O PARAGUAY QUE O BRASIL NÃO CONHECE

                 [N . E.: ATENÇÃO: Este relato no original contém 26 imagens. Para ver o texto com as fotos, clique aqui para ser redirecionaodo ao Blog de Blocos]

Em circunstâncias normais, eu jamais pensaria em fazer turismo ou passear no Paraguay. Mas quando um casal amigo meu, Hamilton e Patrícia, me falaram que estavam de partida para este país vizinho com o propósito de ministrar um curso de Terapia Florestal, eu praticamente me convidei para ir com eles e seus dois filhos pequenos. Afinal, terapia é uma das minhas paixões nesta vida e como minha vida está de pernas para o ar, achei que valia a pena arriscar algo fora do comum.

Faz já alguns anos, Hamilton projetou e instalou todos os equipamentos de eco-aventura dentro daquela que é a primeira reserva florestal particular no país vizinho. A eco reserva de M'Batovi está localizada a 70 km da capital do país, Assunção, e é mantida pelo casal Jacinto e Marta, empresários paraguaios que resolveram inovar na área do turismo, com este empreendimento sustentável. Funcionando já há 7 anos com guias locais, rapazes e moças, os donos resolveram aprimorar os serviços oferecidos pelo parque e pediram a Hamilton e Patrícia, um curso de meditação e consciência ambiental para todos os que estão envolvidos com os trabalhos na eco-reserva.

Meus amigos não fizeram objeção à minha companhia e depois do sinal verde do pessoal do Paraguay, combinamos que eu iria com eles, de ônibus, enfrentar as 20h de viagem até Assunção. Jacinto e Marta são compadres de Hamilton e Patrícia e se tornaram muito amigos depois que começaram a trabalhar juntos.

Antes de partir para qualquer destino eu gosto de saber um pouco sobre o que vou encontrar à frente, de modo que escrevi para Marta e pedi que ela me sugerisse alguma leitura informativa sobre o Paraguay. Gostei da resposta dela, que não me indicou nada e simplesmente citou o slogan da Secretaria de Turismo paraguaya:

Apesar da sugestão daquela que seria minha anfitriã no Paraguay, não resisti e acabei dando uma busca aleatória na internet. Encontrei coisas muito interessantes.

Descobri que o Paraguay, com seus 406 750 km2, tem bem menos gente que o estado de São Paulo, com seus 248.209 km². Enquanto o estado brasileiro tem 41 252 160 habitantes, todo o território paraguaio abriga apenas pouco mais de 7 000 000 de almas! Seis vezes menos gente em praticamente o dobro da área! Isso fica muito evidente nas largas distancias entre as casas nas periferias das cidades e no baixíssimo numero de prédios de apartamentos na capital, Assunção, que tem bem menos de 1 000 000 de habitantes.

Numa rápida pesquisa sobre a língua que se fala naquele país, fiquei sabendo que desde o ano de 1992, quando foi promulgada a constituição democrática no Paraguay, o guarani, língua falada por 90% da população, foi elevado elevado à categoria de idioma oficial e além disso foi incluída a obrigatoriedade de seu ensino nas escolas. E que existe uma terceira língua, ou dialeto, como querem alguns, que é falada no dia a dia, uma mescla de espanhol e guarani, que se chama Jopará e quer dizer exatamente o que significa; mistura, mescla. Nas cidades, até por uma questão prática, já que muito do que existe hoje não existia nos tempos pré-colombianos, o Jopará é mais carregado de elementos do espanhol. Em contraposição, na zona rural, predominam os vocábulos em guarani, chegando ao ponto, em algumas regiões, de haver gente que só sabe falar o guarani.

Pelo lado mais prosaico, descobri que uma das comidas típicas do país, a sopa paraguaia, não tem nada a ver com sopa, mas trata-se de um gostoso bolo feito de milho verde, fubá, cebola, manteiga, queijo ralado e sal. Coisas do Paraguay…

E, finalmente, quando, por acaso, dei com um site da famosa Ciudad del Este, me lembrei que Paraguay é sinônimo de compras e me animei com a ideia de presentear-me com uma boa camera fotográfica. O que acabou não dando certo, já que o ônibus apenas passa por esta cidade e a exigüidade do tempo não nos permitiu nada mais além do que nosso objetivo inicial, ou seja, o curso de Terapia Florestal.

Depois de uma criteriosa avaliação, e muitas perguntas a amigos, gerentes de bancos e fóruns virtuais com gente que costuma viajar ao Paraguay, decidi que era melhor levar dinheiro vivo, reais e dólares e ir trocando por guaranis (moeda paraguaya) aos poucos, nas onipresentes casas de câmbio.

