Sobre a suntuosidade (decadente ou delirante?) de Montevideo

          Risadas nervosas no aeroporto. A sala de embarque é como um purgatório donde a maioria se eleva aos céus e uma minoria aos infernos. O diabo é um tentador e belo comissário de bordo. O motorista Gabriel me conduziu do aeroporto de Carrasco ao centro de Montevideo, apontando-me os principais atrativos turísticos da capital do Uruguay. Nos 16 quilômetros desse trajeto vi um pequeno e frágil cachorro abandonado, várias carroças acompanhadas por fiéis cachorros grandes e peludos. Era meia noite. Começava o dia 16 de Enero de 1999. Pela manhã, na Ciudad Vieja, vi uma mendiga à porta da Catedral (neo-clássica com retábulos pós-barrocos). La Virgen de los 33 é a “patrona” (padroeira) da República Oriental del Uruguay. No centro histórico da capital uruguaia vi e admirei muitos solares, palacetes e imponentes edifícios do final do século XVIII e do XIX. Muitos destes prédios mal conservados, outros quase irremediavelmente arruinados.
          Os segredos e as intimidades uruguaias ainda trafegam em velhos automóveis e caminhonetes. Carros Ford dos anos 20 e 30 assim como veículos automotores de marcas européias montados na Argentina e no Uruguay nos anos 40, 50 e 60 não são escassos nas calles de Montevideo. A paisagem cotidiana de Montevideo me lembrou relatos de viajantes que visitaram Havana muito recentemente. Mas a decadência suntuosa de Montevideo não está tão agravada quanto a de Havana. Muitos restaurantes, instalados em prédios do início do século XX ou do século XIX, apresentam interiores arquitetônicos com vislumbres estéticos modernos e pós-modernos. Os uruguaios não entendem facilmente a fala luso-brasileira deste despreparado e incauto turista.
Na Televisão Nacional do Uruguay, no Sábado à tarde, vi programas técnicos sobre agricultura e pecuária, análises econômicas, entrevista com um roqueiro da capital uruguaia e uma mesa redonda sobre a história da vida privada dos uruguaios. Nesta ocasião, o historiador Gerardo Caetano distinguiu historiografia de História. A historiografia é por ele vista como uma história da arte  e da técnica de narrar a História ou as histórias. Nesta conversa entre uma antropóloga e dois historiadores se levantou vários dados e questões sobre o nascimento da privacidade uruguaia entre 1870 e 1920.
          Em algumas portarias ou portas de hotéis do centro histórico de Montevideo vi placas do tipo “Acepta-se niños.” (Aceita-se crianças). Provavelmente em outros hotéis não se aceitam hóspedes infantes. Na feira de livros e objetos antigos montada aos sábados na praça da Catedral de Montevideo, vi várias bancas de feirantes exibindo lindas bonecas de louça, vestidas como crianças do século XIX.  Assisti até o fim ao interessante programa televisivo Puglia Invita em sua edição de 16 de Janeiro de 1999. Não duvido mais: o Uruguai é um outro país. Teresa Porzecanski foi a antropóloga participante da mesa redonda por mim assistida neste programa televisivo uruguaio. Brilhantemente, os debatedores aludiram aos ocultamentos das enfermidades mortais, à visão da morte como evento não-natural e vergonhoso para a família do morto e sobre a sensibilidade feminina numa cultura machista como a uruguaia. Tais cientistas sociais ainda discorreram sobre as várias tentativas de disciplinar e uniformizar ou padronizar os rituais fúnebres uruguaios. Tentativas de igualar ou tratar com igualdade aqueles que em vida foram desiguais, numa espécie de justiça mortal. Por isso os juizes andam com togas pretas? ... Falaram ainda os painelistas deste programa da tv uruguaia sobre os catecismos cívicos adotados no magistério. Também responderam aos telespectadores que perguntaram sobre o que sejam os intelectuais e no que se diferenciam dos demais profissionais. E tentaram orientar aos que perguntaram sobre os contornos e os perfis da identidade nacional uruguaia propondo-lhes a construção de um povo em vez de se buscar um conceito estático e pronto do que seja a alma uruguaia. A propaganda mais bela e emocionante que vi na television Nacional – canal 5 do Uruguay foi a divulgadora do mundo intacto e rural donde brota a água mineral Salus (com gás, eu preferi). Perto do Hotel Reina, no qual me hospedei, calle Bartolomé Mitre, 1343, já localizei vários sebos, livrarias e antiquários. Um dos maiores antiquários do quarteirão chama-se Napoleón e tem, em sua entrada principal, as bandeiras da França e do Uruguay.
