BARCELONA, LUMINOSA CIDADE
A linha reta é do homem, a curva pertence a Deus (Gaudi)
Barcelona, a primeira impressão, aquele instante, permanece a cantar até hoje em minha alma. Revejo a gélida noite de seis de janeiro. O coração logo aquecido, seu ritmo acertado ao ritmo da festa de Reis que incendiava as ruas da cidade. Como separar a dançarina da dança?, se perguntava Yeats. Só sei que rodopiei nos dias em que lá estive. E, sempre que a revisito na memória, bailo de novo.
A privilegiada localização do hotel em que fiquei, praça Catalunya, foi vital para a mobilidade e conseqüente melhor e mais rápido conhecimento de tudo, no tempo de viagem de que dispunha. Daí partem os ônibus turísticos que levam de uma atração a outra. Aí se encontra El Corte Inglês, loja de departamentos com ampla oferta de mercadorias de qualidade (a preços razoáveis, pois estava em rebaja (liquidação)). Aí também começa a famosa La Rambla (onde se pode tanto visitar o mercado La Boqueria e se abastecer com pães, queijos, vinhos, frutas secas e o maravilhoso jamon (presunto cru) quanto assistir a um espetáculo no Gran Teatre Del Liceu - Montserrat Caballé tinha estreado na véspera, mas os ingressos para a temporada já estavam esgotados). Esta, por sua vez, termina em um ponto igualmente importante: o monumento a Colombo, no Portal de la Pau, marco que comemora a vitoriosa volta do navegador após sua primeira expedição ao Novo Mundo. Bem perto, no Port Olimpic, é possível sair ao mar em barcos chamados Golondrinas (tradução: andorinhas, que, nunca sós, sempre em bando, dando vôos rasantes sobre as cabeças dos turistas, fazem verão em pleno inverno).
Passeig de Gràcia, paralela a Rambla, entre outros motivos, merece uma caminhada. Deixei-me embriagar pelas vitrines de joalherias e sofisticadas grifes, e ainda tive a sorte de conseguir comprar na loja Vinçon, de design , uma caneta finíssima, nos dois sentidos, para Nanda, minha filha designer. Além disso, depois de tanta andança, já distante dessa área, descobri a oficina manual de alpargatas catalãs típicas: lindas, de modelos, cores e tamanhos a escolher.
A Avenida Rainha Maria Cristina, ladeada por campanários inspirados nos da praça de São Marcos, em Veneza, tem escadas rolantes a céu aberto e uma enorme quantidade de bancos para a siesta , a soneca obrigatória depois do almoço. Se em Roma, como os romanos , relaxei e cedi ao sono, até porque quase tudo fecha nesse horário.
A gastronomia é um capítulo à parte, contudo vou resumi-lo: come-se bem em qual-quer canto, dos mais caros aos mais econômicos, tanto a comida típica (paella, por exemplo, feita de arroz com açafrão e frutos do mar) como a internacional: considero que tomei a sopa de cebola mais deliciosa do mundo, talvez porque tenha me aquecido do frio de seis graus assim que cheguei, no restaurante La Poma, simples e lotado.
Berço de muitos gênios da arte, Barcelona tem, além do Museu Nacional D'ard, atrações imperdíveis. Comecei pela Catedral gótica, com vinte e oito (!) capelas laterais. Emudeci diante de tanta beleza. Depois fui a Fundação Miró, no Parc de Montjüic, que abriga os principais trabalhos do pintor surrealista, embora eu tenha preferido o Museu Picasso, ele próprio, as três casas que o compõe, uma obra de arte. E ainda fui presenteada com uma exposição extra: Picasso erótico.
Todavia, rendo-me à unanimidade, que nem sempre é burra: Gaudi é a estrela do pedaço . Duas ou três coisas que sei dele: professava uma profunda fé religiosa e difundia com fervor a linguagem e a cultura catalana, quando isso era proibido. Conta-se que chegou a se recusar a falar espanhol com um policial, o que lhe valeu duas noites na cadeia. Morreu atropelado. Não totalmente, como atesta a arquitetura que pintou em aquarela nada formal. Para começar, fui conhecer a Casa Vicens, sua primeira grande encomenda. Surpreendente. Depois, o edifício de apartamentos a Pedrera (ou Casa Milà), com a fachada curva, ondulada. E ainda a Casa Batlló, uma marca do seu estilo, particular, único, com muitos elementos diferentes, mistura de vitrais, madeira, cerâmica e ferro forjado, os três últimos considerados modernos, na época. Visitei com calma o Parc Güell, tombado como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, com um imenso lagarto revestido de cacos de azulejos a recepcionar todos os que sobem a escadaria da entrada. Por fim, entreguei-me à visão da grandiosidade da Sagrada Família, templo idealizado por ele, ao qual dedicou quarenta e três anos da vida (o contrário daquela letra de música dos Paralamas (“a arte de viver da fé...”): a fé em viver da arte) e apenas conseguiu ver terminadas algumas partes, entre elas a monumental fachada “do Nascimento” e uma das dezoito torres projetadas, com um elevador que leva o visitante ao alto, onde o olhar parece se estender além do horizonte. Considerada, se/quando concluída, a maior da Europa. Saí tocada pela grandeza daquele verdadeiro work in progress a me lembrar quão inacabados somos, em eterna construção.
Não creio em ti, Senhor, mas tenho tanta necessidade de crer em ti, que muitas vezes falo e te imploro como se existisses.
Tenho tanta necessidade de ti, Senhor, e de que sejas, que chego a crer em ti — e penso crer em ti quando não creio em ninguém.
Mas depois desperto, ou me parece que desperto, e me envergonho de minha fraqueza e te detesto. E falo contra ti que não és ninguém. E falo mal de ti como se fosses alguém.
Quando, Senhor, estou desperto e quando adormecido?
Quando estou mais desperto e quando mais adormecido? Não será tudo um sonho e eu que, desperto e adormecido, sonho a vida? Despertarei algum día deste duplo sonho e viverei, longe daqui, a verdadeira vida, onde sonho e vigília sejam uma mentira?
Não creio em ti, Senhor, mas se és, não posso dar-te o melhor de mim a não ser assim: senão dizendo-te que não creio em ti. Que forma de amor tão estranha e tão dura! Que mal me faz não poder dizer-te: creio.
Não creio em ti, Senhor, mas se és, tira-me deste engano de uma vez.
Faz-me ver bem a tua cara! Não me queiras mal pelo meu amor
mesquinho. Faz com que, sem fim e sem palavras, todo o meu ser possa dizer-te: És.
(Canto espiritual, poema de José Palau, poeta catalão, traduzido por Augusto de Campos)
Ana Guimarães