Assim, no dia marcado para nossa partida, com duas mochilas às costas, uma dúzia de sanduíches com pão integral, especialmente preparados para a longa viagem e um certo friozinho na barriga, liguei para meus amigos, para saber onde nos encontraríamos na rodoviária. Surpresa! O celular deles (o casal só tem um celular) tinha ficado com o filho de Patrícia, que me informou que sua mamãe tinha viajado para o exterior e deixado o mesmo com ele!

— Mas como assim? Eles não deixaram nenhum recado para mim? Eu sou o Chico Abelha, vou viajar com eles para o Paraguay!

— Não, eles não me falaram nada.

— …

O frio na barriga aumentou, transformou-se em um imenso abismo gelado! E agora? Será que eles já foram sem mim? Esqueceram de mim? Não podia acreditar que eles tivessem feito isso comigo. Havíamos deixado para comprar as passagens na última hora, na rodoviária de São Paulo, porque assim eles sempre fizeram e sempre havia lugares. Seria este um aviso para não viajar? Estaria eu fugindo de alguma coisa aqui no Brasil?

Toda sorte de pensamentos negativos passaram por minha cabeça. Eu deveria desistir ou dar uma de louco e ir sozinho, caso eles já tivessem partido? Mas como ir sozinho se eu não tinha ao menos o endereço ou telefone dos nossos anfitriões no Paraguay? E se meus amigos inconsciente e convenientemente, tivessem esquecido de mim? Vai saber…

Resolvi recorrer a quem sempre recorro nas horas de dúvida, o tarot! Costumo tirar apenas uma carta quando se trata de sim ou não. Saiu a Imperatriz, que considerei uma carta positiva. Senti um certo alívio, mas ainda não me dei por satisfeito e tirei mais uma, depois outra e outra ainda! Todas elas foram positivas, ou na pior das hipóteses, neutras. Mas a dúvida ainda persistia em meu coração e por isso tirei aquela que foi a última. Para minha alegria, saiu o Sol, eu podia colocar-me em movimento que tudo iria se esclarecer. E em movimento me pus, confiante agora e com a determinação de ir sozinho, em direção ao desconhecido, como o Louco do tarot, mesmo que eu não encontrasse meus amigos.

Deixei meu carro na casa de minha mãe e segui para a estação rodoviária de minha cidade. Comprei minha passagem para São Paulo e ainda estava guardando o troco no bolso quando avisto Hamilton e as duas crianças, sentados em uma pilha de mochilas cheias até a boca. Seu sorriso varreu qualquer sombra de ansiedade de que as coisas pudessem não dar certo. Nem questionei nosso desencontro, apenas contei sobre o tarot e a dúvida de momentos antes. Comentamos sobre sincronicidades, sobre silenciar a mente e fluir como o momento e eu entendi a importância das coisas terem acontecido da maneira que aconteceram. Por causa do desencontro, pude fazer um questionamento e tive a certeza de que viajar ao Paraguay era a coisa certa, para mim, naquele momento.

Compradas as passagens, ônibus lotado, às 18 horas estávamos saindo de São Paulo, enfrentando os habituais congestionamentos deste horário. A viagem toda durou 20 horas e só tivemos uma parada de 20 minutos em Ciudad del Este, para limpeza do banheiro do ônibus, cujo estado pode-se bem imaginar…! Ao longo das 12 horas iniciais, não houve uma só parada e foi servida no ônibus uma refeição (meia boca) quente à noite e um café da manhã (um quarto de boca) logo cedo. Graças a Deus houve uma pane no sistema de video, não conseguiram passar nenhum filme e por isso pude conciliar o sono sem o incômodo daquela insuportável luz azulada e do ruído de tiros, gritaria e automóveis em fuga.

Segundo a Wikipédia, “a capital maranhense, lembrada hoje pelo enorme casario de arquitetura portuguesa, no início abrigava apenas ocas de madeira e palha e uma paisagem quase intocada. Ali, ficava a aldeia de Upaon-Açu, onde os índios tupinambás viviam da agricultura de subsistência e das ofertas da natureza, caçando, pescando, coletando frutas. Nos arredores, habitava a etnia indígena dos potiguares”.

Em 1987, o governo estadual do Maranhão, iniciou o Projeto Reviver, visando recuperar e revitalizar o conjunto arquitetônico do centro histórico de São Luís. O projeto teve duas fases distintas: a primeira, dedicou-se às obras consideradas prioritárias ou emergenciais; depois, intervenções urbanas mais profundas, revitalizando mais de 200 imóveis, com 107.000 metros quadrados tombados pelo Patrimônio Histórico Nacional, restaurando o aspecto original dos prédios, através de fotografias antigas, descaracterizado ao longo dos anos. Por outro lado, um desdobramento do Projeto Reviver, o Projeto Habitacional, vem promovendo desde 1993 a fixação de famílias na área da Praia Grande, resgatando a memória histórica da cidade e do seu patrimônio arquitetônico.

