Impressões da Terra Santa
            Manhã de segunda-feira. Venta, chove e faz frio. No Oriente Médio, não é comum fazer frio em abril. Muito menos chover. Mas faz frio e um grupo de pessoas latino-americanas, todos escritores, ocupam um microônibus e se deliciam com as primeiras imagens de Jerusalém, encarapitada nos montes que, por citações bíblicas e imagens de tevê, são familiares ao grupo.
          Chegamos à Terra Santa na véspera, o domingo 6 de abril. E é preciso ainda voltar mais um dia. Deixamos Goiânia, José Mendonça Teles e eu, na manhã do sábado, com atraso de quase hora e meia porque, no jargão dos aeronautas, “não havia teto”. Esse atraso nos obrigou a um chá-de-aeroporto em casa, diminuindo o tempo de espera em Cumbica. De Transbrasil 737 para Alitália 747 há diferenças consideráveis. A camaradagem da tripulação brasileira dá lugar ao artificialismo profissional italiana e fico com uma pontinha de decepção: o sangue de calabrês tem percentual alto em mim. Mas esta é uma viagem longa, iniciada ao meio-dia em São Paulo e concluída às seis e meia da manhã, hora de Roma — onde adiantamos cinco horas no relógio — depois de uma escala no Rio. Antes mesmo de cruzarmos a linha do Equador, já me dava bem com a italianada de bordo.
          Saímos por volta do meio-dia rumo a Tel-Aviv. Mais quatro horas de vôo, mais uma hora de relógio adiantado. Aeroporto Ben Gurion lotado, inúmeros guichês para a tradicional vistoria alfandegária, preocupação severa com a segurança. Passamos sem problemas, havíamos sido interrogados no Aeroporto Leonardo Da Vinci antes do embarque. Enquanto pegávamos a bagagem, encontramos nossos primeiros parceiros: Luiz Ambroggio, argentino naturalizado norte-americano; Juan Ruiz de Torres, espanhol; Ela Navarrete, panamenha; Gonzalo Contreras, chileno. E nós, os goianos (se o Brasil seria, nesse encontro, o país com a maior delegação, com três, Goiás seria o segundo, comigo e José Mendonça; o carioca Antônio Carlos Secchin chegou antes de nós e já nos esperava no Hotel Nevé Illan).
          Essa nossa superioridade relativa nos manteve em inferioridade absoluta. Embora os demais países latino-americanos tivessem, cada um, apenas um participante, no todo eles eram 14, aos quais somavam-se os acompanhantes da argentina Olga Bressano de Alonso e do espanhol Juan Ruiz. Naturalmente, o espanhol passou a ser a língua oficial do encontro e sem combinarmos nada ficou estabelecido que o portunhol seria o idioma da boa-vizinhança. Funcionou.
          Impecáveis, mas perfeitamente aceitáveis, as gafes lingüísticas de quase todos.Secchin levava vantagem, dominando espanhol e inglês (em algumas ocasiões, tivemos palestras em inglês). Quando residiu na França, nosso amigo carioca foi colega e professor de Míriam, polonesa de nascimento e cidadã israelense, companhia quase que constante e muito querida, especialmente para os brasileiros, por sua simpatia e pelo português impecável.
          Mas voltemos à manhã fria da segunda-feira, 7 de abril. Para a maioria, era “lunes” e nessa ocasião o nosso guia, Josef Arad, explica que os dias da semana, “en hebreo” (ele fala espanhol, nasceu no Uruguai), se dizem como em português, portanto para eles também é segunda-feira. Josef nos recomendara sapatos para lama, porque poderia estar chovendo no Monte Hassad, onde fomos plantar árvores. Uma cerimônia judia (laica, não religiosa) marcou aquele momento e fomos todos contemplados com um alfinete de lapela com a réplica de um pinheiro. Lamento haver perdido o meu na viagem de volta. Recebemos também um certificado por haver plantado “com as próprias mãos” uma árvore em Israel. Desde 1967, já se plantaram 250 milhões de árvores lá.
          Só depois chegamos a Jerusalém. Até aqui havíamos visto algumas casas de um bairro árabe. Uma lei obriga as construções a terem por revestimento externo as pedras naturais da região, o que faz da cidade um imenso cartão de construções monocromáticas, pontilhado do verde das árvores plantadas e que são tratadas com cuidados de artesão. A partir de agora, vamos constatar que o novo e o antigo convivem com harmonia em Israel. Em Israel, entenda-se por antigo coisas milenares — um susto para latino-americanos, habituados apenas com as coisas seculares.
           Nosso programa é marcado por um sem-número de palestras, desde um encontro com o escritor espanhol Jorge Semprún até uma aula sobre a evolução da língua hebraica, passando por conferências em inglês, sem intérprete. Em alguns casos, com sotaques tão complicadores que se os palestrantes falassem em hebraico nos dariam o mesmo resultado. Mas a constante eram as visitas a lugares importantes, como museus, universidades, a Corte Suprema e lugares históricos e (ou) sagrados. Visitamos o Museu dos Heróis e Vítimas do Holocausto, onde depusemos uma coroa em louvor dos mortes, e o Museu de Israel. Estivemos no campus da Universidade Hebraica de Jerusalém no Monte Scopus e na Universidade de Tel-Aviv. Fomos a Haifa, Nazaré e Tiberíades, navegamos no Mar da Galiléia, visitamos importantes ruínas e locais santos, tanto na Cidade Velha de Jerusalém quanto em Cafarnaum, tiramos milhares de fotos (só eu, fiz cinco filmes de 36 poses), visitamos um kibutz e convivemos com pessoas as mais diversas, desde jornalistas e escritores até professores e diplomatas. Deixamos de conhecer o local do Batismo de Jesus, por situar-se no Rio Jordão — que é fronteira natural com a Jordânia e, portanto, zona de conflito — e a Corte Suprema, porque, acometidos do choque da diferença horária e da programação ininterrupta, fomos exigidos pelo sono. Mas conhecemos o Mar Morto, o que não estava programado.

