugar de culto à Casa da Virgem Maria, que veio falecer na montanha Bülbül em Éfeso, protegida por S. João. O Papa em 1979 veio ao local e declarou este um lugar santo de peregrinação. Os Islamitas também acorrem ao local, pois consideram Cristo um profeta da mesma estirpe de Moisés ou Maomet, sendo este o seu último mensageiro, que idolatram. Maomet anunciou a vinda futura do Salvador do Mundo, o verdadeiro filho de Deus.
Tudo o resto é a caça à bolsa do turista. Grandes bazares, uma desconsertante maneira de negociar, uma ciganagem incrível, assustadora, intimidante, sem crédito nenhum, e um serviço deficiente nos restaurantes, nos hotéis, um diálogo impossível com os servidores, uma simpatia reservada à gorjeta, em suma um negócio verdadeiramente doloso.
O que nos leva a recordar outro País islamizado: Marrocos. Este não é tão escandaloso a negociar, embora seja também uma peixeirada de venda à antiga portuguesa. Nunca se sabe se nos estão a comer por lorpas. Contudo, Marrocos é um País que transmite, só por si, mistério, encantadoras lendas de Ali-Babá e do Aladino, além de outras, a magia na praça de Jama Afnar, que desaparece com o Sol e com desaparece. É efectivamente a magia que domina esta praça de Marraketch, a lamparina de Aladino sempre presente, de dia desoladoramente vazia, de noite repleta duma vida do tamanho do Universo, que extravasa o seu próprio recinto, recheado de domadores de serpentes, camelos, endireitas, faquires, pregadores, vendedores de banha da cobra, vendedores de frutas, comidas e bebidas, dançarinos, acrobatas, adivinhos, dentistas por atacado. É´ mesmo uma noite das mil e uma. Sai dos contos de Xerazada num tapete voador.
Já que não tem a Capadócia para expor, Marrocos leva-nos a Ouarzazate no deserto, onde Robert Aldrich filmou “Sodoma e gomorra", tenod como pano de fundo a alcáçova de Ait-Bem-Haddou. Aí produziram-se os filmes mais famosos com a marca americana, Hollyoodesca, sobre temas bíblicos: Ben-Hur, Os Dez Mandamentos, Cleópatra, Moisés, etc. As condições atmosféricas são tão propícias à fotografia que consegui, não sei como, pôr o arco-íris num regato dum vale entre colinas ao pôr-do-sol. Se Heródoto tivesse ido a Ouarzazate não teria dito com certeza que o céu de Bodrum era o melhor do mundo. Ouarzazate é-o sem grande fama, e esta advém-lhe isso sim das auroras e dos crepúsculos deslumbrantes pela limpidez atmosférica supernatural.
Cada região puxa a brasa para a sua sardinha. Tenerife orgulha-se de ter o melhor clima do mundo. É de facto soberbo, mas vale a pena compará-lo com as ilhas do Mar Egeu. Nestas acrescentemo-lhes um mar imaculado, quente, paradisíaco, que as Ilhas Canárias não têm.
A Madeira é a região das flores. Os Açores o local das furnas. O Algarve do Sol. O Sul de Espanha do Sol e Mar, inferiores aos do Mar Egeu.
Em África, conhecemos um local paradisíaco, não sabemos em que estado se encontra hoje. E´ a Ponta do Ouro a uma centena e tal de Kms da actualmente designada Maputo, pela boca dos moçambicanos maputinhos. Não há que levar a mal, coisas de brincadeiras inofensivas. É´ com ternura e simpatia que o digo, pois afeiçoei-me a essa terra, onde fui oficial e professor, casai e nos nasceu o João Paulo, que aí foi e ainda é benfiquista. A ponta do Ouro tem mar límpido, cristalino, transparente até às rochas, tem um Sol como não há outro mais esplendoroso, tem as areias mais finas do Universo. Não há dúvida que o Mundo ainda está por descobrir, porque só quem lá esteve é que tem o privilégio de saber estes segredos.
