Uma gente diferente
A diversidade
de tipos étnicos e culturais supera a decantada miscigenação
racial brasileira. Qualquer tipo étnico está presente, bem
como uma variação de tipos característicos mais marcantes
que um desfile na Marquês de Sapucaí. Ao lado dos judeus ortodoxos,
com suas indefectíveis roupas pretas, suas barbas e melenas, seus
chapéus e kipas, passeiam mulheres muçulmanas e beduínos
e os famosos palestinos com panos em xadrez. Nas paradas turísticas,
não falta um beduíno com um dromedário, cobrando três
dólares por um “passeio” de dois minutos e não mais que dez
metros.
Algumas coisas
mexem com minha curiosidade, como o convívio com diplomatas (sem
a empáfia que cerca esses profissionais do lado de cá de
Greenwich) ou a convivência harmoniosa entre estudantes e soldados.
Afinal, o serviço militar obrigatório atinge moços
(três anos) e moças (dois anos), ao completarem 18 anos. Isto
interrompe os estudos, mas conserva as relações. Por isso,
nos museus é comum um grupo de soldados em torno de um guia ou professor,
tomando aulas. E a atenção é a mesma que meninos de
primeiras sérias, na faixa dos seis ou sete anos, prestam às
suas professorinhas nas aulas semanais nos museus. Impressiona a seriedade
dos pequeninos nessas ocasiões, ouvindo aulas de arte com a mesma
responsabilidade com que os estudantes mais velhos — os que já têm
dezoito anos — ostentam seus fuzis e metralhadoras.
Nos museus e
nas universidades, constatamos que em Israel gastar com cultura é
investimento. É uma terra em que o velho e o novo convivem com harmonia
e atribuir a expressão “museu” ao que é velho (repito que
o conceito de antigo, lá, não é tão modesto
quanto o nosso; lá, o que é velho é bíblico)
não significa nada. Os museus que visitamos estão instalados
em prédios modernos, sempre construídos com as pedras claras
típicas do local. Não raro, essas edificações
se deram a título de se referenciar a memória de um ente
querido. Há também as doações de famílias
e fundações judias de todo o mundo.
Em tudo, predomina
o bom-gosto. Nos museus, nas universidades, nos edifícios públicos,
nota-se que o zelo é constante. Pixações, agressões
ao patrimônio, depredações parecem não acontecer.
Como também não se vêem mendigos nem velhos e crianças
abandonados. A pobreza só é notada nos acampamentos de beduínos
que, contam-nos, recusam-se a abandonar a tradição. No percurso
entre Jerusalém de Jericó, nas imediações do
Mar Morto, podemos vê-los nas encostas, com suas cabras e ovelhas
a escalar os montes em busca do alimento raro.
No kibutz de
Ein Guedi, na orla do Mar Morto, há um Spa. Foi lá que estivemos.
A loja de artigos variados, todos voltados para o consumo do turista, tem
preços muito maiores que a pequena butique do Hotel Ariel. Existe
lá um conjunto de piscinas e uma estrutura para atender o visitante,
como um tanque da lama preta medicinal, chuveiros de água sulfurosa
e um trenzinho que demanda à praia, com área devidamente
cercada e dotado de inúmeros avisos quanto ao cuidado com a água
mais salgada do mundo.
Para a lama
e o mar por demais salgado, vão os turistas e os velhos. Os jovens
aglomeram-se em torno das piscinas — lembra Caldas Novas. Num grupo de
garotas, na típica tagarelice da idade (em hebraico, obviamente)
uma menina de seus 19 ou 20 anos traja minúscula bermuda de jeans
desfiado, camiseta amarrada logo acima do umbigo e ostenta, nas costas,
um fuzil com dois pentes de balas.