          Para o historiador Gerardo Caetano, o historiador não pode deixar de ser um investigador social. Sobre os intentos de pesquisa sobre a história da vida particular dos uruguayos, devo reconhecer a minha estranheza diante da venda de fotos de casamentos, poses para álbuns de famílias (muitas do início do século XX ou até do século XIX) na feira de antigüidades montada no fim da semana en la plaza de la Constituición, en la Ciudad Vieja, centro histórico de Montevideo e acima designada como praça da Catedral. Nesta feira pude comprar um retrato em óleo sobre tela de uma senhora fazendeira que viveu há mais de cem anos no interior do Uruguai e, provavelmente, ali retratada por algum experiente pintor e retratista uruguayo anônimo do século XIX. É a intimidade do povo da República Oriental vendida como sebo (a granel) nas praças, feiras e mercados. Na noite de Sábado silencia-se ou deixo de ouvir o carrilhão da Catedral, mas passo a ouvir os patins das crianças e adolescentes dançando sobre rodinhas pelas históricas ruas de casas nobres arruinadas pela história e desaparecimento dos seus ocupantes de outrora.
          Alguns minutos antes do meu embarque para a capital da Banda Oriental, vi o diretor e cineasta Sylvio Back passar e entrar numa fila para pagar um café. Aproximei-me dele e perguntei:
          — Sylvio Back?
          E  ele me respondeu:
          — "Às vezes.”
          Disse-lhe, sorrindo:
          — Vim até você só para lhe dizer que muito aprecio o seu trabalho.
E ele me agradeceu por minha resposta e aceitação da sua obra com outro sorriso de simpatia e charme.
          Em seguida, entrei num túnel que me lançou no avião da Pluna – VARIG e, como um diabo,  meu corpo sumiu desta terra e 2 horas e vinte minutos durou o vôo que, num baque de pneus na pista asfáltica e dura del Carrasco Airport me devolveu à humana condição de terráqueo a se arrastar, com persistência, pelo continente em que nasci e do qual ainda não me ausentei.
          Lautréamont abandonou sua Montevideo ainda imberbe, trocando-a por Paris, no Velho Mundo. Também vim até acá para encontrar Lautréamont em sebos e livrarias.
          A tristeza dos povos formados no estuário platino por colonizadores ibéricos e as estratégias dos articuladores e realizadores dos interesses ingleses neste vasto escoadouro de prata, couro, erva-mate, lã e carnes é muito semelhante às saudades que os portugueses sentiram da sua terrinha em nossos tristes trópicos.
          Mas a tristeza platina tem muito a ver com a sensação de exílio e deslocamento dos centros da civilização européia aqui sofrida pelos seus desterrados anglófilos e francófilos. O antiquário Napoleão Bonaparte é uma amostra representativa deste processo cultural. No Brasil muitos ainda riem da posição na qual Napoleão perdeu a guerra. Mas os hispânicos (mais afrancesados que os portugueses) reverenciam e cultuam mais seriamente a cultura francesa. Em este Monte vi Deus! Montevideo!... Um monte de videos? Foi acá que me senti pela primeira vez um estrangeiro fora da minha “pátria”.