Às 6h e 30min da manhã, chegamos a Ciudad del Este, onde baixaram os sacoleiros e o ônibus esvaziou-se quase que completamente. Esta cidade de fronteira, pelo menos por onde passamos de ônibus, se assemelha a um gigantesco shopping center a céu aberto, com as ruas coalhadas de camelôs. Tive arrepios só de me imaginar em meio àquela babel mercantil. Os cartazes e outdoors luminosos anunciavam todo tipo de coisa, desde eletrônicos sofisticados até roupa usada. O tipo físico predominante das pessoas que circulam pelas ruas é da raça dita amarela.

Da janela do ônibus, nas proximidades do terminal rodoviário, eu pude ver índios morando nas calçadas, em precárias barracas cobertas com plástico, pano e papelão, em meio a muita imundície. Durante a parada para limpeza do banheiro, a língua que se escutava era o guarani, cujo som me pareceu similar ao do chinês e tão incompreensível quanto a língua oriental, embora eu pudesse identificar alguma coisa parecida com o espanhol de vez em quando. Provavelmente, o que eu escutei foi o Jopará.

Os 400 km que separam Ciudad del Este da capital, Assunção, no outro extremo do país, foram percorridos em aproximadamente 6h. Trafega-se bem mais lentamente no Paraguay do que no Brasil, lá o tempo é outro. A sensação era de ter voltado atrás algumas décadas e fui acometido de uma gostosa nostalgia. Meus olhos, cansados da noite mal dormida, recusavam-se a fechar e comiam gulosamente a paisagem cheia de novidades. Minha camera Sony, velha de guerra, registrou bem umas 500 imagens nestas primeiras horas de Paraguay.

Da janela do ônibus eu podia ver muitas pessoas sentadas nas calçadas sorvendo mate ou tererê de suas cuias, às quais eles chamam de guampas (que quer dizer chifre). Mal comparando, o mate equivale ao nosso cafezinho, com a grande diferença que tomar mate ou tererê envolve um ritual cheio de detalhes e nuances. O mate é tomado quente, enquanto que o tererê toma-se frio, com água bem gelada. Tanto a um como ao outro, pode-se adicionar ervas medicinais, que são chamadas de  yuyos  ou remédios (pronuncia-se  djudjos). Abundam os vendedores de mate e tererê pelas ruas do país e invariavelmente, nos pontos de venda, há uma mesinha com uma grande quantidade de ervas, frescas ou secas. Há também muitas cuias e garrafas térmicas com água quente ou gelada à disposição do freguês e o vendedor conhece as propriedades de todas as ervas que vende, aconselhando o cliente, segundo as queixas e sintomas que este apresenta. Muitas vezes é o vendedor quem vai apanhar no mato ou cultiva os remédios em seu jardim. Claro que toma-se também o mate puro, que é digestivo, estimulante e diurético, pelo simples prazer de tomá-lo.

Dentre as ervas oferecidas para se tomar com o mate, reconheci algumas comuns aqui no Brasil. Há a losna, a erva cidreira, a cavalinha, a hortelã, a camomila, a alfavaca, o alecrim e o boldo, dentre muitas outras. Se o freguês vai tomar o mate ou tererê ali mesmo, o vendedor, munido de um pequeno pilão, transforma a erva fresca em uma pasta que é colocada na garrafa térmica com água gelada, com pedras de gelo mesmo, para o tererê. Ao mate, geralmente só se acrescentam ervas secas.

Tudo isso eu só fiquei sabendo mais tarde, depois de alguns dias de Paraguay, mas no primeiro dia, a caminho de Assunção, não pude deixar de reparar a grande quantidade de vendedores com suas mesinhas à beira da estrada.

Outra presença constante no Paraguay são as chiperias  e os vendedores ambulantes de  chipas, uma deliciosa rosquinha típica paraguaya, muito parecida com o nosso pão de queijo. Basicamente são a mesma coisa, só que as chipas levam fubá e erva doce na receita. Um pouco antes de chegarmos a Assunção, o ônibus para em frente a uma grande chiperia, a Maria Ana. Não podemos descer mas sobem moças bem arrumadas e muito bonitas, vendendo cheirosas chipas quentinhas, recém-saídas do forno. Impossível resistir a tal delícia. Pudera, já passava da hora do almoço e com certeza o horário da parada ali fora estrategicamente calculado para encontrar nossos estômagos roncando…

Finalmente, depois de 20 horas de ônibus, chegamos à cidade de Assunção. Após um telefonema e uma espera de 15 minutos, aparece Jacinto, nosso anfitrião, com um carro grande o suficiente para acomodar os cinco brasileiros e suas mochilas. Jacinto é simpático, se expressa num portunhol facilmente compreensível e durante o trajeto me esclarece que Assunção é uma cidade com menos de um milhão de habitantes, mas que cresceu tanto que acabou abocanhando cidades vizinhas, formando um conglomerado urbano de mais de 2 milhões e meio de pessoas. A cidade tem muitos poucos prédios de apartamentos, não contei, mas arrisco dizer, depois de rodar pela cidade, que estão em torno de uma centena.

