Foi com grande surpresa que encontrei entre as folhas de um caderno
antigo uma fotografia há muito tempo esquecida. O sorriso de turista
e ao fundo o Castelo de Duino. Em 1986 trabalhei como voluntário
no hospital psiquiátrico de Trieste, Itália. Servizi di Salute
Mentale. O hospital foi um dos pioneiros na integração do
doente mental com a sociedade. Abriu suas portas e integrou o paciente
à vida da cidade e seus moradores. Lembro de meu primeiro encontro
com alguns internos, como Loredana, que ainda jovem foi submetida à
lobotomia frontal. Maria, uma senhora de 54 anos que estava internada no
hospital desde seus 24 anos de idade. Com ela trabalhei por seis meses,
acompanhando-a desde o café da manhã até o final da
tarde onde sentávamos em um pequeno bar no jardim do hospital e
jogávamos pôquer; ela era excelente no jogo. Maria sofria
de esquizofrenia e catatonismo. Muitas vezes diante de um ataque de pânico
era necessário abraçá-la, fazendo com que se sentisse
segura em seu "mundo particular". Quando foi internada no hospital sofria
apenas de depressão, mas com choque elétrico que brutalmente
foram administrados a deixaram por muitos anos em estado de total inércia.
Dois dias da semana eu me dedicava à algumas horas no estúdio
onde aulas de cerâmica e pintura eram fornecidos aos jovens em tratamento
anti-droga. O grupo de voluntários se dividia em várias nacionalidades
e ocupávamos uma só casa no final de uma das alamedas que
por muitas vezes nos parecia um tanto assustadora.
Durante dias quentes íamos para algumas praias vizinhas e banhávamos
no Mar Adriático, ou simplesmente acompanhávamos a "passeggiata
musicale" no Castelo de Miramare. Trieste era uma cidade adormecida no
passado e praticamente abandonada por quase todos os jovens. Triste
Trieste: uma cidade sem vida noturna, com apenas um bom cinema, uma ótima
ópera e ocasionalmente alguma exposição de algum artista
local. Percorrer suas ruas estreitas, envolver-se com o dialeto triestino,
e participar das reuniões com todos os voluntários, enfermeiros
e psicólogos era parte de nossa rotina semanal. Também íamos,
sempre que possível à Veneza, onde um mundo totalmente diferente
abria-se à nossa frente. Foi em Trieste que fiz amizades encantadoras
e porque dividíamos um mesmo ritmo de vida, aprendemos um com o
outro, trocando experiências, narrando estórias, cada um falando
um pouco de seu país de origem. Lembro-me de Helmut, que me ensinou
a apreciar Hesse, de Azita, com seus negros olhos paquistaneses e Rute,
o sorriso brasileiro provocando malícias. Muitas vezes percorríamos
as ruas à "procura" dos passos de Svevo, ao fantasma de Joyce
e sempre que possível, a ida ao Castelo de Duíno onde Rilke
escreveu suas elegias.
Mas nem tudo era tranqüilidade, não estávamos em
um acampamento e sim em um hospital com jovens altistas, outros se recuperando
das drogas, outros em profundo estado de depressão e outros, como
Loredana e Maria, apenas esperando a hora de morrer. Essa experiência
em Trieste ensinou-me a compreender que sempre há uma luz a brilhar
nos corações mais tortuosos.
Observando melhor a fotografia que seguro em minhas mãos, vejo
em meu olhar a gostosa ingenuidade daquele tempo, e a certeza de que o
valor está em tudo aquilo que aprendemos. O conforto material que
adquirimos em nossas vidas é importante, mas a experiência
e o conhecimento é algo que permanece eternamente no coração
e espírito. E isso ninguém pode tirar!
Sergio Godoy
Holanda, 19/04/004