Uma gente diferente

          A diversidade de tipos étnicos e culturais supera a decantada miscigenação racial brasileira. Qualquer tipo étnico está presente, bem como uma variação de tipos característicos mais marcantes que um desfile na Marquês de Sapucaí. Ao lado dos judeus ortodoxos, com suas indefectíveis roupas pretas, suas barbas e melenas, seus chapéus e kipas, passeiam mulheres muçulmanas e beduínos e os famosos palestinos com panos em xadrez. Nas paradas turísticas, não falta um beduíno com um dromedário, cobrando três dólares por um “passeio” de dois minutos e não mais que dez metros.
          Algumas coisas mexem com minha curiosidade, como o convívio com diplomatas (sem a empáfia que cerca esses profissionais do lado de cá de Greenwich) ou a convivência harmoniosa entre estudantes e soldados. Afinal, o serviço militar obrigatório atinge moços (três anos) e moças (dois anos), ao completarem 18 anos. Isto interrompe os estudos, mas conserva as relações. Por isso, nos museus é comum um grupo de soldados em torno de um guia ou professor, tomando aulas. E a atenção é a mesma que meninos de primeiras sérias, na faixa dos seis ou sete anos, prestam às suas professorinhas nas aulas semanais nos museus. Impressiona a seriedade dos pequeninos nessas ocasiões, ouvindo aulas de arte com a mesma responsabilidade com que os estudantes mais velhos — os que já têm dezoito anos — ostentam seus fuzis e metralhadoras.
          Nos museus e nas universidades, constatamos que em Israel gastar com cultura é investimento. É uma terra em que o velho e o novo convivem com harmonia e atribuir a expressão “museu” ao que é velho (repito que o conceito de antigo, lá, não é tão modesto quanto o nosso; lá, o que é velho é bíblico) não significa nada. Os museus que visitamos estão instalados em prédios modernos, sempre construídos com as pedras claras típicas do local. Não raro, essas edificações se deram a título de se referenciar a memória de um ente querido. Há também as doações de famílias e fundações judias de todo o mundo.
          Em tudo, predomina o bom-gosto. Nos museus, nas universidades, nos edifícios públicos, nota-se que o zelo é constante. Pixações, agressões ao patrimônio, depredações parecem não acontecer. Como também não se vêem mendigos nem velhos e crianças abandonados. A pobreza só é notada nos acampamentos de beduínos que, contam-nos, recusam-se a abandonar a tradição. No percurso entre Jerusalém de Jericó, nas imediações do Mar Morto, podemos vê-los nas encostas, com suas cabras e ovelhas a escalar os montes em busca do alimento raro.
          No kibutz de Ein Guedi, na orla do Mar Morto, há um Spa. Foi lá que estivemos. A loja de artigos variados, todos voltados para o consumo do turista, tem preços muito maiores que a pequena butique do Hotel Ariel. Existe lá um conjunto de piscinas e uma estrutura para atender o visitante, como um tanque da lama preta medicinal, chuveiros de água sulfurosa e um trenzinho que demanda à praia, com área devidamente cercada e dotado de inúmeros avisos quanto ao cuidado com a água mais salgada do mundo.
          Para a lama e o mar por demais salgado, vão os turistas e os velhos. Os jovens aglomeram-se em torno das piscinas — lembra Caldas Novas. Num grupo de garotas, na típica tagarelice da idade (em hebraico, obviamente) uma menina de seus 19 ou 20 anos traja minúscula bermuda de jeans desfiado, camiseta amarrada logo acima do umbigo e ostenta, nas costas, um fuzil com dois pentes de balas.
          Mendonça se espanta, repetindo o susto de dois dias antes, quando vira, no imenso saguão do Teatro de Israel, pessoas portando potentes pistolas de 9 mm. Nosso guia Josef Arad explica que essa liberalidade para com as armas do exército depende de cada unidade. Nós entendemos que os moços soldados que assim agem cometem, sim, uma postura de excesso de zelo, ou seja, sentem-se soldados em tempo integral.

