CASEARA

O carro quebrou. A cidade de Caseara, próxima ao Rio Araguaia, há menos de quarenta quilômetros. A estrada de terra, lotada de buracos e pedras parecia com a pista de um jogo de obstáculos. Passamos, em velocidade atrevida, para o tipo de terreno, por um previsível buraco. O buraco era previsível, mas seu tamanho e extensão escaparam a nossos cálculos. Era uma cratera lunar, ou o marco de pouso de alguma nave espacial. O carro alçou vôo por uns cinco ou seis metros depois de topar com a barranca da fenda. Na aterrisagem, os amortecedores foram insuficientes para o impacto. O fundo do carro bateu com força no chão, e nós, batemos as cabeças no teto. Entre mortos e feridos, sobrevivemos todos, menos a caixa de câmbio, que ficou dependurada como um cacho de ferro velho, balangando de maneira patética.

Seria uma longa noite. A uma das margens da estrada, se é que se pode nomear aquilo como estrada, um pasto infinito, que agora, pós o barulho do acidente, chamara a atenção de uma enorme platéia de bois gordos, viris, de aparência nobre. Deviam fazer parte de uma linhagem aristocrática de gado. Puseram-se ao longo da cerca e, ao que nos pareceu, ficaram aguardando a continuidade do espetáculo. Alguns aparentavam impaciência. Ficamos preocupados. Eram bois de grande porte, ficando muito nervosos ou decepcionados, poderiam com facilidade arrebentar os arames de proteção. Na outra margem a floresta, mata fechada, a transição do cerrado para a floresta tropical. Ao céu, uma peneira de estrelas. Uma lua cheia esparzindo luz. Nossos corpos desenhavam sombras, a lataria e os vidros do carro refletiam a potência do luar. No ar, uma bruma fria e mosquitos. Mosquitos da variação pium, um mosquito de corpo arredondado, mais parecendo uma pulga, com um poder de mordida tão eficiente, que imaginamos ser especialista em sugar sangue de gado, rasgando-lhe o couro. Uma mordedura de pium em humanos, provoca coceiras irresistíveis e conseqüentes feridas que atravessam as eras para cicatrizar.

Viajava tendo Chacon como companheiro. Chacon é estatístico e realizávamos o levantamento sócio-econômico do Tocantins. A nova unidade federada contava seu primeiro ano de existência. Outras duplas de técnicos, motorizadas, cobriam o restante do campo. Nosso objetivo era atingir dezoito municípios mapeados pela coordenação de pesquisa. Nada de motoristas. Cada dupla revezava os técnicos na direção dos carros e nas anotações e observações. Faziam doze dias de nossa partida eufórica e corajosa. Fomos a primeira dupla a sair de Miracema, a capital provisória, e já havíamos visitado Tocantínia, Miranorte, Paraíso e Marianópolis. Nosso próximo destino Caseara. Agora, não sabíamos se seria possível atingir.

As cidades visitadas desenhavam em nossas mentes as dificuldades de sair daquele buraco. Significavam lugarejos abandonados e pequenos, facilitando a leitura sociológica. Encontramos o latifúndio improdutivo como característico e agricultura de subsistência centrada na produção de arroz, milho e mandioca como bases da economia. Déficit educacional de 70%, isto é, setenta por cento das crianças em idade escolar sem escolas. Verminoses, hanseníase, bócio, cegueiras, doença de chagas, prostituição infantil, fome, índios degradados e segue longa a lista de moléstias sociais e econômicas.

A pobreza do povo no Tocantins se diferencia muito da miséria em centros urbanos populosos. Os pobres do Tocantins guardam uma sombra de dignidade. Preservam um grande patrimônio espiritual nas músicas, nas danças e festas religiosas. Uma casa de palha, roçado de milho e mandioca, algumas galinhas, um cão, é tudo o que possuem de material. Mas ainda não foram humilhados pelo racismo de classes sociais, muito característico em centros urbanos. O relacionamento familiar é muito forte, não há crianças de rua com a marca da marginalidade.

