ENCRUZILHADA DOS DESTINOS

Nunca fui um turista; sou um viajante. O turista não encara a intensidade dos lugares desconhecidos, demasiado assustador para ser real. Ele não está interessado na poesia do cotidiano, incapaz da análise profunda dos fenômenos, a qual revela a natureza dos mesmos e a beleza do viajar. Tudo é focado às pressas, sem entrega total, como se estivesse diante de uma série de ocos cartões-postais. Nesta minha recente e valorosa viagem germânica, aprendi que para passar além das imensas dificuldades desta vida, afastar as dores e gozar alegrias, devo continuar cultivando o estado contemplativo. As condições favoráveis para a felicidade são muito difíceis de conseguir e, uma vez encontradas, diluem-se como miragens num piscar de olhos. Aqui, na Floresta Encantada, estudo o mundo do desejo, da forma e da ausência de forma. Sou um inseto de luz flutuando na escuridão sem nome ou matéria. A visão penetrante vai fundo no fado dos seres, na sua maneira como percebem o Universo. Essa prática busca dissipar a obscuridade, desenvolvendo a aproximação realista das coisas e também o auto-conhecimento.

As criaturas deste Rainbow são como personagens de uma comédia inacabada. Muitos deles nem mesmo sabem que existem, outros procuram caminhos para aliviar o vazio. Eles são muitos, de diversas expressões e intenções, gozando uma vida aparentemente ilimitada. O “Círculo da Comida”, em cujo centro ergue-se a enorme fogueira, é uma encruzilhada concentrando milhares de estranhos, cada um com o seu destino único, sentados à espera da ração cotidiana de frutas, legumes e verduras. Todo o sofrimento humano parece inexistente. Um idoso xamã, elétrico, lunático, trajado numa minúscula tanga, rodopia, elevando um longo cajado e acompanhado por um fiel pastor-alemão. A cabeça calva coroada de delicadas flores-do-campo, a barba antiga e grisalha, os olhos glaucos e a pele rígida curtida ao Sol. Um animal raro, um sátiro, o Louco do Tarot apanhando cinzas na fogueira, soprando-as nos nossos rostos, um por um, e gritando: “Love! Love!”. Como será a vida deste homem fora daqui? Consegue suportar o caos urbano? Ele vive a beatitude do corpo e, para a pureza universal, faz constantemente exercícios espirituais e poéticos. Sob a influência do misterioso, a boêmia do poeta cigano divaga num frenesi longínquo, mesmo sabendo que o tempo histórico é uma ilusão da consciência; não existe uma cronologia. Seduzido pela paisagem de sonho, pela concentração humana, rabisca poemas louvando o mais fundo do oceano de si mesmo, de nós, de qualquer ser; versos simples invocando o próprio despertar. Essa simplicidade tem por ventura favorecer o perfume das palavras.

(01)

manteve os olhos fixos, vendo as altas árvores
e a claridade celeste entre os galhos destas.
sabe como as coisas podem ser vazias, mas no momento
há energia para dar sentido à vida.
a chuva interior fá-lo sentir desprotegido,
levando o coração ao desejo de um lugar irradiante
durante muito tempo.
um lugar em que cada silêncio emocionado
provoque ecos azuis.
manteve os olhos fixos, vendo as altas árvores,
a beleza dos olhos ternos de um estrangeiro
e sentindo odores incríveis.

(02)

a primeira coisa que fez ao entrar na floresta
foi acender a luz do espírito.
então fitou-a com uma expressão maravilhada
nos olhos benévolos.
“é belo aqui dentro”, murmurou.
a chuva caiu outra vez, celebrando a vida.
o vento soprou, mas sem fúria.
já não era habitual o que sentia.

Na obscuridade olho para o céu de Goethe, Rilke e Thomas Mann. O caminho da Via Láctea é como o meu caminho. Ao longe e a toda a volta, as montanhas e a Floresta Negra. Existem, e agradam-me à vista. Por isso as olho, imerso na magia. Andara, a Mata Atlântica, a Chapada Diamantina e todas as demais formosuras, visíveis e invisíveis, se completam no meu íntimo. São dias em que não preciso de consolo. Nesse conforto, nessa tranquilidade, repouso o espírito. Não pertenço mais a um lugar do que a outro, movo-me lentamente, algumas vezes com a certeza de uma infinita melancolia, mas nem sempre. Em Berlim, Colônia ou Munique sangra a ferida surgida nos duros anos da Segunda Guerra, ajustando-se contas com o passado de carnificinas e paisagens devastadas. Nas calçadas, tijolos dourados de metal resplandecente, com nomes, datas de nascimento e desaparecimento, anunciam o massacre de 6 milhões de judeus. Adolf Hitler continua sendo o símbolo número um da maldade resultante da retórica nacionalista, embora Bush, Berlusconi e outros sigam a mesma escola. A Alemanha rendeu-se a 8 de Maio de 1945, no que foi o fim da guerra na Europa. Passaram 60 anos e o mundo deu muitas voltas. Mas a II Guerra ainda é o momento mais decisivo e infame da história recente da humanidade, essencial na definição do sistema político e social em que vivemos. De onde escrevo estas palavras, neste lugar de puro contentamento, ocorreu uma violenta batalha resultando em milhares de mortos. A arcaica patifaria humana. Em madrugadas bizarras tive pesadelos com o holocausto anti-semita e, para a minha própria agonia, com o nefasto Josef Goebbels, o ministro da Propaganda da ditadura hitleriana, que me convidava educadamente para conhecer o bunker do Fuhrer. Certa noite, sozinho, ouvi uma voz feminina sem rosto, piedosa, clara, chamando “Viktor! Viktor!”. Logo eu que já havia encontrado um humilde túmulo, numa parte obscura da clareira, cuja lápide trazia o ano de 1944 e um nome, Gustav. Seria um jovem soldado nazista? Um ingênuo mártir que não conseguiu regressar a casa da família? Mas que casa esperou em uma terra que tinha mudado enquanto estava no campo de batalha? Não teria inclusive mudado ele ao ser possuído por um regime de terror e crime? A guerra é um aspecto da nossa estupidez que prefiro esquecer. Torna-se espantoso, pungente, refletir sobre cidades em ruínas que procuram reencontrar a personalidade destruída; invasões, deportações, guetos, campos de extermínio; a crise econômica e moral gerada pela violência; as dificuldades dos sobreviventes em retomarem suas vidas, o mundo diferente que encontram, o desespero e a readaptação dos mutilados; a esperança em dias melhores.