“Você tem cara de judeu”

          Foi no início da noite de 8 de abril, terça-feira. Terminávamos a visita à Cidade Velha, estávamos diante do Muro das Lamentações — o que restou da antiga muralha do Templo de Salomão, e aquele é o lado externo do Templo. José Arad nos orientava sobre como chegarmos ao muro, a tradição de escrever pedidos num papel e inseri-lo nos vãos entres as pedras do muro de três mil anos.
          Josef Arad é diretor de Programas Especiais do Instituto Cultural Israel ? Íbero América (a instituição que promove o Encontro). No começo, era inevitável confundi-lo com Yousssef Arad, as pronúncias, para nossos ouvidos ainda mal acostumados, é muito quase-igual. Youssef Arad, diplomata, tem um significado especial para nós brasileiros, pois foi cônsul em São Paulo e fala um português impecável. Ele e Míriam eram nossas ilhas num oceano de espanhol, inglês, hebraico e ladino.
          Josef Arad foi nossa companhia mais freqüente, nosso guia infalível. Quando saíamos de nossos apartamentos para as jornadas da programação, lá estava ele, com seu casaco verde-oliva e seu gorro azul, a pasta sob a axila e um inevitável sorriso. Uruguaio de nascimento, ele está em Israel desde 1946. Lutou em várias guerras, desde a Guerra da Independência, em 1948. Na Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, era coronel e comandava o Monte Skopos — onde está o Campus de Humanidades da Universidade Hebraica de Jerusalém — quando eclodiu o conflito.
          É o que se pode chamar um de sujeito bom de papo: bem humorado, 74 anos, disposto como um atleta jovial, bem informado e culto. Em momento algum nos deixou sem respostas.
          Pois bem, estávamos diante do Muro das Lamentações, o grupo em torno do guia, numa típica roda de turistas. Um jovem judeu ortodoxo, curiosamente, enfiou a cabeça entre dois dos nossos e todos o notamos. Josef parou a explanação e, em hebraico, censurou o moço. Ele ignorou a bronca, olhou para todos nós, respondeu algo a Joseg — um palavrão? Josef não traduziria — , deu a volta e, aproximando-se de mim, puxou-me pelo braço e me entregou dois livros.
          Ficamos todos admirados. Agradeci e despedi:
          — Tol da! Shalom! (Obrigado! Paz! — segundo nos ensinara Josef)
          Fiquei com os livros. Josef brincou comigo:
          — Você acabou de ganhar um amigo em Israel. Você tem cara de judeu.
E disse ainda que eu apenas carregaria peso, pois os livros eram hebraicos (além da língua e do alfabeto próprios, escritos da direita para a esquerda e montados também de modo inverso ao ocidental). Já no hotel, depois de muitas gozações dos companheiros castelhanos (Fernando Miranda, do Paraguai, sempre que via um jovem ortodoxo, dizia que era o mesmo, que me procurava para cobrar os livros), Josef comentaria, analisando as obras:
          — Se tiver problemas no Aeroporto, mostre esses livros e será liberado.
 Míriam esclareceu-me que são livros de orações de festas judaicas. Se, algum dia, algum judeu ortodoxo necessitar desses livros, poderei emprestá-los, mas exijo devolução imediata: guardo-os como uma relíquia a mais, ao lado das pedras que colhi na Cidade Velha de Jerusalém e nas ruína de Qumran, sítio arqueológico dos Manuscritos do Mar Morto.
          Um poema na despedida
 

Luiz de Aquino

 

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