O trânsito é lento em alguns pontos e Jacinto reclama que de uns tempos para cá, as coisas tem piorado muito, segundo ele, devido ao aumento no numero de veículos. Reparei que a sinalização de trânsito, principalmente a de solo, é praticamente inexistente. Lembrei-me de quando estive na Índia, país em que o ato de dirigir é muito mais comandado pelo instinto do que pela racionalidade.

Marta nos recebe efusivamente em sua casa, com uma comida quente, que se não era uma refeição paraguaia, como eu esperava, pelo menos saciou minha fome de leão, que vinha sendo (mal) enganada com porcarias durante a viagem. Todos tomamos banho e nos preparamos para a próxima etapa da viagem, ou seja os 85 km até a reserva de Mbatovi, na cidade de Paraguari, localizada a sudeste de Assunção. Por uma questão de logística, Hamilton, Patrícia e as crianças seguiram na frente e eu fiquei para ir mais tarde com Marta e Jacinto.

Pude então caminhar um pouco pelo centro da cidade, onde vi lojas que pareciam ser de 100 anos atrás, convivendo com shopping centers modernos, em nada diferentes dos que tenho visto pelo mundo afora. Naturalmente, a capital é bem mais ocidentalizada que a zona que eu acabara de percorrer de ônibus horas antes. Não havia vendedores de mate e tererê pelo centro da cidade, mas encontrei gente sorvendo mate de suas cuias nas praças que passei.

Caminhei sozinho, à noite, pelas ruas de Assunção e posso dizer que não tive receio nenhum de faze-lo. Ficou evidente que o nível da violência, que evidentemente deve existir no Paraguay, não tem nada a ver com a das nossas cidades brasileiras. Por exemplo, não vi nenhum condomínio fechado em Assunção. Contudo, à beira da estrada, no percurso entre a capital e Ciudad del Este, pude ver, com muita tristeza, pelo menos duas grandes placas anunciando Barrios Cerrados , à frente de enormes terrenos ainda vazios. No pacote de importação desse país, que importa praticamente tudo que é industrializado, não poderia faltar este estilo de morar intramuros.

Senti fome e como eu estava sem dinheiro, resolvi tirar alguns guaranis de um caixa eletrônico do Banco Itaú. Eu já havia me informado no Brasil que esta operação era possível, fazendo uso do meu cartão de débito. Antes de finalizar a operação no terminal eletrônico, me foi dito que cobrariam uma taxa de 25.000 guaranis, o que daria 5% do valor que eu pretendia retirar. Acontece que quando confirmei o valor do saque, 500.000 guaranis, apareceu uma mensagem dizendo que eu não estava autorizado a sacar aquele valor. Optei por um valor mais baixo e houve nova recusa. O único valor que consegui tirar, foi 125.000 guaranis e a taxa da operação continuava a mesma, ou seja, me cobraram 20% do valor sacado! Um roubo! Ainda bem que eu tinha alguns dólares, que foi o que me salvou de ser assaltado ainda mais…

A viagem até Paraguari, onde se localiza a eco reserva, demorou mais do que eu esperava. Sair de Assunção não é fácil, mesmo para assuncenos. Presenciei Marta e Jacinto discutindo sobre o melhor caminho e quase metade do tempo da viagem foi gasto para sair da cidade. As estradas são boas, poucos buracos, mas ninguém corre como no Brasil. A impressão que tive é que não se tem pressa de chegar a lugar nenhum naquele país. O que não vale para Jacinto, que está mais para brasileiro do que para paraguaio…

Chegamos à reserva já tarde da noite e nos esperava um lanche com suco de laranja. Os cítricos abundam no Paraguay e notei que eles são plantados como arborização urbana. Pode-se ver pés de mexerica, laranja, limão e pomelo com seus frutos coloridos enfeitando as ruas. Não vi ninguém colhendo-os, mas não posso imaginar que sejam apenas para enfeite e alimentação de pássaros. Encontrei variedades de laranjas muito diferentes das que estou acostumado a consumir no Brasil. O nosso limão cravo existe por lá também, mas com menos manchas de antracnose, sua casca sendo por isso mais lisa e a forma do fruto mais arredondada.

