Era Uma Vez Um Carcará e Um Rio

        Quando, aos três anos, desembarquei no Piauí, tive a certeza de que ele se preparara para me receber. O avião já havia me avisado, quando subitamente uma de suas asas começou a pegar fogo. Sobrevoamos Teresina, doce mãe do Parnaíba, até que o combustível acabasse. Circulamos a cidade, por inúmeras vezes. Lá embaixo, as lavadeiras do Parnaíba acenavam. Dentro do avião, a expectativa perante o improvável. Para os adultos, o improvável tinha a face da morte. Para mim, a única criança naquele vôo, tinha o rosto de mãos que batiam roupas nas pedras e acenavam para um pássaro de fogo. Por mais que os rostos dos tripulantes refletissem o horror dos vivos perante Hades, o Senhor dos Reinos Infernais, eu só conseguia ver um céu de flocos querendo beijar o verde rio. Confesso que a paixão azul daquele céu tão imenso me fez chegar a desejar que o nariz do avião mergulhasse no Parnaíba. Da janela eu via as mulheres acenando para o pássaro, indicando o leito do rio. O avião em chamas era então um enorme carcará dourado. Um carcará faminto que voava num céu apaixonado. Mas como a razão impede que o céu abrace os rios, o pássaro aprumou as asas e lentamente pousou na pista. Ao descer do avião o Piauí beijou-me com a sua boca quente. Lá longe, na beira do rio, as lavadeiras acenavam. Cheguei à fazenda na hora do almoço. E o Piauí pôs à mesa as águas de seus maxixes.
 

Marcia Frazão
 
Do livro: "Amor se Faz na Cozinha", Bertrand Brasil, 2003, RJ

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