Estávamos em Kervansaray. O Sol anunciava-se pela luz e pela ausência. A sua ausência dizia muito mais do que a sua presença. Como acontece com qualquer deus. A luz vinha a caminho vagarosamente pelo céu fora, acendendo o azul e clareando as nuvens que espelhavam a lã alva, revertendo cinza para o contraste. Os montes eram silhuetas, dum outro mundo projectado neste, ganhando forma e contornos.
As mulheres demoravam-se na casa própria da sanita, gemendo pela força aplicada na expulsão dos excrementos que teimam em não conhecer a luz do dia e saborear as voltas que levam nos esgotos até encontrarem a água que os oxigena e os elimina.
Mas, que contraste súbito me vem à escrita !... Excrementos em tal beleza...
A verdade é que a beleza precisa da fealdade. A bela não vive sem o monstro ! E´ ele que a abrilhanta, a destaca e lhe dá o máximo de esplendor. Põe uma flor ao lado dum monte de bosta de vaca, verás que é ele que a transforma na mais bela preciosidade do mundo.
Quando o Sol nasce em Kervansaray é tão só uma miragem de espera resplandecente. Aos poucos, a minutos contados na sucessão do tempo, as ilhas nascem, como se fosse uma imitação da primeira criação, os seios distinguem-se no horizonte, soerguidos do meio duma toalha de água azul numa redonda gota lisa do tamanho do horizonte.
Os montes derramam a luz pelas colinas no renascimento dos tojos, dos ciprestes, dos pinheiros e das oliveiras.
A água apela. O corpo nela penetra e nela encontra o prazer da sua afirmação e do seu vigor, é um acto de amor, abraçado nos movimentos que nos trazem à superfície e nos faz deslocar dentro dela até percorrermos metros e metros da sua extensão infinita. É a delícia da natação, que deixa o corpo saudável, agradado pela combustão das toxinas e dos hidratos de carbono. O Sol seguidamente seca-nos, dá-nos o ar trigueiro a transpirar de saúde e satisfação.
A água tépida e o ar quente, uma temperatura variando para uma e outro entre os 25 e 30º centígrados acolhe os adoradores do Sol, o corpo rejubila. De tal modo, é um paraíso climático que muitos artistas europeus vão acabar os dias da sua viagem terrena em Zorba, a 5 Kms. de Bodrum.
Os melhores hotéis abarcam baías de sonho. Apesar da falta de areia, os empresários adornam as bermas do mar com convés de madeira. É´ neles que os apaixonados pelo Sol e pelo Mar se estiram, com uma vantagem em relação à areia, a de não se sujarem na conspurcação habitual das praias, como são as que por aí vemos.
Há uma, contudo, uma estória sub-reptícia a contar. Uma estória mais ou menos brejeira, simbólica, melhor alegórica com alguma ironia: a estória do tripé.
O tripé que me acompanha para fixar memórias visuais, belezas naturais, rostos cheios, grandes, pequenos, repletos de infinito significado, animais espantosos e árvores fantásticas. Rios e regatos esplendorosos. Momentos preciosos. Convívios inolvidáveis. Os que ficam e se fixam para sempre. Até o mundo acabar... connosco ! Ele acaba sempre connosco, façamos o que façamos. Os vindouros nos conservam certamente. Se assim acharem por bem. Compete-nos fazer por isso...
Pois o tripé teve que se lhe diga ! Ora o esquecia, ora era impedido de entrar nos Museus. O tripé não gosta destes esquecimentos, fruto da idade, nem que o impeçam de afirmar a razão pela qual veio ao mundo. A Rute, a nossa guia, está solteira, morreu-lhe o namorado na guerra curda, na Anatólia Oriental, lá para a fronteira com o Irão ou do Iraque. Quando falamos de amor, ela chora. Por isso, eu deixo o tripé no autopullman a ver se vai com a Rute, se lhe faz companhia, se ela o adopta depois da viagem, mas a Rute não lhe liga nenhuma, e ele ofende-se. Fica ofendido e confessa-se a mim. Dou-lhe coragem e enalteço as suas virtudes e ele fica mais satisfeito. O tripé não é coisa que se despreze, é um objecto de precisão, tenho necessidade de o enaltecer, senão não há mais fotografia para ninguém. Ele às tantas amua e faz greve, ou rejeita-me com alguma avaria por ele inventada e concretizada na realidade.
