Estávamos em Kervansaray (Bodrum – Turquia). O Sol anunciava-se pela luz e pela ausência. A ausência dizia muito mais do que a sua presença. Como acontece com qualquer deus. A luz vinha a caminho vagarosamente pelo céu fora, acendendo o azul e clareando as nuvens que espelhavam a lã alva, revertendo cinza para o contraste. Os montes eram silhuetas, dum outro mundo projectado neste, ganhando forma e contornos.
Quando o Sol nasce em Kervansaray é tão só uma miragem de espera resplandecente. Aos poucos, a minutos contados na sucessão do tempo, as ilhas nascem, como se fosse uma imitação da primeira criação, os seios distinguem-se no horizonte, soerguidos do meio duma toalha de água azul numa redonda gota lisa do tamanho do horizonte.
Os montes derramam a luz pelas colinas no renascimento dos tojos, dos ciprestes, dos pinheiros e das oliveiras.
A água apela. O corpo nela penetra e nela encontra o prazer da sua afirmação e do seu vigor, é um acto de amor, abraçado nos movimentos que nos trazem à superfície e nos faz deslocar dentro dela até percorrermos metros e metros da sua extensão infinita. E´ a delícia da natação, que deixa o corpo saudável, agradado pela combustão das toxinas e dos hidratos de carbono. O Sol seguidamente seca-nos, dá-nos o ar trigueiro a transpirar a saúde da satisfação.
A água tépida e o ar quente, uma temperatura variando para uma e outro entre os 25 e 30º centígrados, acolhem os adoradores do Sol, o corpo rejubila. De tal modo, é um paraíso climático que muitos artistas europeus vão acabar os dias da sua viagem terrena em Zorba, a 5 Kms de Bodrum.
Os melhores hotéis abarcam baías de sonho. Apesar da falta de areia, os empresários adornam as bermas do mar com convés de madeira. É neles que os apaixonados pelo Sol e pelo Mar se estiram, com uma vantagem em relação à areia, a de não se sujarem na conspurcação habitual das praias.
Há uma, contudo, uma estória sub-reptícia a contar. Uma estória mais ou menos brejeira, simbólica, melhor alegórica com alguma ironia: a estória do tripé.
O tripé que me acompanha para fixar memórias visuais, belezas naturais, rostos cheios, grandes, pequenos, repletos de infinito significado, animais espantosos e árvores fantásticas. Rios e regatos esplendorosos. Momentos preciosos. Convívios inolvidáveis. Os que ficam e se fixam para sempre. Até o mundo acabar... connosco! Ele acaba sempre connosco, façamos o que façamos. Os vindouros nos conservam certamente. Se assim acharem por bem...
Pois o tripé memorizou episódios do arco da velha! Ora o esquecia, ora era impedido de entrar nos Museus. O tripé não gosta destes esquecimentos, frutos da idade, nem que o impeçam de afirmar a razão pela qual veio ao mundo. A Rute, a nossa guia, está solteira, morreu-lhe o namorado na guerra curda, na Anatólia Oriental, lá para a fronteira com o Irão ou do Iraque. Quando falamos de amor, ela chora. Por isso, eu deixo o tripé no autopullman a ver se vai com a Rute, se lhe faz companhia, se ela o adopta depois da viagem, mas a Rute não lhe liga nenhuma, e ele ofende-se. Ofendido, confessa-se a mim. Dou-lhe coragem e enalteço as suas virtudes, e ele fica mais satisfeito. O tripé não é coisa que se despreze, é um objecto de precisão, tenho necessidade de o enaltecer, senão não há mais fotografia para ninguém. Ele às tantas amua e faz greve, ou rejeita-me com alguma avaria por ele inventada na próxima madrugada solitária, e concretiza-a na realidade.
Durmo com o tripé, porém para lhe mostrar que não é rejeitado, ele acompanha–me sempre, e se o esqueço logo amua. Há muita gente que não tem tripé, como é o caso do Eurico... quem o diz é a Ermelinda gritando de desconsolo. Mas é só por graça que o diz porque o Eurico tem um tripé que parece uma trituradora. Dispara em tudo o que lhe aparece. É de facto assim, o tripé é tão valioso, é como o Midas que da pedra fazia ouro!
Mesmo nas cidades subterrâneas da Capadócia, o tripé mostrou-se à altura dos seus deveres. A escuridão deu realce às formas retratadas. Que prodígio! Não sei de que época é o mausoléu hitita, mas é uma minipirâmide... será que os faraós conheceram esta pirâmide e um deles resolveu pôr uma enormidade de escravos em Gizé a trabalhar no sarcófago onde viria a ser sepultado?
Não vás de óculos escuros, diz-me o tripé, podes cair nalgum poço destas catacumbas. Eu agradeço. Ele é meu amigo… Ia de facto caindo. Mudo de lentes.
Como passámos perto de Konya por uma aldeia que anunciava quantas raparigas na mesma buscavam noivo, recorrendo a garrafas grandes vazias postas no telhado da casa num lugar que pudesse ser visto dos carreiros e das estradas, eu disse ao tripé que o ia instalar na praça central pública daquela localidade para chamar as solteiras anunciadas, e com elas namorar, ou declarar-se às que quisessem ser namoradas. Ele acedeu. Numa noite contei tantas que não haveria harém que as contivesse a todas. O tripé achou-se um engatatão, um grande Casanova, um machão, um Marialva de estirpe ribatejana.
Todavia, o tripé foi duma necessidade e utilidade preciosas:
serviu-me de muleta e deu pancada nas ruínas de Éfeso à
hidra de sete cabeças e a um deus grego, não sei se foi Zeus,
se Apolo (se foi este foi só por inveja), se Afrodite ( se foi esta,
foi só para experimentar se o ditado é fiável, aquele
que diz quanto mais me bates, mais gosto de ti), se Dionísio (se
foi este, foi para ele acabar com as bebedeiras que causam cirroses de
morte), ou teriam sido as cacetadas que espetou no Santo
Onofre, o santo hermafrodita que de mulher boazona passou a homem viril
com pêlo na venta e o resto sobejante? Lindo tripé arranjei,
que passou à categoria dum autêntico certificado operacional
multi-usos!
Perto de Bodrum, considerando que foi duma inestimável ajuda, resolvi dar banho ao tripé. Ele consolou-se com as águas mornas e puras do Mar Egeu, todavia refrescantes para um corpo muito mais quente que era o dele por ser feito duma película negra.
Houve ainda e finalmente a Nádia, que lhe deu uma olhadela, achou-o atraente, apesar da idade (o tripé já vai numa idade adulta - um quase nada avançada, vai-se chegando aos sessenta qualquer dia) e deu-lhe uma piscadela de olhos que ia resultando, não fora os compromissos inadiáveis e rigorosos que tinham de ser honrados na viagem que não terminara.
Ai, o filho da mãe, deveria ter mais vergonha, este tripé, não se devia ter metido com a Nádia, essa trintona bem feitinha aparecida a dar-lhe troco e a atirar-se com ardor! Teria ficado decepcionada porque contava com algum sonho das mil e uma noites. De castigo o tripé, sangrador daquele coração parisiense, repousa agora, hiberna, até nova viagem ainda não programada, mas tudo leva a crer que será um outro paraíso...
Daniel Cristal
Foto do autor e sua esposa