          No segundo dia de vida em Montevideo vi muito mais cachorros abandonados e mendigos loucos ou pessoas visivelmente marginalizadas. Na praça de la Constituición vi uma mendiga usando óculos para escrever e calcular seus pertences e ganhos no Domingo 17 de Enero de 1999.
          A Casa del Teatro de Montevideo, dentro do Ciclo de Divulgación de autores nacionales apresenta a peça El Loco Julio do teatrólogo Victor Manuel Leites, uma produção do Ministério de Educação e Cultura do Uruguay (que também distribuiu pelas praças de Montevideo vários quiosques, stands e traillers para a venda de livros, cds, videos e outros documentos expressivos da história cultural uruguaya).
          No prospecto sobre a peça El Loco Julio li o neo-barroco poema Oblación Abracadabra de Julio Herrera y Reissig. Ei-lo:

          Fui amigo de um poeta nascido em Montevideo e, nos anos 70, exilado no Brasil e posteriormente naturalizado brasileiro. Casou-se com Hilda. Chamava-se (ou chama-se ?) Alfredo Fressia. Em seu livro Cuarenta Poemas , impresso em Enero de 1989 pelas Ediciones Uno, Alfredo brindou-me com este poema revelador de seu passado montevidentino:
            Não sei porque, mas vejo Lautréamont no encalço de Alfredo Fressia... a biografia deste meu ex-amigo de Montevideo me remete à história de Lautréamont. Alfredo é (ou era ?)professor de Francês. Para ele tudo era tremendo e pungente.
          Muito me impressionaram as imóveis posturas dos guardas da negra e marmórea sala sepulcral de José Artigas nos subterrâneos de la Plaza de la Independência e a publicidade da Associación de los Afiliados de las Previsiones. E também a dos Afiliados da fúnebre Casa de la Galícia. Encontrei apenas uma metade do disco da Victor Talking Machine Co. com a Obertura de la Ópera Forza del  Destino, de Verdi, atirada em um certo ponto de uma das calçadas da imponente, pomposa e comercial Avenida 18 de Julio de Montevideo. Os objetos vendidos aos turistas são caricaturas ou clichês da cultura tradicional uruguaia. Para verificar se digo a verdade, vá ao Mercado del Porto de la  ciudad de Montevideo!.. Além dos monumentais edifícios bancários e do faraônico prédio do Banco Central Uruguayo, me chamaram a atenção a imponência do Palácio de las Leys (do Congresso Nacional) e a grandiosidade da arquitetura militar do Comando da Armada, na frente do Mercado do porto de Montevideo.
          Além das milhares de lojas, restaurantes, casas de câmbios, edifícios públicos, monumentos, praças, quiosques, bancas e outras atrações, a Avenida 18 de Julio é uma extensa via para extenuados turistas cansados de tantas imitações, miniaturas e tentativas de imitação da estética arquitetônica do edifício ou palácio Salvo. Por sua vez, este edifício do centro de Montevideo parece imitar prédios semelhantes de Buenos-Aires e, talvez, até de Barcelona!... Muitos dos palacetes em ruinas em Montevideo nos lembram os prédios neo-clássicos (também deteriorados) das decadentes ruas Vitória e Aurora de São Paulo – Brasil, ruas nas quais habitou (até dez anos atrás) o poeta Alfredo Fressia, professor da Aliança Francesa da Vila Buarque.
          Sobre o seu cotidiano no caótico e trágico centro de São Paulo, nos escreveu o poeta Alfredo Fressia:           Placenteros, Oasis e Miracle são alguns dos nomes das casas de massagens eróticas heterossexuais propagandeadas por panfleteadores dispostos ao largo da enorme e serpentina avenida 18 de Julio de Montevideo.
          Apesar dos constrangimentos a mim causados acá pelas turbulências financeiras dos últimos dias no Brasil (ou em todo o mundo?), já posso dizer que sou um pouquito uruguayo e, como meu imperador D. Pedro II, disponho-me a levar um pouco da terra uruguaia em minha volta ao Brasil.
