CARTA

Cara, escrever rodando por estradas é como uma exigência da experiência que ulula, que grita. Estamos nessa trip já somam dois meses. Desde que saímos do Rio de Janeiro, no início do ano, muitas coisas surpreendentes e apaixonantes têm ocorrido. Mas vou dar um salto, vou pular São Paulo, Paraná e Santa Catarina só pra contar nossos últimos dias. Estamos em Osório, uma minúscula vila de pescadores no extremo norte do litoral do Rio Grande do Sul. A praia é do tamanho do Arpoador, aí do Rio. Ela tem ondas batidas e permanentes. Onda trepando em onda montando um mar marolado e sempre cheio. Não é legal pra pegar onda, pra surfar, mas é ótimo pra banhar. É fundo logo na beira, mas dá pé, formando um banco de areia depois da arrebentação, longo, contínuo, até a formação das ondas.

Quem sabe morem duas mil pessoas nesse lugar. O sol é intenso e delicioso, temperado por um vento matutino voraz, agitando palmeiras e lançando areia nos casebres sem forro. A maioria das habitações na beira mar é de madeira, naquela arquitetura de tábua-pós-tábua, uma pregada na outra com uma ripa de proteção no meio. Os telhados, alguns de telha francesa, outros de palha de piaçava. Os habitantes são descendentes de europeus. De suíços e germânicos. Têm uma aparência incomum. Rostos de traços finos, narizes afilados e cabelos, de louros a descoloridos, semibrancos. Agora pasme! A maioria carrega olhos cerúleos.

Cê não imagina a casa que conseguimos para hospedagem. Uma casa de vila muito antiga, construída em 1912. A Fábrica de Veludos e Fitas Suíça S/A fica colada na vila. A vila dava suporte habitacional a técnicos e operários da antiga fábrica. As casas da direita destinadas aos funcionários graduados. As da esquerda para os técnicos e operários. Todas numeradas em algarismos romanos. Vinte a cada lado. A faixa de terreno central, entre as duas fileiras de casas, tem no máximo, seis metros. Todas as casas são geminadas. As habitações dos funcionários graduados apresentam duas janelas e uma porta. As dos operários, apenas uma janela e uma porta. Aos fundos da casa onde estou, há um bom terreno, com mais ou menos dez metros de comprimento. Hoje a fábrica é decadente e as casas foram adquiridas por pessoas várias.

Quando penetrei nesse ambiente pela primeira vez, não consegui parar de escarafunchar tudo, como um pesquisador obstinado que perde sua objetividade por conta da diversidade de descobertas verificadas no processo de busca. Todos os objetos e móveis da casa estão dispostos, ao que parece, desde o sempre. Na sala, há estantes minúsculas de madeira, escalonadas numa das paredes. Nelas estão expostos bibelôs de biscuit franceses, quem sabe, suíços. São esmaltados, bem coloridos e com aplicação de pó de ouro. Retratam cortesãos palacianos, estilo belle-époque.

Um armário de madeira a um canto protege um gaveteiro de recordações. Numa das repartições encontrei uma caixa de madeira com dois jogos de times de botão de galalite, uma resina hoje rara que antecedeu o plástico. Os botões portavam afixados os nomes de jogadores dos anos cinqüenta, Joel, Dida, Adhemir. Enrolados num lenço de seda, os broches das campanhas presidenciais do Marechal Lott e do Adhemar de Barros. O do Lott era uma espadinha dourada, o do Adhemar um pin com fotografia, quase um boton. Na outra parede da sala há uma reprodução da Santa Ceia. Todos os movimentos dos apóstolos possuem dramaticidade. Judas segura o saco com as trinta moedas da corrupção sobre a mesa, não as esconde. Outros confabulam, alguns sussurram ao pé do ouvido, aqueles gestuam em ato conclusivo. O coletivo parece tramar a traição. O Cristo ao centro mantém olhar complacente. Ali acontece a visão de Drummond em Retrato de Família, os personagens parecem se mover. Um quadro de desenho pop mostra Jesus no Monte das Oliveiras com o cálice sobreposto à sua cabeça flutuando ao ar. A luz dessa pintura vem de uma lua obscura, sombreada por nuvens negras. Fazem par com os quadros, diplomas das Cruzadas da Boa Vontade de Alziro Zarur. Ainda abrindo gavetas nesse armário encontrei várias ferramentas e dois protetores de couro para cabeças de galos de briga.

A cozinha tem uma arrumação muito prática. Prateleiras de metal esmaltado guardam os mantimentos e utensílios necessários. O fogão é de ferro. Fiz um café saboroso com bule e saco de algodão de coador.

