Saí do albergue parisiense xingando os atendentes em bom português por não me acordarem no horário combinado e por isso cheguei à estação Gare du Nord com atraso de uma hora. É claro que o trem para Bruxelas já havia partido. Por sorte dentro de meia-hora partiria um outro Paris-Brussell (ou Bruxelas, se preferir) e paguei apenas uma diferença de transferência no horário do bilhete. 'Adieu', Paris.
Vi poucas pessoas no vagão deste trem até que bem confortável, que dirigia-se veloz em direção aos países baixos. De repente, uma forte pressão nos tímpanos, creio que estávamos chegando abaixo do nível do mar. Um brasileiro, piloto de avião que estava no vagão disse pra que engolíssemos saliva, que passava a pressão. Ainda bem pois eu já estava ficando até meio surdo... Mas isso não foi nada. Dalí à pouco entram no vagão policiais belgas, olham para os viajantes e vem direto em mim pedindo o passaporte. Meio assustado eu mostrei o documento, anotaram alguma coisa, conversaram entre si e começaram a me perguntar quem sou, donde vinha, para onde ia, qual meu time... Quando pensei que estava tudo tranqüilo, me "convidaram" a pegar meu mochilão e acompanhá-los até um vagão reservado. Chegando lá, chamaram outro policial que chegou com um grande cachorro preto, que quase me mata de susto e me pediram licença pra revistar minha mochila. Pois foi o que aconteceu e fizeram o cão cheirar a mochila e meus pertences. Finalmente trouxeram o cachorrão até mim, que foi me cheirando enquanto eu amarelava de medo pra não levar uma mordida daquele monstro treinado pra procurar drogas. Como não acharam nada, esse 'simpático comitê de recepção ao turista' pediu-me muitas desculpas, dizendo que é um trabalho de rotina, que estavam só fazendo seu trabalho, que eu tivesse uma boa viagem, blá-blá-blá e até o cachorrão me olhava como quem pedia desculpas... Haja espírito de aventura!
Na estação de Brussell fiz a rotina de sempre, troquei dólares, peguei um mapa, comprei a passagem do dia seguinte pra Amsterdam e deixei o mochilão num armário com senha digital. Conheci uma turma, com brasileiros inclusive, que me disseram que estava tudo lotado nos hotéis e pousadas da cidade e dormiram nos confortáveis bancos da própria estação, o que aliás, muita gente faz por lá em estações e aeroportos. Mas decidi encontrar algum albergue.
Tomei o metrô, que é pequeno com apenas três vagões e saí pra conhecer a cidade. Linda megalópole, não sei por que é pouco mencionada em roteiros turísticos, com tanta beleza. O interessante desse mapa era que tinha um roteiro pontilhado nas ruas, sugerindo um passeio pelos principais pontos da cidade, perfeito pra um viajante 'en passant' como eu. Seguindo os passos desse mapa foi fácil achar a Gran Place, que segundo o escritor Vítor Hugo é a praça mais linda do mundo. De fato é magnífica. Escolhi uma mesa no caffée que tem um tablado externo e sentei-me ali pra admirar a arquitetura dos séculos XVII e XVIII, que com seus prédios finos e altos, todos ornamentados com detalhes em mármore, pareciam que iriam cair sobre o povo. Há na praça ainda a prefeitura da cidade, com uma torre altíssima que fazia sombra sobre um grupo de atores que animavam os transeuntes com muitas brincadeiras. Havia também barracas de flores, pois ali é feita anualmente uma grande festa e a praça vira um gigantesco tapete floral.
Para acompanhar o café, pedi uma torta, pois lá é a terra das doçuras e chocolates. São tão bonitos os arranjos e decorações desses bolos e guloseimas, que dá pena de desmanchá-los para comer. No final ainda devorei uns chocolates com recheios variados que, hummm... derretiam na boca, uma delícia. Divinos.