          Anoto aqui também duas observações que fiz ao folhear os mais recentes catálogos telefônicos de Montevideo: as poucas saúnas ou termas nela existentes e a confortante e afetiva informação sobre dois cementerios para animais na capital dos uruguaios. Um deles é chamado de “ecológico”. Interessante!..
          Uma enorme fila, durante todo o Domingo 17 de Enero de 1999, evoluiu para a reeleição da lista ou chapa 4 da Cooperativa COSSAC, com a recondução de 2 de seus atuais diretores à gerência deste grande conglomerado cooperativo uruguaio. Diz o panfleto favorável à chapa vitoriosa: “No prometimos y superamos expectativas. Logros en dos años de nuestro periodo: servicio fúnebre sin costo; cementerio privado sin costo; servicio odontológico sin costo en urgências; servicio de comestibles (entrega a domicilio sin costo);  asesoramiento jurídico (sin costo);convenios y descuentos en comercios adheridos. Obsequiamos perfumes y bufandas en el dia del abuelo. Fuimos los únicos capaces de repartir entre nuestros socios más de 20000 canastras en fin de año. Comprobamos lo que juntos de la mano, la tercera edad com su experiencia y los jovenes com su fuerza pudimos hacer. Respecto, seguridad y confianza.” Força, liberdade e lei são alguns dos pontos cardeais anunciados no  Obelisco de Montevideo na orientação do espírito do povo uruguaio.
          Algumas observações feitas em meu primeiro dia útil em Montevideo: além de, a duras penas, conseguir trocar alguns travel-checks de 50 dollares a mim vendidos pelo Banco do Brasil, en lunes, 18 de Enero de 1999 vi muitos uruguaios ou uruguaias tomando chimarrão ou Coca Cola pelas calles e avenidas de sua capital( inclusive pela 18 de Julio!). Que coisa esquisita!..  Em meio à pressa e aos atropelos nas calçadas da 18 de Julio e de outras ruas centrais de Montevideo percebi o quanto es medonha y tremenda a grosseria de muitos uruguaios e uruguaias, apesar da fama de finesse afrancesada destes sul americanos.
          A não pontualidade me foi notável no atraso da revelação das minhas fotos (revelação prometida para daqui a uma hora mas que só me foi entregue duas horas e quinze minutos após a entrega dos meus filmes). Porque tantos ônibus velhos e caminhonetes tão deterioradas pelo tempo de tráfego circulam pelas ruas da capital das frutas mais gostosas e perfumosas que jamais conhecera? Porque os uruguaios são tão mal educados ao não esperarem os turistas usarem satisfatoriamente seus telefones públicos? Sofri tamanha insegurança em Montevideo durante a atual turbulência nas Bolsas do eixo Rio – São Paulo e noutros mercados financeiros que quase tive uma crise de diabete. Os desconfiados ou oportunistas comerciantes e cambistas dificultaram a troca de meus travel checks VISA/Banco do Brasil e se desculparam acusando os defensores do peso argentino por tal situação. Notei uma certa aquiescência e uma gentileza maior para com os turistas argentinos em detrimento dos brasileiros em Montevideo na segunda metade do mês de Janeiro de 1999. Não existem povos angelicais nem finamente aristocráticos.
