Vestígios do dia
 
   Cena: Mrs Benn e Mr. Stevens esperam o ônibus sentados num banco à beira do cais. Na luminosidade difusa do fim do dia as pessoas saem do trabalho numa agitação esquisita. As luzes dos postes acendem. A multidão bate palmas.
   Mrs Benn: As pessoas aplaudem quando as luzes são acesas.
   Mr. Stevens ( pensativo): Por que será?
   Mrs. Benn: Dizem que para muitos a noite é melhor parte do dia.  A parte pela qual elas mais anseiam.
   Mr. Stevens: É mesmo ...
   Mrs. Benn: Pelo que o senhor mais anseia,  Mr.Stevens?

   — Mãe, o André não pediu para você comprar uma camiseta do Hard Rock Café de Roma?
   André é meu sobrinho de dez anos e  nem sei se ele gosta de camiseta do Hard Rock Café  mas foi a única forma de conseguir tirar mamãe do quarto.
   Bastava escurecer e ela começava:
   — Angela, vamos voltar para o hotel.
   — Angela, não vamos encontrar táxi.
   — Angela, estamos só em mulheres .
   — Angela, a Dani está com sono.
   — Angela, Roma (ou qualquer outra cidade do Universo)  é um lugar perigoso. Principalmente para as mulheres.
   Não sei porque ela tem fobia a mulheres sozinhas. No seu conceito, mulheres desacompanhadas só podem ir as lojas e caminhar durante o dia. A noite todos os homens convertem-se em terríveis tarados e o simples jantarzinho num restaurante caseiro é para ela  um ato de extrema temeridade.
    Eu bem que queria que a fantasia de mamãe tivesse algum  fundamento. Com o charme que os italianos têm, até que seria divertido topar com um ou dois tarados... Mas que nada ... eu não estava com essa bola toda.
   No inverno, devido aos dias curtos, a pentelhação era maior.  Seis horas da tarde meu ouvido não agüentava mais. O jeito era voltar para o hotel e encarar mais uma longa noite defronte a TV, após jantarmos sem fome em algum bar do caminho ou no restaurante ao lado do hotel, sofrível e sujo. Três dias na Itália e eu já sabia de cor a programação inteira da Rai Uno, Due e Tre sem contar com a da TV Montecarlo, da CNN e da TV Plus francesa  .
   Mas naquela tarde minhas filhas tinham sido mais persistentes. A cada minuto elas pediam, no jeito meigo que as adolescentes ordenam:
   — Mãe, eu quero ir no Hard Rock Café.
   — Mãe. Não agüento mais ver TV. Eu vou no Hard Rock Café.
   — Mas Dani, hoje vai passar um filme do Anthony Hopkins  na Rai Uno.
   — Você já viu esse filme no Brasil  .
   — É, mas pode terminar diferente. Você não lembra que Cinema Paradiso,  passou na Rai Tre com uma versão nova? O mocinho agora velho encontrava a antiga namorada e...
   Elas não ficaram nem um pouco sensibilizadas  com as várias edições do filme. A Íris comentou que eu era provavelmente única turista brasileira na face da terra que conhecia a programação completa da televisão italiana. Dava para me apresentar naqueles programas de curiosidades, do lado dos irmãos-lobo ou do autista matemático.
   Elas tinham razão. Afinal, estávamos em Roma, a cidade luz, quer dizer a cidade eterna. Nos divertindo à beça.
   — Tá bom, vocês ganharam. Vamos ao Hard Rock Café.
   Madrugada romana. Nove da noite num ponto de táxi não me assustava. Eu tinha descoberto o jeito de lidar com os motoristas italianos, nem sempre educados com os turistas. Era só fazer cara de mal humorada e mencionar o endereço, caprichando bem no r e abrindo o a, como eu aprendera nas aulas do Dante Alighieri. Há muito tempo, é verdade, mas nas palavras escassas, o sotaque mal se percebia. Além disso meu sangue toscano, a roupa comprada na Via Nazionale e a maquiagem a la romana serviam bem como disfarce.
   Subimos no carro. Com a maior naturalidade sentei no banco da frente e depois de desejar una buona sera disse ao motorista:
   — Al Hard Rock Café.
   O velhinho com ar estúpido respondeu o que eu mais temia:
   — Hard Rock Café ? Dove è il Hard Rock cafe?
   — Sei lá onde é o Hard Café de Roma, porque catzo eu ia saber?
   — Ecco, non lo so, però in tutta città c`è un Hard Rock Cafe...
   O velho me sorriu com cara de ah, já percebi tudo, encarou meu decote que aparecia debaixo do casaco aberto e declarou, batendo na minha perna:
   — Andiamo a vedere nel guida.
   Tarado. Não é que mamãe estava com a razão? Mas  tinha que acontecer comigo... Tanto italiano deus na cidade e logo essa múmia vai pegar no meu pé. Não, devia ser  impressão, isso não podia estar acontecendo.
   — Signorina, vicino a Piazza D’Spagna, andiamo.
   O Signorina serviu para elevar meu astral, pensei sorridente enquanto o motorista desembestava como um louco pelas ruelas da cidade velha, aliás como todos os motoristas romanos .