As cidades compõem vilas sem pavimentação e estrutura urbana de serviços. Os sertões parecem pronunciar que a vida é um improviso. A natureza se expressa com intensidade. Uma chuva pode cambiar a paisagem da noite para o dia, apagando caminhos e casas, expandindo as margens do rio. Os poucos ricos são iletrados e incapazes de multiplicar seus bens por analfabetismo tecnológico e conservadorismo cultural. Parecem apreciar o atraso. O isolamento, a falta de lei e políticas sociais, perpetua o poder despótico com que governam suas corruptelas, como eles próprios gostam de chamar. Vivem beneficiados por empréstimos bancários obtidos nas maracutaias e no aspecto espiritual são mais pobres que os pobres. O espectro de sua prepotência sobrevive na contabilidade das cabeças de gado que possuem.

Chacon, duvido muito que exista um mecânico especializado num raio de trezentos quilômetros. Mecânico talvez até exista um prático, mas peça não existe mesmo.

Naquele ponto do planeta, e com a perspectiva cósmica que o céu infinito de estrelas e mistérios me ofertava, recostei no carro e fechei os olhos pegando uma trip de transcender aquela situação e imaginar todos os meus amigos e todos os lugares amados. Eu e minha caravana interestelar de ilusões. Perdidos nos caminhos do fim do mundo. Num espaço onde não havia e não adiantavam para nada as convenções, sonhei com um fim de semana de festas, grandes amores e prazeres telúricos e obtive comunicação com um bom número de amigas e amigos. Protagonizei deleites penetrando em seus sonhos. Estive nas Paineiras banhando nas cachoeiras, caí no rock numa festa genial em Santa Tereza, conversei a respeito das interfaces entre arte e política, comentei com amigos o panorama da produção de filmes na Europa lamentando o desaparecimento de Fellini. Encontrei o Joe em Los Angeles, pegamos uma praia em Big Sur, depois fumamos um baseado mexicano e bebemos tequila ao por do sol.

Chacon estava estranhando minha ausência e me acordou com toques no ombro. Decidimos caminhar em direção a Caseara. Pegamos o material da pesquisa, nossas roupas e mantimentos, fechamos o que sobrou do carro e pé na estrada. Caminhamos uma dezena de quilômetros sob a bela e vigorosa luz da lua e, cansados, atribuímos a uma alucinação auditiva o ronco do motor de um carro. Minutos depois, sentados na caçamba de um caminhão seguíamos para Caseara.

Seriam nove ou dez horas da noite quando aportamos em Caseara. Cansados, procuramos um hotel e um grupo de moradores identificando nosso ar forasteiro, acorreu ansioso indagando se éramos médicos. Soubemos depois... Nunca um médico aparecera por aquelas paragens. Sabendo a que vínhamos, retiraram-se frustrados.

Na manhã seguinte, fomos acordados por gritos de pânico. Nas ruas, presenciamos um dos moradores do grupo que procurava médico no dia anterior, com a mão esquerda decepada. Sangrando muito, foi transportado para Paraíso. Com estradas naquelas condições, socorrer alguém em emergência era um desafio. O acidentado era um açougueiro e errara o corte do boi com um pequeno machado.

Estava ficando crítica nossa visita.

Resolvemos procurar um mecânico e só havia um na cidade. Um mecânico de tratores que possuía um torno industrial antigo. Ele rebocou nosso carro e levou três dias fabricando a peça que precisávamos. A engenhoca encaixou no mecanismo, mas nos deixou sem a quarta marcha. Achamos o resultado ótimo para a situação.

Dias depois, ao sairmos de Caseara, eu usava um largo chapéu de camponês e pitava fumo de rolo com palha de milho. Ao atingirmos a Belém-Brasília, escapando aos caminhos de terra e pedra, sentindo o carro deslizar no asfalto, tinha a clara representação de uma viagem no tempo. Só existe o que é presente.

Alexandre Acampora

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