PARATY SONOLENTA

Não conhecia Paraty, apesar de morar no Rio de Janeiro a vida toda.
Cidade histórica, ao passear hoje pelas suas calçadas, não se consegue imaginar como era a vida antes, há alguns séculos.
O Centro Histórico virou ponto de encontro da rapaziada de vários pontos do mundo. Há tantos turistas internos, quanto externos. E dezenas de bares enfileirados, cada qual com sua atração neônica mais colorida, afim de atrair fregueses, como mariposas, pela luz.
Cheguei à noite, recebendo o impacto das luzes, do burburinho típico das noites cariocas, transportado, como por mágica, para um cenário de sobrados e calçamento de uma época apenas conhecida pelos livros de história.
A cada esquina, escuta-se mais línguas diferentes que num aeroporto internacional.
Os habitantes da região são facilmente identificáveis, porém seu local de diversão não é bem ali, onde concentra-se a nata dos comerciantes e os preços elevados para os visitantes.
Paraty é uma mulher encantadora. Boa anfitriã, sabe receber como ninguém, mas guarda misteriosamente seus segredos aos que se derem ao trabalho de observá-la e ouvir seus sons, em respeitoso silêncio.

Do parapeito colonial, vejo a cidade despertar.
Ainda há rastros de maré nos calçamentos de pedras grandes e lisas, entrecortadas por outras mais hostis. Assim como o cheiro de maresia e flor, que nos penetra as janelas e as narinas, num convite aos poetas e pintores.
Passarinhos inconformados com o silêncio fazem arruaça nas árvores, muros e fios elétricos entre os postes. Brincam de ser feliz, ignorando a noite prolongada da véspera.
Um ou outro bem-te-vi arrisca-se a prever o tempo, arauto de chuvas inconvenientes. Mais chuvas. A maré da véspera, quando choveu torrencialmente, já havia invadido as ruas, como uma Veneza Tupiniquim, onde o remédio é arregaçar as calças, tirar os sapatos, e se aventurar pelas pedras, feito sapos corajosos e impacientes.

Paraty espreguiça-se lentamente, alheia a guerras, a crises e a trânsito.

A pálida turista, entre grata pela falta de sol e assustada com a beleza selvagem do lugar, sai pelas ruas desertas para a furtiva caminhada, como que se esquivando dos olhos e dos homens.

O homem em trapos, impregnado de álcool e solidão, conversa consigo mesmo, único a parecer ouvi-lo, blasfemando sobre a mulher que, provavelmente, não suportou a dor de perdê-lo e perder-se para o vício.

O rapaz na bicicleta carrega, no bagageiro, a destruição e a política dos jornais de Domingo, enquanto a caseira traz o pão fresquinho para o desjejum dos hóspedes sonolentos da pousada.

No alto do telhado, um gato preto assiste placidamente o descortinar de mais um dia comum. (Será que ele sabe que é Domingo?). Indiferente aos ruídos da aurora, ele aguarda por alguma coisa, talvez seu par, talvez seu dia, naquela posição felina, com a cauda de lado, sentado sobre as patas traseiras e com as dianteira esticadas, meio que altivo, com aquele olhar de gato distante.

Dois habitantes cruzam-se sob minha janela, sem o menor pudor de dialogar com platéia, e acordar, com seu elevado tom de voz, quem perde tempo deitado. Trocam palavras exaltadas e pouco compreensíveis, mas acredito que falassem meu idioma.

As pedras da rua parecem na expectativa de novos pisares, de banho tomado pelo mar na véspera, prontas para as crianças, os saltos e as quedas.

A palmeira acena, serena, ao longe, como que desejando-me um bom dia. Sorrio-lhe de volta, em retribuição à alegria de percebê-la. E sacudo os cabelos, numa atitude de liberdade que ela me inspirou.

Apesar das nuvens cinzentas e da brisa tímida, já posso sentir o modesto mormaço, o que me invade da sensação de aconchego e calma.

O som das casas despertando começa a preencher Paraty dos barulhos do dia.
Abelhas parecem perceber meu suave perfume floral, e, antes que me queiram roubar o néctar, retiro-me da sacada, de modo a manter a pele íntegra e salutar.

Olhada rápida pela rua. Um pintor chega com sua tela e aquarela, reproduzindo, em pouco tempo, as cores naturais de Paraty.

E aquele gato, impassível, ainda espera.

Lílian Maial

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