Risadas nervosas
no aeroporto. A sala de embarque é como um purgatório donde
a maioria se eleva aos céus e uma minoria aos infernos. O diabo
é um tentador e belo comissário de bordo. O motorista Gabriel
me conduziu do aeroporto de Carrasco ao centro de Montevideo, apontando-me
os principais atrativos turísticos da capital do Uruguay. Nos 16
quilômetros desse trajeto vi um pequeno e frágil cachorro
abandonado, várias carroças acompanhadas por fiéis
cachorros grandes e peludos. Era meia noite. Começava o dia 16 de
Enero de 1999. Pela manhã, na Ciudad Vieja, vi uma mendiga à
porta da Catedral (neo-clássica com retábulos pós-barrocos).
La Virgen de los 33 é a “patrona” (padroeira) da República
Oriental del Uruguay. No centro histórico da capital uruguaia vi
e admirei muitos solares, palacetes e imponentes edifícios do final
do século XVIII e do XIX. Muitos destes prédios mal conservados,
outros quase irremediavelmente arruinados.
Os segredos
e as intimidades uruguaias ainda trafegam em velhos automóveis e
caminhonetes. Carros Ford dos anos 20 e 30 assim como veículos automotores
de marcas européias montados na Argentina e no Uruguay nos anos
40, 50 e 60 não são escassos nas calles de Montevideo. A
paisagem cotidiana de Montevideo me lembrou relatos de viajantes que visitaram
Havana muito recentemente. Mas a decadência suntuosa de Montevideo
não está tão agravada quanto a de Havana. Muitos restaurantes,
instalados em prédios do início do século XX ou do
século XIX, apresentam interiores arquitetônicos com vislumbres
estéticos modernos e pós-modernos. Os uruguaios não
entendem facilmente a fala luso-brasileira deste despreparado e incauto
turista.
Na Televisão Nacional do Uruguay, no Sábado à
tarde, vi programas técnicos sobre agricultura e pecuária,
análises econômicas, entrevista com um roqueiro da capital
uruguaia e uma mesa redonda sobre a história da vida privada dos
uruguaios. Nesta ocasião, o historiador Gerardo Caetano distinguiu
historiografia de História. A historiografia é por ele vista
como uma história da arte e da técnica de narrar a
História ou as histórias. Nesta conversa entre uma antropóloga
e dois historiadores se levantou vários dados e questões
sobre o nascimento da privacidade uruguaia entre 1870 e 1920.
Em algumas portarias
ou portas de hotéis do centro histórico de Montevideo vi
placas do tipo “Acepta-se niños.” (Aceita-se crianças). Provavelmente
em outros hotéis não se aceitam hóspedes infantes.
Na feira de livros e objetos antigos montada aos sábados na praça
da Catedral de Montevideo, vi várias bancas de feirantes exibindo
lindas bonecas de louça, vestidas como crianças do século
XIX. Assisti até o fim ao interessante programa televisivo
Puglia Invita em sua edição de 16 de Janeiro de 1999. Não
duvido mais: o Uruguai é um outro país. Teresa Porzecanski
foi a antropóloga participante da mesa redonda por mim assistida
neste programa televisivo uruguaio. Brilhantemente, os debatedores aludiram
aos ocultamentos das enfermidades mortais, à visão da morte
como evento não-natural e vergonhoso para a família do morto
e sobre a sensibilidade feminina numa cultura machista como a uruguaia.
Tais cientistas sociais ainda discorreram sobre as várias tentativas
de disciplinar e uniformizar ou padronizar os rituais fúnebres uruguaios.
Tentativas de igualar ou tratar com igualdade aqueles que em vida foram
desiguais, numa espécie de justiça mortal. Por isso os juizes
andam com togas pretas? ... Falaram ainda os painelistas deste programa
da tv uruguaia sobre os catecismos cívicos adotados no magistério.
Também responderam aos telespectadores que perguntaram sobre o que
sejam os intelectuais e no que se diferenciam dos demais profissionais.
E tentaram orientar aos que perguntaram sobre os contornos e os perfis
da identidade nacional uruguaia propondo-lhes a construção
de um povo em vez de se buscar um conceito estático e pronto do
que seja a alma uruguaia. A propaganda mais bela e emocionante que vi na
television Nacional – canal 5 do Uruguay foi a divulgadora do mundo intacto
e rural donde brota a água mineral Salus (com gás, eu preferi).
