Em Praga, sem Kafka e sem barata
Estava-me devendo Praga. Lá fui. Só lamentei haver demorado tão pouco. Foi bom porque desmontei vários preconceitos. De outros viajores. De livros de turismo. Houve até quem me recomendasse levar toalhas de banho e papel higiênico, tal a pobreza que me esperava. Que não havia Banco aberto vinte e quatro horas por dia para saque automático de dinheiro. Que faltavam hostéis. Que os motoristas de táxi metiam a mão no bolso da gente.
Antes devo contar que, no avião da Lufthansa, a caminho de Frankfurt, a aeromoça, depois de me ajudar a apertar o cinto, indaga: "Tá bom?" Pensei que era alucinação. Não era. A moça, às vezes, viaja pro Brasil a serviço. Já passou duas semanas em Salvador. Fala o português de Portugal e nos entende. Na volta por Munich, a empresa alemã nos pôs num bimotor, o Fokker inglês. A viagem, porém, foi tão boa que nem deu para protestar.
Pra ser verdadeiro, não vi nada dos incômodos que me anunciaram. Quando perguntei a um motorista de táxi por quanto me levaria de volta ao hotel, ele informou que, por aproximadamente, trezentas coroas
Embarcamos. A corrida saiu por pouco menos do que previra e ele fez questão de devolver, rigorosamente, o troco.
Vi muitos hotéis. Até de alto luxo, cinco estrelas. Tirei dinheiro daqueles caixas rápidos, na rua. (O que mais encontrei, nas ruas do centro, foram casas de câmbio. A cada passo, você se depara com a placa "Change"). Paguei a conta com o cartão. Fiquei numa pensão familiar limpíssima, com direito a ser recebido, no aeroporto, pelo proprietário devidamente motorizado.
Quando fomos comprar os tíquetes pro metrô, embaraçamo-nos no manejo da máquina. Um cidadão se aproxima de nós, cheio de boa vontade, vai até a bilheteria, completa, com dinheiro miúdo, o que falta e nos acompanha. Bem-humorado, nos leva a tomar uma bebida, no Café Europa, o mais famoso da cidade, com um médico, seu patrício. Ele é curdo, nasceu no Iraque, casou com austríaca, mora em Viena e nos Estados Unidos, tem dois passaportes, um deles, americano, e nos dá dois cartões de visita, um da cidade em que mora e outro de Miami, em que se apresenta como consultor de negócios, possui ainda um irmão jornalista em Praga. Vocês pensam que os maus-caráteres dos cabeças-chatas a quem ele deu segurança, nos primeiros passos, na República Checa, lhe ficaram gratos? Que nada. Viram, nele, a simpatia dos canalhas e ficaram matutando sobre o que ele faz na vida, se vende armas, se é agente da Cia, se tem algum tipo de negócio escuso.
A antiga Capital da Boêmia tem arquitetura imponente e severa, vestígio dos vários tempos de grandeza. É uma espécie de Paris da Europa central sem a feérie, o brilho, la joie de vivre da original. Vale a pena conhecer seus castelos, suas torres, seus museus, suas igrejas, suas sinagogas. Passear pela cidade velha, por sua Avenida Venceslas, a Champs Elisées de lá, dez vezes menor em comprimento, pela Ponte D. Carlos, com sua estatuária pesada e austera, ir à Casa de Franz Kafka, observar a passagem das horas no relógio astronômico do Hotel de Ville que quando soa o gongo, a Morte agita sua foice, desfilam os doze apóstolos, vemos ainda as estatuetas do avarento, do galã, do paxá turco sonhando sonhos de conquista territorial.
As ruas são limpas. Não se registra, ainda, sinal de grafiteiro nem de cartazes pregados indevidamente. Talvez como lembrança do comunismo não há bancos nas avenidas nem nas estações de metrô. Será para não estimular a preguiça? Volto lá pra descobrir. O metrô também é asseadíssimo. Que nem o de Londres, algumas estações são tão profundas, como a do Museu do Rei da Boêmia, que dão vertigem, a impressão de que chegam a Japão. Não vi muitos mendigos em Praga. Mais precisamente, só reconheci dois. Identifiquei ainda uma prostituta, apressando-me para sua sortida noturna em frente ao Hotel Europa que abriga café art nouveau do mesmo nome, famoso em toda a Europa, aquele a que fomos com o filho do Curdistão. Apenas uma. Pode ser que haja mais. Não fui lá fazer tal tipo de resenseamento.
O costo de vida, enquanto não chega o macabro receituário do FMI, é baratíssimo. Num restô de luxo, Pension U Zlaté Studne, sopa de brócolis divina, carne, prato principal, sobremesas, um uísque, cervejas e cocas para quatro pessoas saíram por 1.250 coronas, isto é, a dez dólares por cabeça. Um sanduíche custa menos de um dólar. Aproveitem enquanto é tempo.
Estive na casa de Kafka e não encontrei Gregor Samsa nem a barata. Pra ser exato, vi foi uma mosca. Solitária mosca checa, sobrevivente ao centralismo democrático, à revolução dos veludos, à restauração da democracia. Mandei falar desse insego a um amigo e os filhos me crucificaram por isso. Por registrar o insólito, o inesperado.
Lembrei-me, logo, de minhas passagens por Itapajé quando ia ou vinha de Sobral. (Hoje a estrada passa por fora da cidade. Antigamente, não). Havia parada obrigatória para a água-de-coco, a paçoca ou o arroz-doce. De longe, este aparecia pretinho como se estivesse enfeitao de cravos. Era não. Eram as moscas que disputavam a guloseima com os humanos e com mais persistência.
Quando
os meninos me criticaram lembrei-lhes de Geraldo Fontenele que passou temporada na Europa, cobrindo a sagração do Cardeal de Fortaleza. Voltou ao Brasil por Lisboa. Foi ali que reviu moscae e se deu conta de que começava a botar o pé, de novo, no terceiro mundo. Não adiantou. Aí apelei. Falei de Jorge Luís Borges que, ao longo de sua primeira temporada na Europa, quando criança, em Genebra, mostrou surpresa ao ver "mouches, mouches!". A autoritária mãe recriminou Borges e a irmã Norah, pelo espanto ou pelo medo demonstrados, retrucou: "Que bobagem! Vocês foram criados entre moscas".
Lustosa da Costa
Do livro: Ao cair da tarde, ABC Editora, 2006, Rio-São Paulo-Fortaleza