Gosto da Alemanha, da amabilidade de sua gente e do silêncio dramático das cidades. Sinto-me em casa, mesmo rejeitando o frio, e não sei se não é um erro tentar escapar do Inverno. Na verdade, é difícil afirmar, entre tantos lugares onde vivi ou estive, em qual deles me sinto mais em casa. Este país seguramente é um deles, talvez por despertar-me uma série de identificações. Na Bavária, perguntei com vigor: “Onde estás, Ludwig II? Em que castelo formoso o seu fantasma geme ao ouvir óperas de Wagner?”. Desde adolescente assisto em cinematecas obras com o selo de qualidade UFA (Universum Film Aktiongesellschaft) – o mais importante estúdio alemão de cinema até hoje -, aprendendo a amar as suas ambiciosas produções onde se revelaram diretores como Fritz Lang, Friedrich Wilhelm Murnau, Ernst Lubitsch, Paul Leni. Bem como atores da estirpe de Conrad Veidt, Peter Lorre, Brigitte Helm, Pola Negri, Joseph Schildkraut, Lil Dagover, Rudolf Klein-Rogge, Paul Wegener, Zarah Leander, Werner Krauss. Ocorreu-me uma perene atração por “Dr. Mabuse / Dr. Mabuse der Spieler” (1922), “Metropolis” (1926) e “M – O Vampiro de Dusseldorf / M” (1931) ; pelo erotismo da Lola-Lola de Marlene Dietrich, em “O Anjo Azul / Der Blaue Engel” (1930), que marcou época. Adaptado de um romance de Heinrich Mann, o clássico de Josef von Sternberg é a história da degradação de um professor (uma criação magistral de Emil Jannings) apaixonado por uma cantora de cabaré. Jannings, que ganhou o Oscar de melhor ator em 1928 e tornou-se um rosto indispensável em muitos filmes de propaganda do III Reich, está também inesquecível como o miserável porteiro de “O Último Homem / Der Letzte Mann” (1924) ou o Mefistófeles de “Fausto / Faust” (1926). O primeiro é um dos máximos representantes do “kammerspiel”, a corrente realista do cinema mudo germânico. Outro longa-metragem insólito e intrigante para não esquecer: “O Gabinete do Dr. Caligari / Das Kabinett des dr. Caligari” (1919), de Robert Wiene. Ele expõe os sintomas de uma sociedade doente. Era o apogeu da atmosfera expressionista, com um fabuloso jogo de luz e sombras à volta do nebuloso. A Alemanha nunca deixou de produzir e exportar talentos, do corrosivo Billy Wilder ao lendário condutor de melodramas Douglas Sirk, incluindo fotógrafos excepcionais como Eugène Schuftan e Michael Ballhaus. A década de 70 trouxe outra boa fase para o cinema alemão, revelando Wim Wenders, Robert van Ackeren, Ulli Lommel, Volker Schlondorf, entre outros. O mais autoral e incisivo dessa época, Rainer Werner Fassbinder, é responsável por maravilhas como “O Casamento de Maria Braun / Die Ehe der Maria Braun” (1978) ou “O Desespero de Veronica Voss / Die Sehnsucht der Veronica Voss” (1981); e por atrizes em estado de graça: Hanna Schygulla, Eva Mattes, Margit Carstensen, Barbara Sukowa.

No clarão da tarde, escrevendo e comendo bocados de pêssegos, morangos, framboesas e cerejas, recebo o sorriso de um rosto sugerindo um brando contentamento. Rimos os dois. Vou ao seu encontro, sentando-me ao seu lado. A poeta marroquina Amél olha pra mim e ri outra vez. “ Sto molto bene. È come un sogno, e adoro il sognos ”, diz em italiano. Os olhos rasgados, incisivos, faíscam. Conheci-a numa noite de Lua Nova, dias passados, no “Angel Walk” (O Caminho do Anjo). Uma experiência vasta, perturbadora, sensual. Mais de cinquenta pessoas, em fila dupla, de olhos fechados, acariciam “Anjos” que atravessam o túnel carnal. Participei só para cheirar as emoções mais autênticas. “A vida é curta” , define Amél sem nenhum motivo aparente. A vida é curta, confirmo. Levanto-me, atravesso a clareira, deixando a encruzilhada, o coração palpitando numa espécie de triunfo inocente. Caminho pela Floresta com desmedida fé, procurando inconscientemente as trilhas desérticas, contente por estar só e bem, recebendo na cara o ar alucinógeno da tarde úmida e pálida. Quem se esconde dentro de mim? Quem me transforma?

Antonio Júnior

« Voltar