UMA VIAGEM ATÉ AO INÍCIO DA ERA CRISTÃ (EM MILREU - ALGARVE)
Os meus caros amigos e bons companheiros para quem escrevo estas crónicas de viagem, já se imaginaram no tempo de Adriano (Públio Élio), imperador romano, durante o 1.º século da Era Cristã, a viver em Milreu no Sudoeste da Ibéria (hoje Algarve), ali, na linha divisória, ou seja, entre os limites das costas do Sotavento e do Barlavento, a poucas léguas de Faro?
Pois claro, é aí onde se encontra o complexo arqueológico da antiga "villa" romana com mais interesse em toda a província algarvia. De notar que Adriano era de origem ibérica, órfão aos dez anos, adoptado pelo imperador Trajano (seu primo), a quem viria a suceder em 117 (d.C.). Adriano viajava frequentemente por todas as províncias do Império, incluindo naturalmente a área algarvia. Conhecido jurisconsulto (publicou o Edicto Perpétuo, verdadeiro código judiciário), afamado pela sua erudição e pelo conhecimento filosófico, aliando aos seus atributos dotes de poeta e artista, foi também um grande construtor: Templo de Zeus em Atenas, Moles Adriani (mausoléu imperial) e a cidade de Antinoópolis.
Viajamos no tempo, quase dois milénios para trás, à velocidade da luz (são só alguns dias de repouso na Nave Espacial da Relatividade, um Sol abrasador como esse de Albufeira ou de Pedras d'el Rei, que torra a pele a esfolar da cor da santola), e lá estaremos em Milreu, no tempo exacto em que Adriano é recebido na Casa senhorial de Milreu.
Vinte séculos passados, o complexo habitacional de Milreu lembra a arte precursora do antigo solar medieval (alterando o Mausoléu pela Capela), que pelas Beiras se pode visitar e observar, e ele lá está no meio duma paisagem bucólica, rupestre, pontilhada de amendoeiras e odorosos laranjais. Verdejante o espaço com majestáticas árvores frondosas recortando o horizonte azul, vale a pena com a alma grande ou pequena, visitá-lo para vivenciarmos o passado e "inspeccionar", com olhos nostálgicos de deslumbramento, a obra dos antepassados que por cá viveram e labutaram e enriqueceram as regiões. Afinal morreram e ainda estão vivos, porque lhes rendemos homenagem e os saudamos em reverência.
Sabem porque é que a História europeia, é um manancial de acontecimentos que são o orgulho de cada europeu? É porque foi terra apetecida de trespasse, de jogos do acaso bélico, de poiso de povos que até da Ásia vinham e aqui se ramificavam. Era terra de acolhimento ainda que forçado. Acolhimento e miscegenação. Se num século pertencia a estes ou àqueles, no século seguinte, pertenceria a essoutros ou aqueloutros. Uma miscegenação de sangues, de culturas, de comunidades diferentes. Aculturando-se, mas capazes também de se lançar em conjunto em cruzadas pela fé em Jesus Cristo até à libertação da Terra Santa. É riquíssima esta História, ela ferve-nos no sangue, e é substrato do orgulho positivo e saudável que nos alimenta.
Todavia, vamos regressar a Milreu. Pressuposto é que seria um importante entreposto agrícola, donde se escoavam os produtos da região para a cidade de Óssonoba e outras partes do Império, sendo que é um dos mais completos espólios arqueológicos da passagem dos romanos pelo Sul de Portugal. Pois é assim como vos digo: Não tinha ainda Jesus Cristo nascido do parto milagroso de Virgem Maria em terras da Judeia, e já os romanos andavam a cavalo ou a pé ou em charrete por terras do Sudoeste da Ibéria, e, não só por estes lados, mas também por todo o Ocidente da Europa e parte da Ásia Menor e Médio-Oriente. A Ibéria era sua colónia, e nesta península haveriam de deixar vestígios por todo o lado, perpetuando o seu domínio ocasional, nas construções arquitectónicas de pedra, na cultura transmitida, especialmente da Língua latina, donde derivaram as línguas românicas (nas quais o português radica) e no foro jurídico - o seu maior legado na forma da mais elevada sabedoria dessa fase histórica, ainda hoje estudado com interesse e reverência na ciência das Faculdade de Direito da Europa.
Milreu faz inveja às terras da Grécia, que vivem do Turismo cultural. É um ponto de visita imperdível para quem está no Algarve. Um ponto obrigatório; é uma "villa" rústica, agora depelada da terra que a cobria e ocultava; as ruínas estão bem à mostra, dando uma ideia muito suficiente do que fora na sua época mais esplendorosa.
Nela ainda se nota a excelente rede de abastecimento de água e uma grande casa, na sua época passada, luxuosa, decorada com mármores e mosaicos. Pode ainda admirar-se o sistema de escoamento de águas, obra avançada de engenharia hidráulica. Os tanques são amplos e magnificamente trabalhados. Não falta o lagar de vastas proporções e os tanques para a pisa da uva. O templo é a construção mais notória - o santuário da água - em forma de galeria com uma «cella» central rodeada por colunatas. A casa senhorial tem as salas pavimentadas e as paredes decoradas com mosaicos de motivos geométricos ou animais marinhos. Os peixes, as conchas e os desenhos geométricos (os quais, estes são, a meu ver, precursores da Arte andaluza) ornamentam a piscina e os pavimentos. Podemos finalmente admirar vestígios bem reveladores dos edifícios, reconstruir mentalmente a parte habitacional, o lugar das termas, o santuário e os quartos.
À volta do empreendimento senhorial, os arqueólogos estenderam os seus achados numa área superior a três hectares, dando a ideia que o povoado adjacente por aí se estendia. A entrada romana estende-se para o litoral e as colunatas de uma ponte visionam verosimilmente ainda a travessia dum ribeiro no tempo dos centuriões.
A estirpe do proprietário da Casa senhorial ficou no segredo de Zeus, mas não é fácil adivinhar que terá sido um comerciante rico ou agricultor abastado. E isso constata-se pelo legado que nela se encontra: mosaicos de ouro e dois grandes mausoléus, assim como bustos marmóreos de Agripina, Adriano e Galieno, membros da família imperial romana.
Existem projectos para se proceder à reconstrução fiel de paredes imitando a traça original com os mesmos materiais, para que se perceba melhor a volumetria dos edifícios originais da "villa" que certamente acomodava o imperador Adriano, quando este era imperador dum vasto império que visitava frequentemente, deslocando-se aos locais mais extremos e mais recônditos.
Agosto 2004
Daniel Cristal