I RES MÈS (E NADA MAIS)

A rodovia a caminho de Cadaqués é pintada por giestas, flores campestres de um amarelo dourado. Na entrada da cidadezinha idílica, de mil habitantes,  situada no ponto mais oriental da Península Ibérica, lê-se numa placa: "I Res Mès" (E nada mais, em catalão). No Cap de Creus (Cabo das Cruzes), chamado também de Cabo do Inferno, um farol de 1853, do tempo de Dona Isabel II, avistamos gaivotas eufóricas sob o azul mar mediterrânico, barcos de pescadores, sólidas casas brancas, muitos turistas franceses e tufos de alfazema. É uma zona de pântanos dentro de uma reserva marítima e terrestre, queda dos pirineus até as águas tranqüilas, sem ondas, do mar em forma de enseadas. Em Port Lligat (Porto Atado), estivemos na casa-museu do genial Salvador Dalí, cenário familiar do surrealista que passava verões nele com o amante Federico García Lorca e terminou conhecendo a musa de toda a vida, Gala, então mulher do poeta francês Paul Eluard. Dalí, que aprendi nestes dias que vem de "delir-se", ou seja, ansiar, graças ao seu centenário está presente em várias mostras na Espanha. Uma delas, na nova e subterrânea sala de exposições da La Pedrera, aborda a sua admiração por um dos mestres da arquitetura modernista, Antoní Gaudí, que em catalão significa "gaudir", gozar.  Entre curvas perigosas e cidades de nomes impressionantes (Olot, Ripoll, Rupit, Vic, Ogassa, Figueres, Girona), cortamos o parque natural de Montseny, montanhas de mais de dois mil metros de altura, pontes romanas, vales, rios gélidos e transparentes. A partida, depois de uma hora de trem da Estação de Sanz, na cidade de Sant Celoni, revelou-se impactante com o número de imigrantes africanos e romenos que lá vivem, além de uma bucólica ponte milenar derrubada em parte por seus moradores para evitar a invasão das tropas napoleônicas em 1810. A história está presente em todas as partes. O idioma catalão também, quanto mais nos aprofundávamos na Catalunha ficava visível que não havia interesse dos nativos em comunicar-se em castelhano. Os bosques, como o La Selva, protegidos por rigorosas leis ambientalistas, são viveiros de perdizes, coelhos, javalis e cervos.  Para chegarmos a Rupit, uma inacreditável cidade medieval do século XVI, de 400 habitantes, atravessamos uma ponte de madeira e aço, estilo Indiana Jones, dezenas de metros acima de um belo rio. Neste rochoso vilarejo, sem ninguém nas ruas? o que é comum na Catalunha profunda —, paramos numa pousada-restaurante em que uma adolescente entediada estudava piano. ¨É uma lástima viver aqui", queixou-se. Antes de seguirmos viagem, comi um delicioso sanduíche de pá de pagés amb tomáquet recheado com vários embutidos (pernil salat, catalona, bull, llonganissa e fuet) acompanhado por uma gelada clara (cerveja com refrigerante de limão) num recepiente tradicional e centenário. Orei no santuário de Nossa Senhora del Far, na capela de Sant Martí de Surroca e no mosteiro de Santa Maria de Ripoll, dos séculos X-XI, túmulo de muitos nobres. Dormimos na minúscula Ogassa, terra de minas de carvão, que pertence a comarca do Ripollés, no grande e vazio hotel Can Costas, como o habitado por Jack Nicholson em O Iluminado. Do meu quarto, vi a lua minguante Vênus, a montanha Taga, robles e a Fonte del Miner. Antes de dormir, devorei parte de um coelho assado e batatas recheadas fritas, tomando o bom vinho Sangre de Toro. Em Belsebú, visitamos uma sinagoga do século XIII e a soberba Ponte Velha, estilo românica, do século XI. Deslizando pelos vales pirenaicos avistamos gordas e brancas vacas ao sol, com pequenos sinos pendurados nos pescoços, e plantações de oliveiras. Terminamos na comarca de L´Empordá, na Costa Brava, nas ruínas gregas e romanas de L´Empuriés. A noite caía. Uma estátua de Ifigênia, a filha de Agamenón, do século III a.C., reinava perfeita e soberana no mágico recanto na beira do mar. Em 1925, Dalí trouxe Lorca para este mesmo lugar. Quem sabe não namoraram encostados no porto grego que rasga o mar? O meu coração pulsava acelerado. O tempo não tinha fronteiras. De volta a Barcelona, li no jornal La Vanguardia sobre as boas relações do ex-presidente José María Aznar com o sanguinário Bush. Na Califórnia, Aznar criticou o novo governo espanhol, acusando-o de trair alianças políticas fundamentais. Aznar, do PP (Partido Popular), segue uma política franquista, ou seja, de extrema direita. Espera-se uma nova derrota do seu partido nas próximas eleições de 14 de junho, para o Parlamento Europeu. Ele nunca viu com bons olhos os imigrantes. O presidente atual, José Luis Zapatero, pensa diferente e as relações entre Brasília e Espanha estão se intensificando. O nosso Lula esta na moda por aqui, inclusive recebeu o prestigioso prêmio Príncipe de Astúrias. A elogiada participação do Ministro da Cultura, Gilberto Gil, no Fórum das Culturas Barcelona 2004, também foi fundamental para outra visão do nosso sofrido Brasil. É uma boa nova para os milhares de brasileiros que estudam ou trabalham neste belo, místico e acolhedor país. É uma terra atualmente inclinada para os sentimentos anti-violência e anti-belicista, por uma Europa unida política, econômica e socialmente, com uma atenção especial aos países menos favorecidos, distante do radicalismo unilateralista dos atuais mandatários de Washington. Até mesmo a boda real do príncipe Felipe de Borbón  com a plebéia Leticia Ortiz, uma ex-apresentadora de telejornal, no ultimo sábado, em Madri, foi tratada por muitos espanhóis como uma pomposa e ultrapassada encenação teatral. Longe da paixão britânica, poucos jovens neste país levam a sério a nobreza. A ambígua sexualidade do herdeiro do trono é questionada por eles quase com desdém; se preocupam muito mais com os feitos futebolísticos de Ronaldinho ou as noitadas ?calientes? regadas a vinho tinto e haxixe. Antes de iniciar este artigo, ligo a tevê para assistir Manjar de Amor, do interessante cineasta catalão Ventura Pons, é uma história gay passada em parte na considerada capital gay européia, Barcelona. A tevê espanhola é vulgar e pouco criativa, mas o cinema deste país é vigoroso. Seguindo minhas próprias regras de dedicar-me as artes do país que visito, vi nos últimos dias La Mala Educación, de Almodóvar, que não está nos seus melhores dias, mas supera Fale com Ela; o competente drama histórico Juana la Loca, de Vicente Aranda; e uma impressionante Victoria Abril no mais novo Carlos Saura, El Séptimo Dia. São dias comoventes, que iluminam o viver: aprendizado, alegrias, belezas naturais e históricas, arte e cultura, nenhuma violência e bom acolhimento. Olé, chicos y chicas!

Antonio Júnior
de Barcelona (Espanha)

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