Perto do Hotel Reina, no qual me hospedei, calle Bartolomé Mitre,
1343, já localizei vários sebos, livrarias e antiquários.
Um dos maiores antiquários do quarteirão chama-se Napoleón
e tem, em sua entrada principal, as bandeiras da França e do Uruguay.
Para o historiador
Gerardo Caetano, o historiador não pode deixar de ser um investigador
social. Sobre os intentos de pesquisa sobre a história da vida particular
dos uruguayos, devo reconhecer a minha estranheza diante da venda de fotos
de casamentos, poses para álbuns de famílias (muitas do início
do século XX ou até do século XIX) na feira de antigüidades
montada no fim da semana en la plaza de la Constituición, en la
Ciudad Vieja, centro histórico de Montevideo e acima designada como
praça da Catedral. Nesta feira pude comprar um retrato em óleo
sobre tela de uma senhora fazendeira que viveu há mais de cem anos
no interior do Uruguai e, provavelmente, ali retratada por algum experiente
pintor e retratista uruguayo anônimo do século XIX. É
a intimidade do povo da República Oriental vendida como sebo (a
granel) nas praças, feiras e mercados. Na noite de Sábado
silencia-se ou deixo de ouvir o carrilhão da Catedral, mas passo
a ouvir os patins das crianças e adolescentes dançando sobre
rodinhas pelas históricas ruas de casas nobres arruinadas pela história
e desaparecimento dos seus ocupantes de outrora.
Alguns minutos
antes do meu embarque para a capital da Banda Oriental, vi o diretor e
cineasta Sylvio Back passar e entrar numa fila para pagar um café.
Aproximei-me dele e perguntei:
— Sylvio Back?
E ele
me respondeu:
— "Às
vezes.”
Disse-lhe, sorrindo:
— Vim até
você só para lhe dizer que muito aprecio o seu trabalho.
E ele me agradeceu por minha resposta e aceitação da
sua obra com outro sorriso de simpatia e charme.
Em seguida,
entrei num túnel que me lançou no avião da Pluna –
VARIG e, como um diabo, meu corpo sumiu desta terra e 2 horas e vinte
minutos durou o vôo que, num baque de pneus na pista asfáltica
e dura del Carrasco Airport me devolveu à humana condição
de terráqueo a se arrastar, com persistência, pelo continente
em que nasci e do qual ainda não me ausentei.
Lautréamont
abandonou sua Montevideo ainda imberbe, trocando-a por Paris, no Velho
Mundo. Também vim até acá para encontrar Lautréamont
em sebos e livrarias.
A tristeza dos
povos formados no estuário platino por colonizadores ibéricos
e as estratégias dos articuladores e realizadores dos interesses
ingleses neste vasto escoadouro de prata, couro, erva-mate, lã e
carnes é muito semelhante às saudades que os portugueses
sentiram da sua terrinha em nossos tristes trópicos.
Mas a tristeza
platina tem muito a ver com a sensação de exílio e
deslocamento dos centros da civilização européia aqui
sofrida pelos seus desterrados anglófilos e francófilos.
O antiquário Napoleão Bonaparte é uma amostra representativa
deste processo cultural. No Brasil muitos ainda riem da posição
na qual Napoleão perdeu a guerra. Mas os hispânicos (mais
afrancesados que os portugueses) reverenciam e cultuam mais seriamente
a cultura francesa. Em este Monte vi Deus! Montevideo!... Um monte de videos?
Foi acá que me senti pela primeira vez um estrangeiro fora da minha
“pátria”.
No segundo dia
de vida em Montevideo vi muito mais cachorros abandonados e mendigos loucos
ou pessoas visivelmente marginalizadas. Na praça de la Constituición
vi uma mendiga usando óculos para escrever e calcular seus pertences
e ganhos no Domingo 17 de Enero de 1999.
A Casa del Teatro
de Montevideo, dentro do Ciclo de Divulgación de autores nacionales
apresenta a peça El Loco Julio do teatrólogo Victor Manuel
Leites, uma produção do Ministério de Educação
e Cultura do Uruguay (que também distribuiu pelas praças
de Montevideo vários quiosques, stands e traillers para a venda
de livros, cds, videos e outros documentos expressivos da história
cultural uruguaya).
