CONHECIMENTO DO MAR

            Eu estava no Seminário São Francisco Xavier, em Rio do Oeste, SC, e um dia, numas férias de meio do ano, fomos conhecer o mar. Eu tinha uns quinze ou dezesseis anos de idade e éramos uns quinze ou dezesseis garotos descobrindo a beleza pela primeira vez.

            Fomos a Porto Belo, uma praia diminuta e quase ainda não tocada pelo homem. Não tinha nada da Porto Belo de hoje. Era uma praia deserta, e o vento soprava, gemia, à noite, como se vindo do pulmão dos mortos, de todos os afogados do mar. Tufos de mato, uns sobre os outros, dançavam na praia, gesticulavam, reverenciavam à direita e à esquerda, como se fossem fantasmas dançando uma valsa sinistra. É o que ficou na minha imaginação.

            Tinha lá as suas seis ou sete casas de pescadores, mais nada. Mas esse mais nada era tudo: era o mar e somente o mar. Era o "belo mar selvagem, tigre das nossas praias solitárias". Lembro o poema de Vicente de Carvalho porque ilustra bem o que senti. A presença da beleza, o choque da descoberta da beleza. A pureza selvagem do mar, como no primeiro dia da criação. O mistério do tigre, o exótico, o desconhecido, o perigo como uma ameaça vinda das brumas da fantasia. E o sentimento da solidão vindo do tigre, da praia, do mar. E da beleza, que é uma forma de solidão.

            Eu nasci no mato e conheci a beleza como um bicho conhece o seu habitat. Andei com o húmus nos pés e nos poros e nas veias. Fui irmão das plantas na roça e dos animais na invernada. Fui cria da terra como todos os frutos da terra. Mas eu não sabia o que era a beleza, eu simplesmente a carregava no sangue.

            O mar me deu o impacto: isto é a beleza. O mar me deu a sabedoria: quando o homem
vê pela primeira vez o mundo. A beleza é o deslumbramento, é quando você vê o que não sabe que poderia existir. A virgindade da existência é a beleza, é o deslumbramento de todos os sentidos. Nós não a vemos, não sabemos o quanto vemos. É preciso um impacto e então abrimos os olhos da sensibilidade e vemos o que não sabíamos que víamos. Nós não conhecíamos o tamanho da nossa grandeza.

            O homem é pequeno diante do mar como uma gota d'água ou um grãozinho de areia. Diante da grandeza do mar o homem conhece a forma da solidão. É o universo sem fim que se abre e se abre cada vez mais e leva o homem a fechar-se em sua concha. É quando se afoga no sofrimento parindo a pérola da beleza.

            Éramos uns quinze ou dezesseis garotos com os olhos amortecidos pela clausura do seminário e descobríamos que sabíamos ver e descobríamos a face da beleza.

*

            Andamos e andamos pela areia e nos queimamos de sol e subimos montes e os montes eram de pedra e nos machucamos nas pedras. Tudo para chegar à Praia do Perequê. Saímos de Porto Belo por montes desertos e areias desertas e estradas desertas. Descampados. Ouvia-se o silêncio nas pedras e na areia e no mato ralo. Comungávamos a devassa daquele silêncio. Tudo para chegar à Praia do Perequê.

            O que esperávamos encontrar? Uma praia mais devassada, o mar abrindo-se para o infinito, uma aventura maior do espírito ou apenas o mar sempre mais mar paralisando os sentidos no estupor de sua presença viva. Ou simplesmente andávamos porque é bom andar e é sempre uma aventura não se saber o que existe no fim do caminho e sabendo que nenhum caminho tem fim.

            O que encontramos? Encontramos o velho do Perequê. A praia era bela, estrondeava de tanta beleza. Era batida de sol e mar e brilhava e refulgia e pairava no ar de tanto fulgor de  sol e mar. Mas o que dominava a paisagem era um pequeno velho sentado numa pedra como um deus antigo. Uma grande pedra muito branca e o velho imóvel como a imagem da imobilidade. Nós o rodeávamos e as rugas brilhavam ao sol e ele era a figura lendária de um índio embalsamado num pote de barro. Era um deus antigo brilhando ao sol.

            Remendava uma rede num trabalho de paciência ancestral, mas não se via movimento algum. Era um trabalho imperceptível de que somente o sol era testemunha. Por mais que olhássemos, nada se movia. Os olhos estavam parados numa direção fixa e envoltos numa membrana de luz cartilaginosa e era como se nada enxergassem. E os dedos não se moviam, eu vi que os dedos não se moviam. E o velho era como se não existisse.

            Muitos anos se passaram, foram uns quarenta e cinco anos, e ainda estou com a imagem desse velho guardada na alma. Ia dizer gravada na retina, mas quem grava ou guarda é a alma. Se me disserem que são modos de falar já caídos em desuso, sem sentido hoje, direi que o mais íntimo do homem vive dessas imagens da memória  que  não  se  gastam, mas crescem e elevam e exaltam o significado da existência.

            Diria mesmo que o velho do Perequê nunca existiu ou que eu nunca o vi e que o que permanece é uma imagem de quando o tempo pára. Direi que é a imagem da beleza com o seu quê de eterno sonhada num dia de sol, sol de inverno muito frio, numa praia remota, que alimentou a minha sensibilidade, naqueles tempos.                       

  *           

A minha sensibilidade naqueles tempos tomava uns choques, abria-se. A descoberta da beleza. A descoberta da solidão, em um daqueles casebres de pescadores. Bem diversa da solidão do seminário. A solidão diante da natureza. O céu pontilhado de estrelas como uma rede dançarina nos envolvendo. A pequenez humana. Não diante dos outros homens. Não diante dos padres e dos seminaristas. A pequenez humana diante do universo.  A grandeza humana ao se descobrir bicho da terra tão pequeno. Esquisito. Glorioso. Posso jurar que voltamos outros dessa viagem ao mar. A um lugar virgem ou quase virgem do contato com o homem. Voltamos menos virgens, de espírito mais aberto às vertigens da existência. Ao conhecimento. O mar libertando-nos das cadeias que nos prendiam ao fundo da caverna. Dava-nos notícias da liberdade. Da terra dos homens. Nós conhecíamos: a terra dos homens também nos pertencia.

            O que quer que signifique essa experiência, era uma experiência nova. Talvez uma experiência pagã. Não importa. O mundo não era restrito à nossa gaiola de loja de belchior.  (No conto de Machado de Assis, Idéias de Canário, o canarinho pensava que o mundo era o brechó onde ele vivia. Machado deixa mais bonito o brechó, chama-o “loja de belchior”.)


José Carlos Mendes Brandão

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