Uma grande quantidade das ervas medicinais silvestres que conheço aqui no sudeste do Brasil, encontrei-as também no Paraguay, com a diferença de que lá elas são mais exuberantes e de aparência mais saudável. Provavelmente o solo e o clima sejam os responsáveis por isso, já que lá há extremos de temperatura e o solo é mais vermelho. Às vezes, tamanha a diferença na aparência, eu tinha dúvidas se se tratava da mesma planta. Esmagar e cheirar foi o meu recurso para confirmar se eram as minhas velhas conhecidas aqui do Brasil. Encontrei o piracá, o picão, a macela (ou marcela), a erva-canudo e a pariparoba. Os nomes não são os mesmos, mas as propriedades sim, isso pude confirmar perguntando aos nativos. Com árvores a mesma coisa; vi muito ipê, paineira, guatambú, pau-pólvora e guapuruvú.

Só dia seguinte pela manhã é que pude ter a noção de onde me encontrava, uma encosta de montanha orientada para o por do sol, com um visual deslumbrante. São 15 ha de floresta particular, que agora se integram à recém criada área de preservação da municipalidade de Paraguari.  Um pequena infraestrutura abriga a recepção, há alojamento para os guias, duas cozinhas, um kiosk e dois chalés que hospedam visitantes e os donos do empreendimento. Um lindo deck de madeira dá vista para o vale onde está a cidade de Paraguari, 15km abaixo. Há um gramado que separa a área construída da floresta e pode-se encontrar frutíferas espalhadas por todo canto.

Aos poucos, os “alunos” do curso foram chegando. São jovens com menos de 30 anos, que quando começaram este trabalho de guias de eco turismo em Mbatovi eram ainda menores de idade e hoje estão casados e com filhos. Os homens são maioria. Foram recrutados entre os bomberos, que no Paraguay são jovens voluntários treinados para este fim. Sim, eles não ganham nada para fazer este serviço de utilidade pública. Isso existe aqui ao lado neste nosso país irmão! O estado apenas financia instalações, material e treinamento e todos os envolvidos trabalham sem receber um só centavo…

Alguns dos guias ainda mantém uma atividade paralela, já que os ganhos com turismo são irregulares e dependem de uma demanda incerta. Por isso, alguns deles são pedreiros, agricultores, cozinheiros e outros ainda trabalham como guias em outros empreendimentos de esporte de aventura.

Ve-se que nossa clientela é bastante heterogênea. Em um determinado momento eu tive dúvidas se os alunos iriam captar o que fôramos passar para eles, ou seja, consciência ambiental e por consequência, de si mesmos, utilizando dinâmicas de grupo, ioga e meditação. Mas ao fim do curso, no momento da partilha, os depoimentos superaram minhas expectativas e muito!

Os relatos davam conta que nunca, em 7 anos de trabalho, os guias haviam percorrido as trilhas sem os pesados equipamentos de segurança e que quando tiveram oportunidade de fazê-lo e em silêncio absoluto, se deram conta de coisas que jamais haviam visto e vivenciado antes. Antes eles percorriam as trilhas a trabalho, agora, se transformaram em observadores, do entorno e de si mesmos.

Mas o mais impressionante foi que dois deles levaram as técnicas de respiração e meditação aprendidas no curso para seus familiares, com as quais praticaram e puderam ver os resultados positivos. Isso no dia seguinte em que as aprenderam! Foi emocionante perceber gente simples desprovida de preconceitos, descendentes diretos de índios, se beneficiando de técnicas orientais de meditação de respiração. Para mim, este foi o maior ganho da viagem. Perceber a inocência e abertura do povo paraguaio.

Eu confirmaria esta abertura quando visitei ao mercado em Paraguari, no dia seguinte ao encerramento do curso. Fiz questão de ir de ônibus e sozinho, para poder sentir um pouco mais da vida do paraguaio comum. Informado dos horários, fui para a estrada e me preparei para uma espera de 45 minutos. Para minha surpresa, 10 min se passaram e surgiu um ônibus bem velho, descendo a estrada a 20 km por hora. Fiz sinal e entrei por uma das portas abertas, já que não havia nenhuma indicação visível. Quis pagar a passagem ao condutor que me indicou um garoto que circulava pelo colectivo, cobrando os passageiros. Eu não tinha os 3.000 guaranis trocados, em minha carteira havia apenas notas de cem mil e duas moedas de 1000. O garoto me disse que 2.000 pagavam a passagem, e recolheu as moedas da minha mão. Tomei aquilo como um bom sinal.