          Muitas cidades do mundo contemporâneo revelam as  suas  almas obscurecidas nas pichações desencadeadas em seus muros e prédios. Muitas delas, infelizmente, feitas em prédios históricos. Leiam, a seguir, as inscrições grafitadas nas paredes laterais do edifício do antigo Cabildo de Montevideo (na setecentista calle de la Carrera):
          “Pablito no tiene SIDA. Pablito: la professora no. Lacallo. Diana da me bola. Pablito corazón.  Pablito no se postula. Pablito y Pinchinati mi virginidad por Sofia Loren. El Pablito puede olmedo. Pablito te ama. Com orgullo de ser diferente. Marcha del orgullo gay. – 28/6.... 20 hs Obelisco... Matame Pablito Lucrécia Borgia. Pablito te quiero. André. (..) Pablito: sos muy fogozo. Juana de Argo. Sin discriminación!..  Pablito es corazón. Peñarol campeón 93...94..95... “
          Em busca do perdido Lautréamont, me decepcionei com a Biblioteca Nacional do Uruguay. A cultura burocrática e corporativista de alguns dos seus funcionários não me possibilitaram acessos aos ensaios já publicados pela Revista de la Biblioteca Nacional del Uruguay sobre Lautréamont!.. Um senhor indicou a uma funcionária a coleção Temáticos e ela me disse que lá nada encontrara sobre Lautréamont!..
          Continuei a busca e encontrei Hector Leira, dono do sebo e  Libreria El Aleph – Calle Bartolomé Mitre 1358 – Fone: 9163687, que impressionou-me ao argumentar em prol de uma tese a mim até então inaudita: a cultura uruguaia não é religiosa e sim estóica ou epicurista e sumamente agnóstica.  Foram povos incrédulos e ateus que formaram a cultura nacional uruguaia.  Fiquei boquiaberto com suas instigantes informações. Insisti para que ele me apresentasse ou vendesse algum livro sobre a arte sacra ou a arte sacra do século XVIII no Uruguai e ele me disse que tais livros não existiam porque o Uruguay não teve uma arte colonial religiosa ou barroca como nos demais rincões latino-americanos. Fiquei assombrado... pasmo!... E imaginei aquela gente agitada e estóica ou epicurista vivendo e se arregimentando dentro das muralhas da fortaleza da qual nasceu Montevideo entre 1730 e 1830.
          Para este livreiro, Lautréamont é um marco na literatura universal e muitos mistérios pontuam sua biografia. Alguns destes mistérios permanecerão para sempre devido ao incêndio dos arquivos portuários de Montevideo. Segundo vários estudiosos da vida deste poeta franco-uruguaio (filho de um dos cônsules franceses de Montevideo no século XIX), Lautréamont saiu do seu país com apenas 14 anos e nove anos depois teria voltado de Paris para Montevideo, onde teria sido visto a passear com seu pai  por um de seus ex-colegas no Liceu Francês de Montevideo (testemunho afirmado em entrevista concedida aos oitenta anos de idade). Mas este frágil testemunho da volta apressada de Lautréamont à sua cidade natal passa longe do mistério que cerca a morte do poeta, um ano depois, em um quarto de hotel de Paris. Morte sem causa-mortis!... Para mim e para Hector, Montevideo gerou Lautréamont e pode estar gerando novos Lautréamonts não só em Montevideo, mas, quiçá, em toda a costa Atlântica da America del Sur!..
          Na volta a pé do Mercado do Porto (Domingo a tarde), assustei-me ao passar pelos inúmeros palacetes de encortiçados de Montevideo. Levava duas sacolas de sabonetes, perfumes, pães, vinhos, desodorantes, sabonetes, etc.. comprados numa filial dos supermercados Cewal e fui olhado com hostilidade ao passar, amedrontado, por um antro de fétidos e maltratados e assombrosos jovens envelhecidos, cabeludos, barbudos e marginalizados.
Esbarro numa indagação shakespeareana: Montevideo é uma Porto Alegre que fala espanhol ou Porto Alegre é uma Montevideo que fala  português?  Pergunto isto porque morei na capital do Rio Grande do Sul entre 1977 e 1979 e estou em Montevideo com todas as minhas antenas ligadas há mais de 3 dias.
          As espumas platinas desaparecem na areia.  As mulheres se sentem as donas das calçadas da machista Montevideo. Sócrates (tótem da cultura universal) e Cervantes (tótem da cultura ibérica) são os temas escultóricos mais salientes na austera fachada da Biblioteca Nacional do Uruguay. Ao lado desta pirâmide labiríntica de livros,de uma das menos conhecidas  culturas sul-americanas , reforçando a tese da persistência de francesismos ou galicismos entre as elites de Montevideo, está edificado um liceu francês.