   A Dani, fã dos esportes radicais, resplandescia. Nem ouvia minha mãe resmungando que o homem fechava demais nas curvas. Eu me preocupava em surfar para o lado oposto do banco, única forma de não cair no colo do velho. Enquanto isso ele  mostrava a cidade, batendo no meu braço:
   — Vedi, il Campidoglio.
   — Questo è il Castel Sant’Angelo.
   Não foi só no pé e no braço que ele pegou. Defronte ao fórum de Trajano o desgraçado apertou meu joelho. Olhei de cara feia. Só podia ser praga de mãe, para depois ela dizer:
   — Viu, não falei!
   Mas não dei bandeira. Afinal, o velho era tão velho que.... Agora, se ele fosse Deus como o taxista que nos trouxe do aeroporto... Moreno, o nariz adunco dos romanos...
   — Prego. È qui en la via Condotti...
   Os olhos escuros, o cabelo liso e castanho caindo sobre a testa...
   — Não vejo Hard Rock Café em lugar nenhum...
   — Piu lento, prego, signor...
   — Mãe, não tem nenhum Hard Rock aqui.
   ... que ele ajeitava mostrando as mãos másculas, peludas...
   — Ah, Dani, péra um pouco, vai ver que é em alguma transversal . Vou falar para ele entrar nesta rua ao lado.
   — Prego...
   Ah, se ele fosse como o deus, quer dizer como o motorista do aeroporto... Vestido com  a jaqueta  de couro preta, a calça justa, colada que dava para ver tudo...
   — Signora, escusa, non lo sai...
   O velho rodava as transversais da Condotti, Fratello, da própria Piazza D’Spagna. Apesar do frio, centenas de turistas caminhavam. Casacos pesados, charmosos,  não sei porque todas pessoas ficam bonitas de mantôs.
    Não só os  italianos morenos, de jaquetas de couro são maravilhosos . Os loiros quarentões, sofisticados nos ternos Armani, também são o maior tesão...
    O velho estava ficando impaciente, minha mãe tinha chiliques do tipo eu não falei e o Hard Rock nada. O taxista parou num Pub, acho que para nos convencer que qualquer bar é bar. Eu desci para perguntar se eles conheciam o Hard Rock. O lugar era agradável, e além disso serviam pizza com cerveja, mas ninguém topou ficar.
   — Depois não vamos encontrar taxi de volta.
   — Não é o Hard Rock Café.
   Pena que as calças do Armani sejam tão largas, não valorizam o que esses loiros tem de melhor ...
   O motorista já desesperado consultou a central do rádio táxi que passou nova informação, definitiva:
   — Non c’é Hard Rock Café a Roma.
  Fiquei chocada. Que bosta de cidade é essa que nem tem Hard Rock Café? Parece terceiro mundo... Custava a me convencer. Em Roma não tem Hard Rock Café? E eu que programara  uma noitada, com batatinha frita e sanduíche vegetariano? Estava morrendo de fome.
   — E o que é que nós vamos fazer então? Que tal a gente comer um spaghetti ai funghi num restaurante aqui da praça...
   As faces decepcionadas no banco traseiro já me diziam a resposta. Antes que mamãe iniciasse a frase, a sensação de déjà vu me fez perder a fome. Ordenei ao motorista:
   —  Andiamo al albergo. Subito. Subitissimo.
   Se o desgraçado do velho não fosse tão velho eu convidava ele pra jantar comigo. Nem precisava usar terno do Armani. E se, melhor, ele fosse loiro ou deus como o motorista do aeroporto eu só reapareceria no dia de pegar o avião de volta  para o Brasil.
   Durante todo trajeto filosofei sobre o absurdo da situação. Espremida entre vontades distintas, conciliando desejos caprichosos de crianças e idosos eu esquecera dos meus. Até chegar a esse ponto ridículo de ter que implorar por um jantar decente.
   Não sei porque lembrei-me do tempo em que eu passava noites vistoriando as carceragens de delegacias, no meu trabalho da Polícia Técnica. O spaghetti ai funghi no restaurante da Piazza D’Spagna tinha o mesmo cheiro do ferro das cadeias e o barulho das travessas que os garçons levavam, eu podia ouvir de dentro do táxi, me recordavam o bater das chaves, o tranco das grades. Eu no pátio, as celas em volta, e o maldito som das chaves. Ferro batendo em aço. Aço batendo em aço. Esse era o sabor do spaghetti que eu não comi.
   Todos perceberam que eu não estava mais para brincadeira, até o tarado, que não falou mais palavra nem tirou a mão da direção.
   Minhas filhas me olhavam conformadas. Passariam a noite com fome. Só minha mãe ainda ousou perguntar se eu não queria comer um macarrãozinho. Nem respondi, e corri para pegar a última parte do filme do Anthony Hopkins. Ironicamente chamado, na versão italiana, de O che resta dal giorno.

 

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