Mendonça
se espanta, repetindo o susto de dois dias antes, quando vira, no imenso
saguão do Teatro de Israel, pessoas portando potentes pistolas de
9 mm. Nosso guia Josef Arad explica que essa liberalidade para com as armas
do exército depende de cada unidade. Nós entendemos que os
moços soldados que assim agem cometem, sim, uma postura de excesso
de zelo, ou seja, sentem-se soldados em tempo integral.
“Você tem cara de judeu”
Foi no início
da noite de 8 de abril, terça-feira. Terminávamos a visita
à Cidade Velha, estávamos diante do Muro das Lamentações
— o que restou da antiga muralha do Templo de Salomão, e aquele
é o lado externo do Templo. José Arad nos orientava sobre
como chegarmos ao muro, a tradição de escrever pedidos num
papel e inseri-lo nos vãos entres as pedras do muro de três
mil anos.
Josef Arad é
diretor de Programas Especiais do Instituto Cultural Israel ? Íbero
América (a instituição que promove o Encontro). No
começo, era inevitável confundi-lo com Yousssef Arad, as
pronúncias, para nossos ouvidos ainda mal acostumados, é
muito quase-igual. Youssef Arad, diplomata, tem um significado especial
para nós brasileiros, pois foi cônsul em São Paulo
e fala um português impecável. Ele e Míriam eram nossas
ilhas num oceano de espanhol, inglês, hebraico e ladino.
Josef Arad foi
nossa companhia mais freqüente, nosso guia infalível. Quando
saíamos de nossos apartamentos para as jornadas da programação,
lá estava ele, com seu casaco verde-oliva e seu gorro azul, a pasta
sob a axila e um inevitável sorriso. Uruguaio de nascimento, ele
está em Israel desde 1946. Lutou em várias guerras, desde
a Guerra da Independência, em 1948. Na Guerra dos Seis Dias, em junho
de 1967, era coronel e comandava o Monte Skopos — onde está o Campus
de Humanidades da Universidade Hebraica de Jerusalém — quando eclodiu
o conflito.
É o que
se pode chamar um de sujeito bom de papo: bem humorado, 74 anos, disposto
como um atleta jovial, bem informado e culto. Em momento algum nos deixou
sem respostas.
Pois bem, estávamos
diante do Muro das Lamentações, o grupo em torno do guia,
numa típica roda de turistas. Um jovem judeu ortodoxo, curiosamente,
enfiou a cabeça entre dois dos nossos e todos o notamos. Josef parou
a explanação e, em hebraico, censurou o moço. Ele
ignorou a bronca, olhou para todos nós, respondeu algo a Joseg —
um palavrão? Josef não traduziria — , deu a volta e, aproximando-se
de mim, puxou-me pelo braço e me entregou dois livros.
Ficamos todos
admirados. Agradeci e despedi:
— Tol da! Shalom!
(Obrigado! Paz! — segundo nos ensinara Josef)
Fiquei com os
livros. Josef brincou comigo:
— Você
acabou de ganhar um amigo em Israel. Você tem cara de judeu.
E disse ainda que eu apenas carregaria peso, pois os livros eram hebraicos
(além da língua e do alfabeto próprios, escritos da
direita para a esquerda e montados também de modo inverso ao ocidental).
Já no hotel, depois de muitas gozações dos companheiros
castelhanos (Fernando Miranda, do Paraguai, sempre que via um jovem ortodoxo,
dizia que era o mesmo, que me procurava para cobrar os livros), Josef comentaria,
analisando as obras:
— Se tiver problemas
no Aeroporto, mostre esses livros e será liberado.
Míriam esclareceu-me que são livros de orações
de festas judaicas. Se, algum dia, algum judeu ortodoxo necessitar desses
livros, poderei emprestá-los, mas exijo devolução
imediata: guardo-os como uma relíquia a mais, ao lado das pedras
que colhi na Cidade Velha de Jerusalém e nas ruína de Qumran,
sítio arqueológico dos Manuscritos do Mar Morto.
Um poema na
despedida
Com o adeus,
deixo o canto destes versos:
fulgores do coração
agradecido.