Uma vista d'olhos dentro do ônibus, me informou que ele devia ter pelo menos uns 50 anos. O chão era de madeira gasta, o forro do teto de duratex, o para-brisa tinha uma enorme rachadura, remendada com cinta scotch  e a cadeira do motorista não era uma poltrona e sim uma cadeira mesmo, fixada ao chão com parafusos. Entendi a baixa velocidade do colectivo ao observar que o motorista não parava de virar o volante para um lado e para outro. Havia uma folga enorme na direção e todo cuidado era pouco para não deixar despencar o veículo pelos barrancos da serra…

Chegamos à praça do mercado uma meia hora depois e dei graças a Deus quando baixei do ônibus, por ter chegado vivo e inteiro a Paraguari. Chamou-me a atenção a quantidade de vendedores de remédios com suas mesinhas repletas de ervas e para eles me dirigi. A primeira pessoa com quem conversei, dona Hermínia, já permitiu ser fotografada, filmada e entrevistada. Falava espanhol com facilidade e no papo com ela fiquei sabendo do nome e finalidade de cada uma das ervas em seu balcãozinho armado na calçada. Muitas das ervas é ela mesma quem planta ou coleta na natureza, outras, mais difíceis de serem encontradas, ela compra de quem se aventura a coletar em pedreiras íngremes e topos de árvores. Reclamou da dificuldade de encontrar certas ervas, pois o consumo está aumentando muito. Alguns remédios semi industrializados, embalados em papel e com um desenho colorido ilustrativo, são trazidos por vendedores de Assunção. Curam diabete, problemas na próstata, lombrigas, tosse, etc… De dona Hermínia comprei menta, losna, anis e alfavaca, para me preparar um chá, pois na eco reserva não havia uma horta com temperos e chás. Depois de uma semana longe de casa, eu já sentia muita falta do meu habitual chazinho matinal.

O mercado de Paraguari vende de tudo. Além de funcionar como terminal de ônibus, lá encontram-se à venda roupas, carnes, farinhas, pães, chipas, frutas, leite fresco em garrafas pet, eletrônicos e também muita comida pronta, para se comer na hora. Eram 8h da manhã e havia muita gente comendo bifes, ovos, empanadas, chipas e outras coisas de origem animal que não consegui identificar e não tive oportunidade de perguntar do que se tratava.

Mas o que mais me espantou foi encontrar, bem no centro do mercado uma guarderia de niños, que vem a ser uma creche onde os pais podem deixar os filhos durante o dia todo, para poder trabalhar. Quem toma conta da guarderia é dona Ana Lia, que exerce a função há mais de 20 anos. Os 8 primeiros anos ela trabalhou como voluntária, mas um belo dia resolveu pedir ajuda à municipalidade que prontamente providenciou um salário. Hoje, ela e as professoras que ali trabalham, recebem uma pequena ajuda de custo.

É ela quem está na imagem, tomando seu mate com yerba de lucero (Pluchea sagittalis), remédio bom para a digestão, segundo ela. Dona Ana Lia conta que era católica, mas um dia, por acaso, ao assistir um programa na televisão, encontrou Jesus e nunca mais se separou dele, tornando-se evangélica a partir de então. Ela também deixou-se fotografar, com a condição de que eu não mostrasse as imagens para nenhuma criança, para não assustá-las…

Dentro do mercado eu encontraria muitos produtores que vieram vender sua pequena produção agrícola. Trazem seus limões, mandioca, abóboras, feijões, milho, farinhas, leite e queijo. Todas as pessoas que abordei deixaram-se fotografar e conversaram comigo sem ao menos saber quem eu era e de onde vinha. Muitos me confundiam com um gringo perdido no interior do Paraguay ou com muita boa vontade, um periodista argentino . Só depois da conversa estabelecida é que eles queriam saber quem eu era e o que fazia ali. Isso me mostrou o quanto esse povo ainda mantém, de forma generalizada, uma boa-fé que aqui no Brasil anda tão difícil de se encontrar.

Lá pelas tantas, depois de muitas fotos e entrevistas, me bateu uma fome de leão, mas uma fome específica, de tomar um suco de lima da pérsia e comer uma empanada de carne que eu já tinha visto num local. A empanada foi fácil de achar, mas o suco de lima ninguém tinha. Acabei comprando meia dúzia desta fruta em uma barraca e pedi a uma mulher que tinha um liquidificador que me batesse as limas descascadas. Ela gentilmente se dispôs a faze-lo, só que o liquidificador travou com as minhas limas dentro. O jeito foi acrescentar suco de laranja que ela já tinha espremido, mas contra minha vontade, porque eu não queria misturar as duas frutas. Tomei o suco, comi a empanada e fui pagar. A mulher se recusou, disse que não era nada e ainda me abriu um grande sorriso. Quer alimento melhor para a alma do que uma gentileza dessas? Se eu já estava gostando o Paraguay, passei agora a amar essa gente simples, disponível e sobretudo carinhosa com o forasteiro.

No mercado, ainda comprei um pacote de mate de nome Curupi, que é uma mistura de erva-mate com boldo e menta, uma ótima e refrescante combinação para um tererê. Levei também poroto manteca (favas), um pacotinho de poroto rojo e um macinho de coentro, muito utilizado na culinária local, tanto que tem até nome em guarani (kuratõ).