          Nos magazines mais sofisticados da 18 de Julio notei outros arroubos imitativos do clássico gosto francês de se vestir.
          Às margens onduladas e ondissonantes del rio de la Plata hay uno imenso mistério nostálgico e utópico. A tristeza platina, no tempo do fim dos sonhos clássicos,  e no início da construção de uma outra civilização (pós-moderna e esteticamente labiríntica, informatizada e pluralista), repercute e me desnorteia profundamente. Pelos out-doors da 18 de Julio, a grande vitrine de Montevideo, e em vários outros outros pontos da capital uruguaia pude perceber que as nádegas também são cultuadas como duas montanhas sagradas entre as quais Deus também está presente. Como não?  (...)  Como em Barcelona, existem capelas ou templos na região portuária de Montevideo.  Vi até uma imagem de Nossa Senhora das Graças de braços abertos para o rio de la Plata e com vestes azuis e brancas (cores da bandeira nacional uruguaia) sobre um prédio cinzento no qual, creio, ou suponho ser de um convento de freiras. As freiras também gostam de marinheiros que nem Jesús a pescar no mar da Galiléia?
          Pouco adiante deste prédio cinzento e horrível, eu conheci uma atriz que recolhera na manhã de 19 de Enero de 1999, numa praça próxima, uma linda e saudável cadelinha vira-lata branquinha com manchinhas tênues de doce de leite, limpinha como uma delicada pandinha!.. Acariciei-a maternalmente e ela se refugiou em meu magro tórax acolhedor. Tentando não me envolver mais com o drama desta inocente e ainda sem dono, desci uma escadaria e me pus a caminhar por ásperos rochedos, a fim de tocar pela primeira vez as frias e não-barrosas águas da foz del rio de la Plata. Toquei-as.  Em seguida Deus me presenteou com a presença de dois anjos escondidos debaixo da escada. Disse-lhes que não precisavam se esconder pois eu era um deles e, assim, eles me ofereceram fumaças sempre benvindas aos céus!!....
          Em meu atual estágio de vida não posso dizer que ame uma outra cidade mais que o que sinto agora por Montevideo, o meu particular paraíso realizado, encontrado, conhecido e que amanhã, desoladamente, abandonarei. Estou muito feliz por estar aqui há 4 dias. Dias intensivamente vividos.
          Cubo del Sur. Baluarte de las antiguas murallas de Montevideo. Passeando contra o vento, sem lenços mas com documentos e dollares, à beira do mar del Rio de la Plata.
Estou excitado como dois namorados pobremente e solamente a se beijarem sensualmente à beira del rio de la Plata!.. Estonteado com a infinitude das ondas que há tempo nos falam e que nós até hoje nem começamos a estudar suas misteriosas e efêmeras mensagens!..  Se não fossem alguns esporádicos navios e barcaças, o horizonte seria uma tênue linha reta a separar duas tonalidades de azuis: uma celestial e outra fluvial.
          Como a fortaleza de Montevideo ( Monte no qual vi Deus), eu personifico perseveranças. A Catedral  Anglicana da Santíssima Trindade, cercada por fumantes de marijuana e tipos marginais, ainda ostenta, na zona portuária da capital uruguaia, a persistente britanicidade de alguns montevidentes, peso secular ali assentado estrategicamente.
          As duas maiores empresas de televisão no Uruguay são ecléticas e democráticas, oferecendo ao seu público programas de todos os tipos, óperas, dança, ballets, noticiosos, programas humorísticos, turfe, futilidades, fofocas, esportes, programas sobre a identidade nacional, sobre ciências, saúde e nada sobre religiões.
