As gaivotas-de-bico-manchado

                                          —   Portugal, Costa da Caparica —


         Sentado à mesa espairava o tempo a espiar seu passatempo.

         Os dedos rodopiavam o copo e as gotas se desfazendo secavam a espuma da cerveja. O mormaço confundia o olhar bisbilhotando as gaivotas na sua dança de cisne acautelado: quando o sol esquenta as águas os peixes nadam mais ao fundo, por isso dançam as gaivotas nas alturas.

         As gaivotas-de-bico-manchado são fêmeas e machos.     

         Sentado à mesa espairava o tempo a espiar seu passatempo.

         No caminho da vinda, o Cacilheiro balouçava forte, a movimentação do ir e vir indispunha o Tejo. Em Almada o auto-bus trazia a gente à Costa da Caparica. O cobrador contava que Salazar tinha morrido sem querer. Também os suicidas morrem  sem querer, eles querem o impossível, por isso morrem.

         As gaivotas-de-bico-manchado são mães e pais ao mesmo tempo.

         O garçom faz menção para uma nova cerveja.

         Os dedos rodopiavam o copo e as gotas se desfazendo secavam a espuma
da cerveja.

         Também o Cacilheiro fazia o Tejo espumante. As gentes entram apressadas no barco buscando assento. As gaivotas, o azul do Tejo e do céu, os peixes no beiral do casco do Cacilheiro - era a rotina cansativa de Lisboa a  Almada, de Almada a Lisboa. 

         Cerejas pretas e vermelhas, morangos, se esbanjam, trazem a safra nos carrinhos-de-mãos, vendidos a "preço de banana".

         Na ginga do barco saltavam as gentes, umas fora outras dentro, mesmo antes de ancorado o barco.   

         Os pescadores sabem mais pegar a pesca que as gaivotas. Sabem mais do mar quente e calmo.

         As amêijoas vivas aferventadas são bem saboreadas. As sardinhas são assadas e servidas, à moda, com as "tripas cheias". Caracóis vivos passeiam dentro e fora  dos balaios, nas portas das vendas. Bons para tira-gosto nos botequins. Na França com mais requinte são os escargots.

         Sentado à mesa espairava o tempo à espiar seu passatempo.

         Hoje é o tempo do passa-tempo, amanhã irei à conferência da Silvia Helena na Universidade Nova, depois ao Jogral de poesias no Teatro e em seguida jantaremos no Bairro Alto na Casa de Fados.  

         O vestido de organza vermelho, as  sandálias de salto... - a  elegância se atrapalhando nas calçadas do Bairro Alto; pedras já polidas
contando a idade por séculos...

         A espuma da cerveja secou em volta do copo, acenei ao garçom - por favor, mais uma cerveja e uma porção de amêijoas ... escura, heim! - Ora pois-pois, são mesmo elas escuras! -  Elas quem, perguntei? - as amêijoas! Esta bem, mas a cerveja pode ser também escura? - Voltou com a cerveja e uma ressalva: estou a bem de dizer-te que as amêijoas, não as temos mais, mas estão fresquíssimas as sardinhas... - Ah! As sardinhas fresquíssimas... mas com ou sem "recheios"? 

         Sentado à mesa espairava o tempo à espiar seu passatempo. 

         As gaivotas-de-bico-manchado são fêmeas e machos!

Marlene Andrade Martins

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