Saí para as ruas e passei a fotografar um pouco da arquitetura de Paraguari. Encontrei muitas casas antigas e sem o cuidado que eu imagino que deveria se dispensar a construções que são evidentes documentos históricos, já que a cidade é cognominada de “berço da independência nacional”. Surpreendi-me com a quantidade de cursos superiores que existem na cidade, tanto na área de humanas e exatas.

Quando me dei por satisfeito com as fotos e achei que era hora de voltar, olhei ao redor para me localizar e buscar um ônibus para voltar. Adivinhem quem vinha vindo com seu andar de tartaruga… Sim, o mesmo colectivo que eu tinha tomado na vinda, com o mesmo motorista e o mesmo cobrador, agora voltava no sentido contrário. Pensei duas, três, quatro vezes e levantei o braço fazendo sinal para ele parar. O sol estava muito quente para eu ficar na beira da estrada esperando por outra alternativa…

Ao chegar à eco reserva, a refeição que me aguardava era uma comida típica paraguaya, o bori bori, de longe a melhor e mais gostosa que comi no país. O que caracteriza o bori bori é que nele não podem faltar bolinhas feitas de fubá grosso e queijo, às quais pode-se adicionar caldos de legumes ou carnes a gosto do fregues. Saborear esta iguaria temperada com muito alho, cebola, cheiro verde e coentro é como receber um abraço por dentro…

No dia seguinte, o último que passaríamos em Mbatovi, houve uma atividade que eu não esperava e que muito me agradou ter participado. Convocou-se a municipalidade, os estudantes e o Comando de Artilleria, para um mutirão de coleta do lixo da beira da estrada que liga Paraguari a Mbatovi. Aproximadamente 100 pessoas se reuniram, receberam instrução minuciosa e, munidos de jalecos, luvas, água e sacos de plástico, encheram um caminhão de lixo em 3 horas de trabalho. Impressionante a quantidade de objetos que há na beira da estrada. De carro não se vê praticamente nada, mas quando se caminha à pé, saltam aos olhos garrafas de bebidas alcoólicas, latas, sacolas plásticas, pneus, partes de autos e o que mais me impressionou, uma enorme quantidade de fraldas descartáveis usadas. A pedido de Marta, registrei todo o evento e do material bruto preparei um extrato que está em vídeo.

Durante a coleta do lixo, que abrangeu 10 km de estrada, encontrei muitas dessas “casinhas” que ficam à beira da estrada, em memória de falecidos em acidentes. É notável a quantidade desses pequenos monumentos, que eu já havia reparado desde que entrei no Paraguay. A beira das estradas é sempre muito espaçosa, algo como 30 metros de grama e nela pastam animais atados a uma corda. Além de um bonito paisagismo, essa é uma atitude inteligente, pois economiza dos dois lados; tanto para o poder público que não tem que roçar, como para o dono da animal, que tem o pasto à disposição.

Vi também uma placa muito curiosa, onde se lia “Acá se cura de diabetis”. Claro que fui me informar. Encontrei o sr. Jaime, reunido com sua família, à beira da estrada, um costume que observei em muitas propriedades, esse de ficar tomando mate ou tererê, no largo espaço entre as moradias e o leito das estradas. O sr. Jaime foi frio a princípio, mas acabou revelando que seu remédio é infalível e que vem gente de Argentina, Brasil e Estados Unidos para comprar sua garrafada, que ele chama de remédio. Interessado como sou sobre plantas medicinais, não pude segurar a pergunta de qual ou quais são as plantas que compõem esse milagroso remédio. O sr. Jaime não titubeou e disse que não podia revelar o segredo, sob pena de que ele ia perder o poder. Ele havia recebido a receita diretamente de Deus, que a concedeu na condição de que ele jamais a revelasse… Para quem se interessar, é só ligar para o numero da placa (0971-129-746); o código internacional do Paraguay é 595.

Quando falei com o sr. Jaime, estava acompanhado de um professor da faculdade de Economia de Paraguari, que escutou o minha conversa. Percebendo meu interesse, ele me contou que no Paraguay existem muitos médicos , que na verdade são benzedores, aos quais o povo recorre na precisão. De uma consulta com esses médicos, a pessoa sai com uma receita dada pelo mesmo, que não passam de tisanas que devem ser preparadas com ervas que o doente mesmo vai colher na natureza. Sabedor disso, passei a perguntar para as pessoas, que me confirmaram que esta prática é bastante comum no país.