Minha curiosidade aumentou. Fui ao vizinho que me emprestara a casa por alguns dias. Sem denotar indignação ou motivos de rejeição, perguntei pela história da casa e das pessoas que a habitaram. Ele disse que eram pessoas fabulosas. Um casal e cinco filhos, duas meninas gêmeas e três meninos. Não houve gente mal recebida por aquela família. Gostavam de conversar e, ao contrário da maioria, eram curiosos e receptivos a viajantes. Naquela casa todo mundo podia tomar um café e comer um pedaço de pão, segundo ele. Sempre havia boa acolhida.

Voltei ao ambiente. Nos fundos, uma porta da cozinha dava acesso ao quintal e ao banheiro. O quintal tem terreno extenso e está plantado em parte com ervas de propósito medicinal. Camomila, erva cidreira, picão, capim-limão e outras. O banheiro lá atrás, uma casinha separada do corpo da construção principal.

Há três quartos. Num, a cama de casal, uma penteadeira e um armário. Todos art decô. Sobre a penteadeira, um congá com estátuas de São Judas Tadeu, Santo Antônio, Iansã, caboclos, Nossa Senhora da Conceição e amuletos. Dois castiçais de alpaca estão emparelhados junto ao congá. Há um criado mudo a cada lado da cama. Num deles, o mais próximo à porta, está uma fotografia estranha - duas gêmeas com cinco ou seis anos, de cabelos penteados com laçarotes e tranças, usam vestidos rodados brilhantes e estão sentadas nos degraus da porta de entrada da casa. A foto é preto e branco. Aos pés, meias três quartos e cada uma calça apenas o pé esquerdo de sapatos tipo boneca. As duas mostram o pé direito descalço, apenas vestidos com as meias. É uma montagem artística ousada e instigadora. Entre as duas, um cão pequinês, hoje em extinção, posa convicto com olhos firmes e focinho prognata.

No outro criado mudo, próximo à parede há vários porta-retratos de marqueterie. Uma das fotos retrata a mãe da família na juventude. A foto é de uma sensualidade arretada. Ela traja um vestido tornado curto pelo cruzar das pernas. Demonstra olhos interrogadores, lábios grossos, cabelos chanel com um traço das pontas recobrindo, sombreando a luz na altura do olhar. O decote do vestido insinua o torneado dos seios. Há outras fotos de paisagens, dos filhos homens, de amigos e crianças. Sobre a cama, na parede, estão afixados gravuras de Zé Arigó, Chico Xavier e a foto clássica, outrora tradicional, do casal em par.

Nas gavetas da penteadeira, uma caixa de lata do chá inglês Liptons, dos anos trinta. Agendas, cadernetas de poupança de 1945. Uma caixa de madeira do Matte Leão, ainda com dois Tês cheia de berloques. Cartas de amigos que escreveram em 1946. Um objeto me transportou, o boneco holográfico do Alka-Seltzer remexendo o corpo dentro de um mínimo tubo de televisão efervescendo entre bolinhas borbulhantes. Era um brinde presente no mundo a que vivi na infância.

O vizinho falou a respeito do estranho desaparecimento da família, acontecido muitos anos atrás, numa viagem de visita a parentes da cidade de Torres, um famoso balneário gaúcho há menos de duzentos quilômetros daqui. Ninguém sabe explicar até hoje. Eles desapareceram mesmo. Foram vistos a última vez, em seu automóvel, um Morris verde. Estavam na estrada a caminho de Torres, ao que se supõe. Não faltam versões narrando suas abduções por extraterrestres. Não há manchas, rastros, vestígios da família. Os moradores da vila não encontraram parentes. Resolveram manter a casa como foi deixada por eles e, em casos raros, como o nosso, emprestam a viajantes por períodos curtos de pouso.

Cara, imagina que do Rio de Janeiro até aqui, presenciamos e experimentamos acontecimentos inúmeros. Paisagens inusitadas, gentes de todo o tipo de ser. Mas eram todos públicos, possíveis a qualquer pessoa. Imagina que viajar de carona é se expor ao máximo. Colocar o corpo na beira da estrada, mostrar a cara procurando um destino casual, arquitetado pelo desejo. Nada mais escandaloso nada mais gritante para a existência do que botar o pé na estrada. Mas aqui, nessa casa, entramos em contato com a privacidade afetiva, comportamental do inicio do século vinte. Para mim é como trafegar no tempo, uma viagem dentro da outra e outra para dentro do ser. Sensações de minha infância voltaram, como nexos de conhecimento humano ou de inconsciente coletivo, incorporados ao meu caráter, à minha experiência, à minha personalidade.

Esperamos chegar a Buenos Aires nos próximos trinta dias. Nunca se sabe... Em Curitiba ficamos por duas semanas curtindo os lances e as pessoas. Quando estiver com os sentidos zen, sentado num café portenho na Calle Florida, degustando medias-lunas e café com conhaque e creme de leite, volto a escrever.

Depois dessa, tenho certeza que um ectoplasma, um vento, um senso, um sinal qualquer do Cortazar vai pintar.

Alexandre Acampora

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