Fagundes em russo

                Sim, eu já estive na Rússia. É o lugar mais distante em que eu já estive (tem algum lugar mais distante?). Rapaz, a Rússia é longe. Foram 17 horas de viagem, sem nenhum filminho no avião, porque na companhia russa Aeroflot não tem isso. Fizemos uma parada na Tunísia, de madrugada. Madrugada pra mim, porque na Tunísia estava amanhecendo. Foi servido um desjejum leve: ovos mexidos com salsicha. Às 3 da manhã. Essas viagens longas têm efeitos interessantes sobre a alimentação. Durante uma semana eu almocei o mesmo prato: um filé gorduroso não identificado, que deveria ser carne de porco, com um molho branco meio azedo, acompanhado de repolho. Para beber, uma espécie de chá-suco: um copo de água quente meio avermelhada com frutas amassadas no fundo. Eu tinha ido a um congresso e a organização achou que gostaríamos de comer esse prato todos os dias.
                Pra compensar, no fim do evento eles organizaram um banquete. Estava marcado para às 21:00 horas e quando chegamos as mesas estavam repletas de frios, vários tipos de presunto, vários queijos, frutas, etc. Acompanhados com muita vodka e muito vinho. Ótimo. Pelas 22:00 h. eu já estava satisfeito. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que só então começaria o banquete. Trouxeram macarrão, saladas, frango assado, o tal filé gorduroso, carnes, depois doces e bolos, sempre com muita vodka e muito vinho. Delicioso. Todo mundo empurrando mais um pedacinho. Imagine algumas centenas de físicos e matemáticos embriagados, vermelhos, ao som de música russa, rindo com a boca cheia de bolo, e terá uma imagem do que foi aquela noite.
                Perto da meia-noite, quando metade das pessoas já tinha ido embora, trouxeram uma sopa, na qual os participantes russos colocavam aquele molho branco meio azedo. Nesse ponto eu já me abstive de participar do espetáculo, por incapacidade mais do que por falta de desejo. Mas segui firme no vinho, conversando com meus novos amigos em inglês, ou algo assim (o inglês falado com sotaque russo deveria ter um nome especial). Mas o incrível, o inacreditável mesmo, aconteceu de madrugada, eram talvez 3 da manhã. A porta da cozinha abriu novamente, para espanto geral, e garçons trouxeram para os poucos restantes o complemento: linguiças! Montes de linguiça para rebater o porre. Esses russos sabem se divertir.

                Quase perdi o trem quando ia de Moscou a São Petesburgo. Cheguei cedo na estação de trens. Olhei por todo lado tentando entender de onde sairia aquele para a antiga Leningrado. Mas quem disse que eu entendia alguma coisa de russo? Zero. Necas. Apelei para uma senhora num guichê com cara simpática. Mostrei o bilhete e fiz cara de quem quer saber. Ela explicou tudo direitinho, em detalhes. Mas em russo. Fiz cara de quem não entende russo. Ela riu e explicou tudo novamente, devagar. Pra mim deu na mesma, claro. Ela balançou a cabeça e pegou um mapa de Moscou. “Ai,ai”, pensei, “por que ela está pegando um mapa de Moscou?”. Ela apontou um ponto no mapa. O mapa estava em russo. Olhei o mapa e olhei pra ela. Fiz cara de “e daí?”. Ela balançou de novo a cabeça, pegou o bilhete da minha mão e mostrou o bilhete: algumas letrinhas no bilhete eram iguais a algumas letrinhas do mapa! Isso devia significar alguma coisa. Pela gesticulação da senhora logo ficou claro. Eu estava na estação errada!
                 – Ai, caralho, puta que pariu.
                 A senhora acho que pegou a idéia e respondeu em russo algo que deveria ser “pois é, meu filho, se fudeu”. Perguntei como fazia pra chegar naquela estação, em português mesmo, e novamente ela pegou a idéia. Explicou tudinho com cuidado, e aproveitou para fazer algumas considerações de ordem geral sobre a inconveniência de se estar na estação errada pouco antes de sair o trem. Não entendi picas mas achei divertida aquela conversa e respondi “minha senhora, é dura a vida de quem não sabe russo na Rússia, não pense que é fácil”. Ela deu risada e entrou na brincadeira, ficamos conversando um pouco e rindo sem entender nada um do outro. Ela riscou no mapa o trajeto de metrô entre as estações e eu me mandei. Acabei pegando o trem em cima da hora.