Hora de bater pernas, como se diz. Seguindo o mapa, passei pelo corredor da igreja onde há uma escultura em bronze de um herói belga, já meio gasta onde todos passam a mão. É pra dar sorte! Fiz o mesmo que todos sem perguntar porque e seguindo adiante achei a Fonte do Querubim Manneken. É aquele famoso anjinho com cara de sapeca, fazendo xixi, Ele é o símbolo da cidade. No Brasil ele é o símbolo do time Botafogo. Já vi também outra réplica dele no bosque da Fundação Cultural de Blumenau. Ao redor muitas lojas de artigos bordados, adamascados e tricotados. Lá existe uma forte tradição na produção desses produtos. Então, seguindo adiante, encontro uma praça com uma bela fonte e um jardim muito bem planejado, com as flores dispostas de forma simétrica, com cores em contraste. Um presente para os olhos nesta praça que é cercada por apenas quarenta esculturas! Passo então por uma catedral gótica, antiqüíssima, com o mármore bem escurecido dando efeitos fantasmagóricos no exterior de suas paredes e nas estátuas, que pareciam chorar esquecidas pelo tempo e pela fé.
Prosseguindo, encontro o Palácio da Justiça, imenso prédio todo construído em arquitetura greco-romana, com imponentes colunas que até lembram o Vaticano. Ao lado um monumento em homenagem aos soldados belgas que batalharam na 1ª guerra mundial. Dali pode-se ter uma vista panorâmica dessa grande cidade. Seguindo em direção ao museu municipal, percebo que as ruas tem trilhos para bondes, que são modernos e são também um dos principais meios de locomoção na cidade. Passo pelo museu e outros palácios até chegar ao Parque da Cidade. Este imenso parque é lindo, bem planejado, com fontes, esculturas, bancos, pistas para correr, Plátanos gigantescos e havia muita gente passeando por lá. Mas o tom bucólico e romântico ficou por conta das folhas de diversas tonalidades, que faziam do chão um colorido tapete de outono. O sol daquele fim de tarde deixava tudo ainda mais nostálgico e poético.
Encontro então um conjunto de vielas repletas de restaurantes com mesas internas e também ao ar livre, com pratos de frutos do mar expostos em vitrinas, artisticamente decorados. Depois de provar um pouco de peixe, pedi em vez de vinho, uma cerveja local, pois lá também é terra de cervejarias artesanais. Segui minha caminhada até achar outra igreja, esta com duas imensas torres, ficava na área moderna da cidade e aproveitei esse início da noite para percorrer as ruas badaladas do centrão movimentado, com muitas lojas, cinemas e até visitei um grande shopping por ali. Na saída fui surpreendido por um grupo de jovens manifestantes, todos com a cara pintada.
No final dessa rua vi uma cena um tanto surreal. Numa antiga igreja, havia em seu pátio uma estrutura de andaimes com dezenas de malas penduradas parecendo uma 'instalação plástico-visual' de algum artista de vanguarda, sendo que no interior da igreja rolava a maior sonzeira techno. Embora não houvesse ninguém dançando, tinha muito gente ali. Curioso, fui me infiltrando e adentrei a igreja pra saber o que era aquilo. Descobri que é um tipo de associação dos imigrantes e comemoravam dois anos vivendo em Bruxelas sem serem expulsos, pois parece que essa cidade xenófoba gosta muito que lhes visitem, deixem por lá uma boa grana, mas nada de ficar morando por ali!
Decidi não ficar morando ali, segui em frente e como não havia vaga nos dois albergues que achei, depois de um lanche rápido, debandei pra estação onde uma horda de mochileiro disputavam os bancos para dormir. Foi muito interessante pois havia gente de muitos lugares e ficaram impressionados quando eu lhes dizia os preços das coisas aqui no Brasil. Ninguém ali conhecia rodízio de pizza ou espeto corrido.
Rrronc!... hã? Lá pelas três horas da madrugada adentram o recinto alguns policiais e acordam todo mundo pedindo passaporte e os bilhetes de viagem. Quem não tinha a passagem era levado dali não sei para onde. Por sorte eu havia reservado o meu bilhete com antecedência. Depois todos ficaram rindo pois tudo é mesmo uma grande aventura. Em seguida dormi feito aquele querubim da praça.
Na manhã seguinte, antes de seguir viagem deu tempo de visitar o Atomium, gigantesca escultura moderna com esferas interligadas, lembrando as estruturas do átomo. Impressionante. Antes da partida, hora de provar mais um pouco de cerveja artesanal e encher os bolsos com chocolates belgas, tão doces e macios que ainda hoje ao lembrar, dá água na boca. Saudades do sabor do chocolate e de uma das mais belas cidades do mundo.