          Fui oferecer montes de capins ceifados à beira do rio de la Plata (en Cubo del Sur) aos peixes platinos, aos delfins do Mar del Plata desconhecido por Calderón, mas os ventos lançaram alguns destes fios vegetais de capim – feno  às faces dos amantes que há pouco se beijavam e nos excitavam com seus beijos de seres alheios às cordas e aos anzóis ameaçadores dos pescadores postados nas cercanias do seu pétreo baluarte do amor. Lhes pedi escusas. Será que meu pedido foi o bastante?

          Respingos de sangue e de vinho de Montevideo.

          O turfe é o ballet das elites gaúchas. O Uruguay e a Argentina deveriam ter (por suas culturas gaúchas e pampeiras) o turfe como principal esporte nacional. Nestes 2 países platinos a importância dada ao turfe e aos eqüinos me é plenamente compreensível. Quanto ao Grande Prêmio Brasil de turfe (no eixo Rio-São Paulo) só as culturas tropeiras de Sorocaba, do vale do Paraiba do Sul e a cultura cortesã carioca poderiam me explicar mais convincentemente o espaço destinado ao turfe no calendário esportivo brasileiro.
          O sino da Catedral registra a vigésima hora do dia 19 de Enero de 1999. Em seguida ouço latirem los perros de la Ciudad Vieja de Montevideo, por onde, à noite, passam carroças puxadas por cavalos, levando sacos de papéis, dejectos ou detritos urbanos recicláveis. Não sabia que o Teatro Solis de Montevideo (muito perto dele me hospedei) é uma construção do tempo de Lautréamont. La Ciudad Vieja de Montevideo cheira a século XIX. La Ciudad Vieja es uno apêndice nichoso e labiríntico das almas montevidentes del siglo XIX.  Montevideo, em seu centro histórico, cheira a Lautréamont!..
          Há menos de 20 horas me separando do solo do aeroporto de Guarulhos, donde me retirarei com destino ao interior paulista, onde digerirei os pingos e respingos de vinho e de sangue de Montevideo.
 

          No caminho para o Aeroporto de Carrasco – Montevideo, o ônibus passou por um cemitério com túmulos e muralhas bem altos, como se visassem proteger os mortos das ventanias que sopram da foz do Rio da Prata.

          A lentidão aqui neste meu texto não é vista como um valor negativo. O Uruguay me pareceu um país lento ou relativamente imobilizado pelo gigantismo de seus vizinhos. Na vinda de Montevideo, um empresário francês me mostrou seu passaporte carimbado pelo Consulado brasileiro em Montevideo ainda registrando taxas em valores monetários em cruzeiros, quando há mais de 5 anos a moeda brasileira é o Real.
          Nas casas de câmbio da 18 de Julio a mesma desatenção ou lerdeza ocorre. Apesar da razoável distribuição da renda nacional uruguaia, apesar da melhor qualidade da alimentação cotidiana e popular ou do nível mais culto e eclético, pluralista da televisão local, este pequeno país hispano-franco-anglo-americano ainda não é considerado Primeiro Mundo. Porque será?