                Em São Petesburgo fiquei contente ao ver que o banheiro do hotel tinha uma banheira. A primeira coisa que fiz foi ligar a água e sair pra dar uma volta enquanto o negócio enchia. Ao lado do hotel tinha um restaurantezinho simples, entrei ali mesmo. Peguei um cardápio, tudo em russo. “English?”, perguntei para a mocinha do balcão. Ela me estendeu um cardápio em inglês. Escolhi uma salada de frutos do mar, e apontei pra ela no menu o nome do prato. Ela balançou a cabeça. “English, niet”. Ela não entendia inglês! Qual a utilidade do cardápio em inglês se o garçon não sabe entender o pedido? Resultado, tive que abrir o menu em russo ao lado e comparar os pratos até encontrar o que eu queria. Francamente, turista sofre. Sem mencionar a diferença visual entre o banheiro masculino e o feminino. Aqui usamos os pares cartola versus sombrinha, pessoa reta versus pessoa de saia, ou simplesmente as letras M e F. Na Rússia eles usam dois triângulos, um deles apontando pra cima e o outro apontando pra baixo. Da primeira vez é impossível saber qual é qual, e você acaba entrando errado. Da segunda vez é impossível lembrar qual era qual, e você acaba entrando errado de novo.
                Voltei ao hotel para meu banho relaxante. A banheira estava cheia, com água quentinha, uma delícia. Antes de entrar telefonei pra casa, no Brasil. Depois de 10 minutos falando com a minha mãe, comecei a ficar impaciente para desligar. Mas quem disse que ela deixava? “Mãe, chega, esse negócio vai ficar caro. Depois a gente se fala”. Ela acabou aceitando, não sem antes fazer diversas recomendações, claro. Finalmente, o banho. Entrei na banheira com um livro, pra ficar ainda mais relaxante. Apoiei a cabeça e fui virando as páginas, naquela água quente, uma fumacinha subindo, eu me relaxando. Fechei os olhos pra curtir a sensação. De repente, um grito! Levei um puta susto e o livro caiu dentro da banheira. “Que foi isso?”. Outro grito. Aí eu entendi que não era grito nada, era o telefone, um puta telefone barulhento do caralho.
                Levantei da banheira, olhei o livro lá no fundo e resolvi deixá-lo lá. Atendi o telefone. Ao menos no hotel entendiam inglês.
                – Yes.
                – Mister Novaes, o senhor poderia por favor descer até a recepção? Gostaríamos que pagasse pela ligação telefônica que acabou de fazer, please.
                – Não posso pagar mais tarde?
                – Neste caso preferimos que seja agora, porque se trata de um valor um pouco elevado...
                Infinitas reticências. Um pouco elevado my ass, pensei mas não disse. “Ok”. Só me restou me secar, tirar o livro da banheira, soltar a água e descer pra encarar a facada. Foi lindo: mais de 100 dólares por uma única ligação. Crianças, não liguem para mamãe da Rússia, certo? Mandem um e-mail.
                Voltei para o quarto um tanto deprimido, e liguei a televisão, só de sarro. Telejornal em russo? Engraçado. Será que alguém entende essa droga? Não é possível. As letras ao contrário, tem uma que parece uma aranha. Sai dessa. Fui zapeando, e encontrei adivinhem quem? Regina Duarte! Olhando pra mim com carinha de coitada em plena São Petesburgo. Mudança de câmera e aparece quem? Antônio Fagundes. Os dois estavam conversando em russo, ao que parece a Rússia importa nossas novelas. Estamos acostumado a ouvir o Silvester Stalone dublado, mas o Fagundes? E em russo?

Marcel Novaes

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