Próxima parada: Amsterdam/Holanda
De Brussell para Amsterdam foi uma viagem calma. Porém, pelo visual da turma no trem já senti que essa cidade deveria ser muito, muito agitada. Na breve parada em Rotherdam, entraram no trem uma turba de mochileiros, roqueiros, new-punks e outras criaturas cheias de tatuagens e piercings. No mais, o legal foi curtir a viagem apreciando a paisagem com seus moinhos.
A chegada na estação de Amsterdam foi tumultuada, havia tanta gente que parecia que ia ter um show de rock ali mesmo. Troquei os últimos travelchecks por Guildens, o dinheiro local, cujo nome oficial é o Florin, com cédulas muito bonitas por sinal. Deram-me um mapa e de repente, chega até mim uma garota muito bonita sorrindo, no corredor da estação. Pensei que aquilo fosse amor-à-primeira-vista mas enganei-me, tratava-se de uma agente de albergue oferecendo instalação. Peguei o panfleto e ao sair da estação percebi o quanto essa cidade é estranha, diferente, bela e cheia de surpresas. Adentrando a avenida Damrak percebo esse casario do século XVII com tijolo-à-vista em tons de chocolate e marrom, que se repete com seus três ou quatro andares, em toda essa cidade recortada por canais. Pensei que ainda estava meio tonto de sacolejar no trem, pois parecia que alguns prédios estavam sem prumo, quer dizer, pareciam que estavam um pouco inclinados pra frente, outros para os lados. E estavam mesmo! Ocorre que o subsolo é muito arenoso e com o tempo as construções estão cedendo e afundando aos poucos. As pistas da avenida são divididas para bondes, carros, bicicletas e calçadas para pedestres. Uma loucura! Lá é também a cidade das bicicletas. Rodam ali cerca de 400.000!
Antes de achar o tal albergue do panfleto, passei em frente ao albergue "Meet Point" que me pareceu simpático e resolvi ficar por ali mesmo. Mas me arrependi pois era administrado por hindus e era tudo bagunçado, no quarto em que fiquei, havia três japoneses tagarelas que não queriam apagar a luz à noite. Receando que fossem ninjas, tive que pedir pra direção do albergue para apagar a luz. Só não apagou a tagarelice dos japas.
Bem, vamos explorar essa cidade diferente onde o idioma é o "dutch", com sotaque similar ao alemão. Visitei o singular Museu do Sexo, onde se vê desde cintos de castidade medievais até fotos de gente muito "exuberante". Essa cidade tem algo de libertino no ar, existem mais dois museus do sexo por lá, há muitos sex shops espalhados pela cidade, muitas casas de tolerância e shows explícitos, sem falar no Red Light District. No início da noite fui conhecer esse bairro cheio de licenciosidade. Diziam-me que ali havia casas onde as prostitutas ficam expostas em vitrines. Eu não acreditava. E não acreditava no que estava vendo agora, mais de cem casas com vitrines onde as mulheres ficam realmente à mostra como produtos. O interessado entra, escolhe a melhor, digo, a mulher, ela puxa uma cortininha e pimba! Final feliz. Só não permitiam que fotografássemos as vitrines. Que peninha. Era interessante ver a reação dos casais que passeavam por ali, onde as esposas tentavam tampar os olhos dos maridos pra que não vissem essas moçoilas em trajes sumários nas vitrines e janelas. Conversei com 'Jasmine', veterana e dona de um desses prostíbulos, ela disse que existe um grande tráfico de mulheres lá, que são como escravas, compradas e vendidas, e existem muitas brasileiras inclusive.
Na rua apesar da maciça presença de turistas, o ambiente é pesado pois por lá as drogas leves como a maconha são toleradas, então sente-se aquele cheiro de maresia por toda a cidade. Era comum encontrar na rua gente fumando um baseado na boa. Mas no Red Light, há muitos traficantes, então à medida em que eu passava eles iam fazendo sinais oferecendo cocaína, crack e sei lá o que mais. Encontrei ainda um bar temático da maconha onde compra-se produtos derivados da Cannabis Ativa, como papel, remédios, sementes e a própria erva. Ao fundo, som de Bob Marley...
