Foi uma viagem intelectual agitada. Incansável, nunca estou satisfeito. Meus músculos tremem com a leitura de livros esgotados encontrados em sebos. Em Salvador, beirando a rua Chile, comprei um grosso volume baratíssimo de discursos de ditadores. Iniciando a leitura deste, rabisquei algumas impressões perversas nas suas páginas, sentindo o sopro de um ventinho gelado no coração. Sou um witty, como os norte-americanos definem uma pessoa com a rara capacidade de ser, enfim, maravilhosamente malvada com as palavras. O grande alvo do livro é Fidel Castro, que tem mais de 40 anos de poder ditatorial na ilha de Cuba. Lembrei de uma visita sua à Bahia, do abraço apertado em Antonio Carlos Magalhães e dos elogios à nossa culinária, "a melhor do mundo". Com o uniforme verde-oliva parecia estar saindo de um contra-ataque na Baía dos Porcos, simbolizando a eternidade da Revolução. É um mito cultivado pelo marxismo-leninismo, intelectuais e uma infinidade de gente ingênua.
Passei um mês em Cuba em 1998. Fui fazer uma longa matéria para uma revista portuguesa de turismo. Desfilando de táxi no passeio marítimo de Havana, o Malecón, fiquei assustado com os velhos casarões coloniais em ruínas. A bela cidade celebrada em filmes e comerciais publicitários parecia que acabara de sair de uma guerra violenta. Uma miséria absurda para um povo alegre e de sensibilidade artística impressionante. Dezenas de famílias dividindo o mesmo espaço, desemprego e insatisfação generalizada. Um belo e jovem cubano, Vladimir, de fatais olhos verdes numa pele morena, formado em medicina e trabalhando como carregador de malas num hotel, implorou que eu o levasse para qualquer outra parte do mundo. "Farei o que você quiser", disse-me. Correto que a política educacional e de saúde é das melhores, funcionando perfeitamente, mas a falta de liberdade de expressão e movimento é infame. Em Varadero, trancado num gigantesco hotel canadense, enquanto o furacão Irene nos ameaçava, ligava a tevê, entediado e bêbado depois de muitos mojitos, e sempre dava de cara com o eterno discurso demagogo de Fidel. Não é a melhor das vidas.
O poder perpétuo sobrevive graças a uma espécie de ritual horrendo, inclusive em diversas religiões, pois a imortalidade é a principal pretensão daqueles que se julgam possuidores de força divina, de Napoleão a Hitler, passando pelos coronéis nordestinos. Eles são portadores de cóleras ou maldições que o tempo faz irrisórias. Suas presenças nos invadem até ocupar insensivelmente o centro de nossa preocupações sem que importe a reprovação dos nossos julgamentos. É também difícil acostumar ao olhar dos ditadores. Eles não enxergam o próximo. O encanto de Fidel é fruto de um carisma usado para fins de manipulação, algo parecido com o que fazem os pastores evangélicos: manipulam, oprimem, roubam e prometem o Reino dos Céus. São insaciáveis. No entanto, há um momento em que as máscaras caem, como aconteceu com Getúlio Vargas, Juan Domingo Perón, Idi Amin Dada e Ferdinando Marcos. O tempo não perdoa. Em meio ao terror, massacres e escândalos, há sempre a redescoberta do sentido das palavras solidariedade, liberdade e igualdade.
Mas o retrógrado camarada Fidel não é o diabo-mor. Supostos regimes democratas como o de George W. Bush, entre outros, são também vergonhas ocidentais. Eles invadem países fragilizados, saqueiam e matam em nome da paz (?), sempre com o apoio de covardes ou neo-fascistas como José Maria Aznar, de Espanha, ou Silvio Berlusconi, de Itália. No Brasil, as manifestações pelo impeachment do ex-presidente cheiradão Collor de Melo, em 1992, trouxe o sonho da liberdade e igualdade social, portanto, o normal seria não votar mais em partidos repulsivos como o PFL, não acreditar em telejornais manipulados ou publicidade política cujo sentido é melhor ignorar. São absurdos o cinismo, as más intenções e a mediocridade da maioria dos nossos políticos. É preciso acreditar no ideal de um país melhor, estar consciente de nosso papel como cidadão e saber que podemos fazer História. Estamos precisando de uma perestroika que ponha a nu a corrupção e o fisiologismo da máquina estatal; os carcomidos privilégios do funcionalismo público ineficiente; a articulação entre repressão política, corrupção, contravenção, criminalidade, tráfico de drogas e a miséria num planetário de erros. Assim veríamos a real face da República das Bananas: milhões de mortos, torturados e subnutridos por arrocho salarial, desinformação e desemprego. São milhões de esperanças, vontades e desejos sem-teto. Assim, tu; assim, todos nós.
Antonio Júnior