          A vacina  contra a hepatite B só na segunda metade de Janeiro – 1999 começa a ser distribuída no Uruguai. Só no dia 20 de Janeiro as autoridades militares uruguaias começam a anunciar providências contra vandalismos de grupos neo-nazistas e anti-semitas contra sepulturas del cementerio israelita de Montevideo. Só no dia 19 deste mês a televisão apresentou programa e reportagem denunciando a pornografia infantil na Internet.  Em plena crise financeira brasileira os cambistas uruguaios recusavam até travel-checks em dollares. Enquanto isto, alguns uruguaios mais espertos lotavam os vôos da Pluna-VARIG para o eixo Rio-São Paulo, onde teriam férias mais prolongadas com seus dólares valendo bem mais que a moeda brasileira. Comprando mais bens e serviços no Brasil, desencadeavam uma considerável fuga de moeda forte de seu próprio país, nesta época tão procurado por turistas de muitos outros países. No verão, o turismo representa uma das mais importantes fontes de divisas para o Uruguai que, ao longo de um ano, recebe muito mais turistas que todo o Brasil durante o mesmo período!..  Sinal dos tempos: a rede hoteleira de Punta del Este  e de outros pontos do litoral atlântico uruguaio se ressente com os cruéis efeitos da inclemente concorrência entre as empresas imobiliárias que alugam apartamentos para temporadas de veraneio e os serviços da conceituada hotelaria de padrão europeu do Uruguai.  E, por falar em turismo,  lembrei-me do turismo sexual. A propósito, percebi terrorismo numa propaganda ou mensagem publicitária afixada no vidro que resguarda as costas dos motoristas dos ônibus metropolitanos de Montevideo: “Preserva-te-vivo! Use preservativos.” Mas como são charmosamente desatualizados os designers dos ônibus de Montevideo, my God!.. Desajeitados, antigos, me inspiram nostalgias, lembranças e devaneios. Coisas de um brasileiro se sentindo estrangeiro no Uruguai.

          Os mortos estão presentes na Ciudad Vieja de Montevideo.

          Na tv uruguaia assisti a um programa especializado na música barroca de Antonio Vivaldi. Só me lembrei no último dia da minha estadia em Montevideo que esta capital sul-americana esteve muito presente na história política brasileira nos anos 60 do século XX.  Primeiro servindo como escala para o então vice-presidente João Belchior Marques Goulart, em seu retorno da China de Mao Tsé Tung, no auge da crise deflagrada em 25 de Agosto de 1961 com a renúncia de Jânio da Silva Quadros, que em pleno Dia do Soldado abandonava o seu cargo de Presidente da República, precipitando velhas conspirações militares contra a posse de seu legítimo sucessor e substituto.
          Segundo: a partir de Abril de 1964, Montevideo recebeu João Goulart já na condição de presidente deposto e exilado no Uruguai, juntamente com vários de seus ex-ministros e auxiliares diretos( como Raul Riff) e seu cunhado e deputado cassado Leonel de Moura Brizola. Líderes sindicais do populismo janguista também acá buscaram refúgio e proteção contra a ditadura civil e militar que se instalava no Brasil.  Mas, apesar disto, não vi marca alguma da prolongada permanência de todos estes brasileiros nesta patética Montevideo.
          O toque- toque dos cascos dos cavalos das carroças dos papeleiros, que todas as noites cruzam duas ou três vezes as calles de la Ciudad Vieja, me dá uma idéia sobre o tropel dos cavalos das carruagens que por ali passavam há mais de cem anos!..
Na plaza de la Constituición, vende-se, aos sábados, santinhos com lembranças fúnebres, de primeiras comunhões, bonecas de crianças do século passado, retratos de casamentos em famílias que não existem mais, postales recebidos da Europa por damas e senhoritas de Montevideo no início dos anos novecentos.
          Eu não creio em maldições, mas a Ciudad Vieja é um cenário de um filme de terror. Acá os mortos resistem e relutam em não deixarem a cidade onde nasceram e na qual querem continuar existindo, como os fantasmas clericais e patrióticos que saem à meia noite das alvas e marmóreas tumbas de la Catedral de la Imaculata Concepción de la Virgen de los 33 de Montevideo de la República Oriental del Uruguay!... Tremendo!..

          Papai mandou-me a Montevideo.

          Em 1950, estupefato, papai assistiu o monstro Uruguay derrotar o Brasil na traumática caverna carioca do Maracanã, quando perdemos a Copa do Mundo de Futebol. 49 anos depois, a mando de papai, fui conhecer de perto o monstro Oriental. E voltei apaixonado pelo celestial dragão uruguayo. Tal paixão seria uma traição aos sentimentos de papai? 

Montevideo, 16,17,18,19 y 20 de Enero de 1999 e Ribeirão Preto /S.P. 21,22,23 e 24 de Janeiro de 1999.

 

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