Durmo com o tripé porém para lhe mostrar que não é rejeitado, ele me acompanha sempre, se o esqueço logo amua. Há muita gente que não tem tripé, como é o caso do Eurico... quem o diz é a Ermelinda gritando de desconsolo. Mas é só por graça que o diz porque o Eurico tem um tripé que parece uma trituradora. Dispara em tudo o que lhe aparece. E´ de facto assim, o tripé é tão valioso, é como o Midas que da pedra fazia ouro !
Mesmo nas cidades subterrâneas da Capadócia, o tripé mostrou-se à altura dos seus deveres. A escuridão deu realce às formas retratadas. Que prodígio! Não sei de que época é o mausoléu hitita, mas é uma minipirâmide... será que os faraós conheceram esta pirâmide e um deles resolveu pôr uma enormidade de escravos em Gize a trabalhar no seu sarcófago.
Não vás de óculos escuros, diz-me o tripé, podes cair nalgum poço destas catacum-bas. Eu lhe agradeço. Ele é meu amigo. Ia de facto caindo. Mudo de lentes.
Como passámos perto de Konya por uma aldeia que anunciava quantas raparigas na mesma buscavam noivo, recorrendo a garrafas grandes vazias postas no telhado da casa num lugar que se visse das estradas, eu disse ao tripé que o ia instalar na praça central pública daquela localidade para chamar as solteiras anunciadas e com elas namorar ou declarar-se às que quisessem ser namoradas. Ele acedeu. Numa noite contei tantas que não haveria harém que as contivesse a todas. O tripé achou-se um engatatão, um grande Casanova, um machão, um Marialva de estirpe ribatejana.
Todavia, o tripé foi duma necessidade e utilidade preciosas: serviu-me de muleta e deu pancada nas ruínas de Éfeso à hidra de sete cabeças e a um deus grego, não sei se foi Zeus, se Apolo (se foi este foi só por inveja), se Afrodite ( se foi esta, foi só para experimentar se o ditado é fiável, aquele que diz quanto mais me bates, mais gosto de ti), se Dionísio (se foi este, foi para ele acabar com as bebedeiras que causam cirroses de morte), ou teriam sido as cacetadas que espetou no S.to Onofre, o santo hermafrodita que de mulher boazona passou a homem viril com pêlo na venta e o resto que sobeja ? Lindo tripé arranjei que passou à categoria dum autêntico certificado multi-usos !
Perto de Bodrum, considerando que foi duma inestimável ajuda, resolvi dar banho ao tripé. Ele consolou-se com as águas mornas e puras, todavia refrescantes para um corpo muito mais quente, do Mar Egeu.
Houve ainda e finalmente a Nádia, que lhe deu uma olhadela, achou-o atraente, apesar da idade (o tripé já vai numa idade adulta - um quase nada avançada, vai-se chegando aos sessenta qualquer dia) e deu-lhe uma piscadela de olhos que ia resultando, não fora os compromissos inadiáveis e rigorosos que tinham de ser honrados na viagem.
Ai, o filho da mãe, deveria ter mais vergonha, este tripé, não se devia ter metido com a Nádia, essa trintona bem feitinha aparecida a dar-lhe troco e a atirar-se com atracção! Ela ficou decepcionada porque contava com algum sonho de mil e uma noites. De castigo o tripé, sangrador daquele coração parisiense, repousa agora, hiberna, até nova viagem ainda não programada, mas tudo leva a crer que será o Egipto...
Portugal, Setembro/2000
Daniel Cristal