Dia seguinte, a primeira providência foi trocar de albergue. Fui àquele oferecido pela menina da estação. Lá sim era confortável, limpinho e iluminado. O atendimento era feito por jovens simpáticas e não tinha ninjas tagarelas. Então vamos ver um pouco de arte: O museu Van Gogh tem uma coleção de obras de quando o Vincent ainda era iniciante, sem o estilo que o imortalizou. Mas também apresentava uma coleção de suas principais obras como aquela do quarto do artista, o campo de corvos, os girassóis e diversos auto-retratos. Impressionismo impressionante! No caffé do Museu, provei alguns doces e tortas pois lá também há essa doce tradição gastronômica, paradisíaca aos apreciadores de doçuras em geral. Tudo ricamente decorado e montado como obras de arte. Não entrei no museu municipal pois queria ver o Rembrandt Museum, onde era de fato o atelier desse grande mestre retratista do Séc. XVII. Foi difícil de achar pois mesmo com o mapa, essa metrópole tem tantos canais que é muito fácil perder-se por lá. Parece até com Veneza. A casa de Rembrandt abriga além de um seleto acervo de suas obras, uma considerável soma do que restou de sua coleção de objetos, armas, conchas, elmos, cartas, escudos, máscaras e obras de outros artistas.
Hora de caminhar pelas ruas: notei que há terminais de Internet em muitas calçadas, onde o vídeo e teclado ficam ao relento e mesmo chovendo em cima, pode-se usar numa boa, à base de moedas, é claro. Há também uns quiosques de arenques, onde pode-se comê-los crus, hábito que é tradicional por lá. Ainda bem que não sou de lá! Vale a pena perder-se pelo emaranhado de vielas cheios de lojas. Há muito movimento nas ruas, muita gente com visual e roupas muito doidas, cabelos punks, tribos de mochileiros, artistas em praças e esquinas, desde atores 'estátuas' até músicos e palhaços. Conversei com um casal de jovens flautistas italianos. Dino e Paola já estavam em viagem por dois meses apenas tocando flauta e vivendo com as moedas que as almas mais sensíveis jogavam em seus bonés.
Fim de tarde, hora de dar um passeio de Bateau. Percorremos os principais canais da cidade, sendo que as atrações eram narradas em três línguas. Entre um canal e outro percebi que havia patos e cisnes nas águas, o que dava um toque engraçado nesse passeio. Então foi distribuído aos presentes latinhas de cerveja Heineken, pois é lá a fábrica dessa cerveja consumida no mundo todo. É possível visitar a fábrica e degustar à vontade, mas há filas intermináveis. Bom, cerveja de graça... Achei interessante que em Amsterdam uma latinha custa o dobro de uma no Brasil. Dá pra entender?
Depois de ir até o moderno e gigantesco aeroporto internacional de Schippol para 're-reconfirmar' minha passagem para o Brasil, voltei ao centro e dei um giro pela noite, onde provei um pouco de cerveja num Pub. Lá quanto mais antigos os pubs, quanto mais velha e gasta a mobília, mais é procurado pelos freqüentadores que saem à noite. Há também muitos bares temáticos, para todos os gostos. Queria ver algum filme mas todos os cinemas que encontrei mostravam filmes pornôs. Coisas de Amsterdam.
Último dia. Deu tempo de conhecer o museu de Anne Frank, a casa em que essa menina judia escondia-se com a família, perseguida pelos nazistas e escreveu o famoso "Diário de Anne Frank". Em seguida uma aventura que fechou com chave de alumínio essa aventura. Aluguei uma bicicleta e fui conhecer o Vondelpark. Andar de bicicleta pela cidade é uma boa dica para conhecer tudo, mas deve-se ficar atento e permanecer na via dos ciclistas.
O parque. Esse parque é um pedaço de paraíso, cheio de fontes, lagos, esculturas e até legítimas vacas holandesas. Mesmo de bicicleta levei cerca de uma hora para contorná-lo e é onde as famílias reúnem-se aos finais de semana para piqueniques e banhos de sol. Um pequeno Éden. Na volta ainda visitei o mercado de pulgas, onde havia todo tipo de quinquilharias e bugigangas. Passei também pelo mercado de flores, onde não havia tulipas pois estávamos no outono. Ali perto vi muitas lojas de diamantes, coisa comum por lá.
E assim me despedi dessa cidade linda, louca, diferente, histórica, histérica, libidinosa, escandalosa e talvez por isso tudo, deslumbrante.
Tchello d´Barros