O dia seguinte seria o último que passamos no Paraguay. Quando saí de Mbatovi, parecia que estava deixando minha casa, tal a afinidade que estabeleci com aquele lugar, nos 5 dias em que lá passei. No curto espaço de tempo em que fizemos as despedidas, houve tempo para conversar com alguns guias e o assunto foi lendas populares. Isso devido ao nome da erva Kurupi, que é o mesmo Curupira que existe no Brasil também. Me contaram de Jaci Jaterê ou YaciYatere, que seria o nosso Saci Parerê, que aqui, por ter sofrido influência africana, distanciou-se do original indígena. Outro que guarda semelhança, mas aí por influência européia, é o Luison, que nada mais é do que o nosso Lobisomem. O Luison é um misto cachorro, anta e macaco, que ataca as pessoas não só em noites de lua cheia, mas também nas tempestades. Infelizmente não houve tempo para nos aprofundarmos, mas isso e tudo o mais que vivi no Paraguay, me fez ter a certeza de que um dia voltarei, tamanha a riqueza de folclore e cordialidade que este povo carrega consigo.

No dia seguinte, Jacinto nos levaria até o Terminal de Omnibus de Asunción e depois de uma despedida emocionada, fomos fazer algumas compras de última hora, pois com a correria toda não tivemos tempo para tal. Na hora e meia que ainda tínhamos pela frente antes de embarcar, resolvi fazer como os paraguaios e pedi um tererê numa das mesinhas que vendem o produto. Até então, eu ainda não tinha me arriscado a tomar o mate, pois sei que é estimulante e diurético.

Dona Silvia, à direita na foto acima, me ajudou a escolher entre as dezenas de yuyos à disposição. Meu fígado pediu e acabei escolhendo boldo com menta, que vem a ser o famoso Kurupi, do qual acabei comprando um pacote que trouxe para o Brasil. Enquanto dona Silvia, que vende mate há 23 anos no mesmo local, preparava meu tererê, apareceu um senhor pedindo remédio para sua pressão alta. Dona Silvia perguntou qual era o motivo de tal distúrbio e se ele já havia consultado um médico. Diante da negativa do cliente, ela se recusou a servir qualquer remédio, alegando que não é prudente mascarar um sintoma desses, que normalmente é indicativo de  algum distúrbio mais grave. Fiquei fã de dona Silvia, tamanha a consciência da mulher. Só não fiquei fã foi do tererê, pois me fez ir ao banheiro mais de uma dúzia de vezes durante a viagem, ou seja, a cada duas horas eu tinha que me sujeitar ao exíguo e mal cheiroso toilette do ônibus, o que estragou minha noite de sono no ônibus…

Numa viagem longa, a gente sempre acaba entabulando conversa com outros passageiros, é inevitável. Reparei que uma mulher que parecia brasileira, pois falava português fluentemente, teve que descer na Policia Federal para dar entrada como estrangeira. Assim como quem não quer nada, perguntei se era estrangeira, o que ela confirmou. Daniela mora há muitos anos no Brasil, onde trabalha de empregada doméstica. Reparei que sua bagagem era muita, uma meia duzia de malas e sacolas e tive a certeza de que ela era uma sacoleira. Como ela fosse paraguaya, perguntei se ela conhecia os médicos. Num português claro e limpo ela respondeu:

— Claro que sim! Ontem mesmo minha irmã me levou num médico, porque eu tinha uma baita dor de cabeça!

O médico, contou ela, fez orações, colocou água num copo, jogou umas sementes de milho dentro e mandou que ela tomasse a água. Depois pegou um cigarro e esfregou-o nas costas de Daniela. Hoje ela nem se lembra mais que estava com dor. Toda sua família recorre aos médicos, disse ela.

Conversa vai, conversa vem, acabamos falando do motivo de sua viagem ao Paraguay. Ela tinha vindo visitar os pais, que por coincidência, moram bem ao lado da reserva de Mbatovi, em Paraguari. E mais, descobrimos que ela tinha vindo do Brasil no mesmo ônibus que nós. Estabeleceu-se entre nos, um clima gostoso de confiança, ela acabou até dando bolachas, balas e brinquedos aos filhos de Hamilton e Patrícia. Nas sacolas, ela acabou nos contando, havia abóboras, mexericas, laranjas, limões, farinha de milho e mel. Tudo presente de seu pai, da produção de seu sítio em Paraguari. Ele, um senhor de 80 anos, fizera questão que a filha levasse os produtos para o Brasil e ela não conseguiu dizer não. Mais uma vez, agora em território brasileiro, o Paraguay me pegava pelo coração.

Chegando em São Paulo, o corpo reclamando uma cama urgentemente, eu resolvo falar com um rapaz solitário, com traços fortes de índio que viera dormindo durante a viagem toda, sem conversar com ninguém. Descobri que ele era equatoriano e viera procurar trabalho no Brasil, mais precisamente em São Paulo, onde tinha parentes. Se eu estava cansado de ficar 20 horas num ônibus, imaginem o rapaz, que fazia uma semana que tinha saído do Equador, atravessando Peru, Bolívia e Paraguay para chegar a São Paulo em busca de um futuro melhor. Decidi que minha vida é um passeio pelo paraíso…

Chico Abelha

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