No prospecto
sobre a peça El Loco Julio li o neo-barroco poema Oblación
Abracadabra de Julio Herrera y Reissig. Ei-lo:
Para evocar los genios de las lluvias,/
Tragedizaste póstumas lascivias,/
Entre osamentas y mortuorias tíbias/
Y cabelleras de cautivas rubias./
Sonó un trueno. A los últimos reflejos/
De fuego y sangre, en místicos sigilos,/
Se aplacaron los idolos preplejos./
Picó la lluvia en crepitantes hilos,/
Y largamente suspiró a lo lejos,/
El miserere de los cocodrilos.”
Un travesti en silencio contra un poste
es menos triste que la avenida São João de madrugada,
cuando la niebla se recuesta nordestina
y venérea en las ajenas paredes sin empleo, y esperan
las mujeres, y el borracho espera por su sombra
caída en la calzada. La hora en que se hunden
en su rabo interrogante los gatos sin respuesta
y los marineros cantaron y se miran
esperando por su canto, esperando por oirlo
y todos los idiomas son incomprensibles
como la espera del viento por sí mesmo
oyendo su queja vieja de ventana rota.
En el anónimo cuarto sólo iluminado
por el neón afuera, los amantes
son títeres del tiempo: oyen dar
las caricias violentas de la noche y se toman
por la espalda blanda como cama deshecha.
El viento se encajona en la avenida de olor ácido
Y los amantes se duermen al neón repetido, sin
Cuerda
La noche embotellada entre los postes.”
Respingos de sangue e de vinho de Montevideo.
O turfe é
o ballet das elites gaúchas. O Uruguay e a Argentina deveriam ter
(por suas culturas gaúchas e pampeiras) o turfe como principal esporte
nacional. Nestes 2 países platinos a importância dada ao turfe
e aos eqüinos me é plenamente compreensível. Quanto
ao Grande Prêmio Brasil de turfe (no eixo Rio-São Paulo) só
as culturas tropeiras de Sorocaba, do vale do Paraiba do Sul e a cultura
cortesã carioca poderiam me explicar mais convincentemente o espaço
destinado ao turfe no calendário esportivo brasileiro.
O sino da Catedral
registra a vigésima hora do dia 19 de Enero de 1999. Em seguida
ouço latirem los perros de la Ciudad Vieja de Montevideo, por onde,
à noite, passam carroças puxadas por cavalos, levando sacos
de papéis, dejectos ou detritos urbanos recicláveis. Não
sabia que o Teatro Solis de Montevideo (muito perto dele me hospedei) é
uma construção do tempo de Lautréamont. La Ciudad
Vieja de Montevideo cheira a século XIX. La Ciudad Vieja es uno
apêndice nichoso e labiríntico das almas montevidentes del
siglo XIX. Montevideo, em seu centro histórico, cheira a Lautréamont!..
Há menos
de 20 horas me separando do solo do aeroporto de Guarulhos, donde me retirarei
com destino ao interior paulista, onde digerirei os pingos e respingos
de vinho e de sangue de Montevideo.
No caminho para o Aeroporto de Carrasco – Montevideo, o ônibus passou por um cemitério com túmulos e muralhas bem altos, como se visassem proteger os mortos das ventanias que sopram da foz do Rio da Prata.
A lentidão
aqui neste meu texto não é vista como um valor negativo.
O Uruguay me pareceu um país lento ou relativamente imobilizado
pelo gigantismo de seus vizinhos. Na vinda de Montevideo, um empresário
francês me mostrou seu passaporte carimbado pelo Consulado brasileiro
em Montevideo ainda registrando taxas em valores monetários em cruzeiros,
quando há mais de 5 anos a moeda brasileira é o Real.
Nas casas de
câmbio da 18 de Julio a mesma desatenção ou lerdeza
ocorre. Apesar da razoável distribuição da renda nacional
uruguaia, apesar da melhor qualidade da alimentação cotidiana
e popular ou do nível mais culto e eclético, pluralista da
televisão local, este pequeno país hispano-franco-anglo-americano
ainda não é considerado Primeiro Mundo. Porque será?
