INFIEL E ANÔNIMO EM TÂNGER  (*)

"Se habitamos um clarão, este é coração da eternidade"
(René Char)

De tanto viver remando contra a corrente, enfrentei variados desgostos que tentaram tomar conta do meu ser, e o desgosto leva a náusea. Lutando contra essa bandida atravesso a porta de Bar er Raha, em Tanger. O ar está cheio de odores. Inquietantes melodias mais parecendo queixumes. Andorinhas à procura de insetos, labirinto de estreitas ruelas, luz rasgando sombras. Os rostos corados, os sons, o mar da praia de Malabata, banhos públicos e a compreensão de que para um muçulmano a vida está dividida entre crentes e infiéis. O fascínio retornado nesta terceira visita ao Marrocos. Em suma, para iniciar no encantamento, basta aprofundar-se no amor, na cultura e na arte, entre outros prazeres. Estou nas terras de Alah querendo acreditar que vidas humanas são sempre maiores do que se sabe, como colinas baixas que dão sobre uma grande baía, querendo acreditar que uma vida por mais frívola e vazia sempre contém, em algum canto escondido, algo que faz com que se possa entendê-la. Passeio pelo bairro do Kasbah, incendiado de desejo por esta cidade que na primeira metade do século 20 foi reduto de contrabandistas, espiões, exilados e homossexuais em férias. A terra escolhida por Paul Bowles! Lembro do corpo frágil do escritor apoiando-se no meu ombro para dar mais alguns passos no Petit Socco, pequena praça ladeada de cafés e hotéis. No Marrocos, mora o irreverente contador de histórias espanhol Juan Goytisolo, se encontra o túmulo de Genet na beira-mar e lendas e mistérios do casal Bowles. É inútil estar só, mesmo amparado numa liberdade própria. Tatear sozinho no escuro não é fácil. É preciso forças para avançar sempre, no meio de todos, sentindo perfumes diferentes segundo receitas secretas, no mesmo caminho pelo qual multidões, há séculos, caminham hesitantes em direção a um futuro incerto. Posso ver claramente, nenhuma certeza é oferecida a ninguém. Ela estava com Capote, Burroughs, Ginsberg, Tennessee Williams ou Isherwood quando por aqui passaram? Não acredito. Vivo, corro mundo, guardo segredos e não posso, não quero deixar de ser o que sou, ou seja, da raça que sempre parte: a nômade. O que respiro se chama liberdade? Tomando chá de hortelã às 8 da manhã no Hotel Ville de France, onde se hospedava Gertrude Stein e sua amante Alice B. Toklas, ignoro os enfadonhos costumes provincianos apenas existindo. A liberdade do coração só se tranqüiliza diante do amor. Porque no amor ninguém tem prazer sozinho. Minhas amizades e meus amores são principalmente físicos. Amo a vida com paixão, carnalmente. Caminhando na cidade moura, desenhada por associações literárias, não quero ter razão, muito pelo contrário, procuro aprender a estar errado. Quem quer ter sempre razão se sentirá contra todos. Tenho por exemplo Oscar Wilde, que viveu sob a lei da arte como beleza e da vida como refinamento, e depois da derrota, do cárcere, da traição, decepcionado com seus desenganos, deixou de escrever. Miserável e doente pelas ruas de Paris, encontrou certa vez André Gide e, diante do incômodo desse, disse: Não é preciso se interessar por alguém que foi fulminado . São dias de reflexão e leituras nos domínios do profeta Maomé e do colonialismo francês durante 44 anos. Aprendi que a reflexão e a leitura não fornecem exatamente o esquecimento e a distração, sendo assim, levo-me pelo desatino, dançando sinuosamente no clube noturno Le Palais do Hotel Tanjah Flandna. Homens de várias idades sorriem, alguns oferecem cigarro de haxixe puro ou me tomam masculinamente nos braços e bailam, selvagens. Seria capaz de lutar numa guerra em defesa do Marrocos, pois aqui tudo pode acontecer. Ainda ontem, na festa nos jardins do Palácio Mendoub, cujo dono é o editor e milionário Malcolm Forbes, em que trabalhei carregando caixas de sons, refletores e fios intermináveis de uma equipe de música, conheci o novelista Rodrigo Reys Rosa e me deixei levar pela sedução platônica de um casal de artistas.  Em Tanger esqueço meu nome, idade e a própria identidade; esqueço costumes e cidades ocidentais, tornando-me gato sujo sem dono, raça ou pátria. Sou possuído pelo Marrocos. Amo-o! Sei que o homem é animal tolo, a começar por mim, e tolo e sentimental ouço a língua árabe marroquina, entro em lojas de artigos de barro e outras de tapetes e killims, fumo kish, esqueço parte de mim mesmo em proveito de uma expressão comunicável. Esmago a dor e alguma verdade pessoal, para caminhar em direção ao mar, à luz e as fontes inesgotáveis dos sonhos e dos corpos, da saúde e do riso dos homens. Imagens do mercado Grand Socco, da mesquita Sidi Bouabid com ricos azulejos, de praias banhadas simultaneamente pelo Atlântico e pelo Mediterrâneo, de um adolescente vendendo fósforos, do belo guia Samir - irmão do meu jovem amigo Rachid, que me disse O meu irmão mais novo cuidará de você todos os dias em que estiver nesta cidade – deitado nu na minha cama e eu sem conseguir tocá-lo. Nunca usei o Marrocos como paraíso sexual, quero-o como demência, espiritualidade e beleza. É que sem a beleza, o amor ou o perigo, seria quase fácil viver.

(*)  Do livro: " A Língua Apunhalada - Crônicas dos Dias Errantes", 2004.

Antonio Júnior

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