A vacina
contra a hepatite B só na segunda metade de Janeiro – 1999 começa
a ser distribuída no Uruguai. Só no dia 20 de Janeiro as
autoridades militares uruguaias começam a anunciar providências
contra vandalismos de grupos neo-nazistas e anti-semitas contra sepulturas
del cementerio israelita de Montevideo. Só no dia 19 deste mês
a televisão apresentou programa e reportagem denunciando a pornografia
infantil na Internet. Em plena crise financeira brasileira os cambistas
uruguaios recusavam até travel-checks em dollares. Enquanto isto,
alguns uruguaios mais espertos lotavam os vôos da Pluna-VARIG para
o eixo Rio-São Paulo, onde teriam férias mais prolongadas
com seus dólares valendo bem mais que a moeda brasileira. Comprando
mais bens e serviços no Brasil, desencadeavam uma considerável
fuga de moeda forte de seu próprio país, nesta época
tão procurado por turistas de muitos outros países. No verão,
o turismo representa uma das mais importantes fontes de divisas para o
Uruguai que, ao longo de um ano, recebe muito mais turistas que todo o
Brasil durante o mesmo período!.. Sinal dos tempos: a rede
hoteleira de Punta del Este e de outros pontos do litoral atlântico
uruguaio se ressente com os cruéis efeitos da inclemente concorrência
entre as empresas imobiliárias que alugam apartamentos para temporadas
de veraneio e os serviços da conceituada hotelaria de padrão
europeu do Uruguai. E, por falar em turismo, lembrei-me do
turismo sexual. A propósito, percebi terrorismo numa propaganda
ou mensagem publicitária afixada no vidro que resguarda as costas
dos motoristas dos ônibus metropolitanos de Montevideo: “Preserva-te-vivo!
Use preservativos.” Mas como são charmosamente desatualizados os
designers dos ônibus de Montevideo, my God!.. Desajeitados, antigos,
me inspiram nostalgias, lembranças e devaneios. Coisas de um brasileiro
se sentindo estrangeiro no Uruguai.
Os mortos estão presentes na Ciudad Vieja de Montevideo.
Na tv uruguaia
assisti a um programa especializado na música barroca de Antonio
Vivaldi. Só me lembrei no último dia da minha estadia em
Montevideo que esta capital sul-americana esteve muito presente na história
política brasileira nos anos 60 do século XX. Primeiro
servindo como escala para o então vice-presidente João Belchior
Marques Goulart, em seu retorno da China de Mao Tsé Tung, no auge
da crise deflagrada em 25 de Agosto de 1961 com a renúncia de Jânio
da Silva Quadros, que em pleno Dia do Soldado abandonava o seu cargo de
Presidente da República, precipitando velhas conspirações
militares contra a posse de seu legítimo sucessor e substituto.
Segundo: a partir
de Abril de 1964, Montevideo recebeu João Goulart já na condição
de presidente deposto e exilado no Uruguai, juntamente com vários
de seus ex-ministros e auxiliares diretos( como Raul Riff) e seu cunhado
e deputado cassado Leonel de Moura Brizola. Líderes sindicais do
populismo janguista também acá buscaram refúgio e
proteção contra a ditadura civil e militar que se instalava
no Brasil. Mas, apesar disto, não vi marca alguma da prolongada
permanência de todos estes brasileiros nesta patética Montevideo.
O toque- toque
dos cascos dos cavalos das carroças dos papeleiros, que todas as
noites cruzam duas ou três vezes as calles de la Ciudad Vieja, me
dá uma idéia sobre o tropel dos cavalos das carruagens que
por ali passavam há mais de cem anos!..
Na plaza de la Constituición, vende-se, aos sábados,
santinhos com lembranças fúnebres, de primeiras comunhões,
bonecas de crianças do século passado, retratos de casamentos
em famílias que não existem mais, postales recebidos da Europa
por damas e senhoritas de Montevideo no início dos anos novecentos.
Eu não
creio em maldições, mas a Ciudad Vieja é um cenário
de um filme de terror. Acá os mortos resistem e relutam em não
deixarem a cidade onde nasceram e na qual querem continuar existindo, como
os fantasmas clericais e patrióticos que saem à meia noite
das alvas e marmóreas tumbas de la Catedral de la Imaculata Concepción
de la Virgen de los 33 de Montevideo de la República Oriental del
Uruguay!... Tremendo!..
Papai mandou-me a Montevideo.
Em 1950, estupefato,
papai assistiu o monstro Uruguay derrotar o Brasil na traumática
caverna carioca do Maracanã, quando perdemos a Copa do Mundo de
Futebol. 49 anos depois, a mando de papai, fui conhecer de perto o monstro
Oriental. E voltei apaixonado pelo celestial dragão uruguayo. Tal
paixão seria uma traição aos sentimentos de papai?