Um café para Mrs.Lovejoy
Chego em Victoria Station
debaixo de sol, uma raridade nas manhãs de Londres. Sábado,
primeiro dia de primavera. Curiosamente a mudança de
estação tem também pontualidade britânica como
se meteorologia fosse controlada por algum barão inglês que
ao consultar o calendário após o chá decretasse
"time to change". E o clima , como um vassalo fiel, carregasse o ar de
umidade parada, um anúncio de calor.
Tinha prometido a um amigo
tirar umas fotos de Stonehenge, as famosas pedras neolíticas do
sul da Inglaterra e aproveito o fim de semana para fazê-lo. Consulto
o guia de viagens, que me diz que devo saltar em Salisbury e de lá
tomar o ônibus de turismo.
Ainda é cedo para
a partida, mas o trem na plataforma atiça minha sonolência,
as manhãs são bem melhores na cama. Melhor escolher logo
o vagão e me acomodar antes que o trem lote dos bandos de hooligans
que invadem as plataformas. É final de campeonato de futebol, um
alvoroço no país. Por sorte tem pouca gente na primeira classe
e um casal de idosos me faz sentir mais confortável, ou melhor,
protegida. Sento na fileira ao lado dos dois e quase adormeço olhando
através da janela.
— Nos subúrbios de
Londres tudo tem a mesma cor ferrugem - só então me
dou conta que já estamos longe da estação Victoria.
Casinhas, prédios,
casas, predinhos. Todos de tijolo aparente, janelas brancas, playground
com grama verde na frente. As vezes se vê o estacionamento dos prédios,
as vezes as ruas laterais, tudo tão perfeito quanto uma maquete.
Seria a vida tediosa nessa uniformidade constante? Ou quem sabe o contrário,
que prazer intenso poderia encontrar subindo a mesma velha escada de um
prédio igual aos outros, cumprimentando o vizinho, passeando nos
parques aos finais de semana? Impossível julgar, tal é a
subjetividade das situações, filosofo meio dormindo. E nesse
estado sonâmbulo posso me ver de outro jeito caminhando na
forma de uma mulher alta, loira, de sobretudo cinza puxando o scotch terrier
pela coleira. Bullshits.
A medida que o trem afasta-se
as casas são aos poucos intercaladas por jardins que se expandem,
formando campos e plantações. Aqui uma mata natural, ali
uma casa quase encostada aos trilhos, mais adiante uma estrada com um menino
andando de bicicleta. Um casal passa com o cachorro, o homem acena para
o trem, é grisalho e usa um abrigo de jogging.
Estamos na zona rural, a
quantidade de bois e carneiros me leva a crer . Ah que lindas são
as pastagens refletidas na luz difusa da manhã. Green green
is the grass. A Inglaterra é toda verde, lembro dos versos de uma
canção infantil que aprendi na escola. O chacoalhar do trem
é mais forte que sonífero, melhor deitar a poltrona, green,
green...
Assim recostada consigo
reparar no casal a minha direita. Anglo saxônicos típicos,
seus setenta, setenta e cinco anos, altos, claros. Sentados frente a frente,
ele lê o romance aberto sobre a mesinha. Da minha posição
vejo apenas suas costas ligeiramente arqueadas e mãos enormes que
ora folheiam o livro, ora ajeitam os óculos. Já a senhora,
gorda e de roupa clara, está voltada na minha direção
embora só possa distinguir o perfil do seu rosto observando
a paisagem.
A porta do vagão
abre-se com ruído deixando entrar o carrinho de café e a
mulher olha em direção ao vendedor. Meus olhos agora cruzam
com os dela, que parecem ter captado toda cor do campo lá de fora,
fantásticos. Ela dirige-se ao marido e vejo o tom de verde dos olhos
transmutar-se como uma mágica. Brilha e desbota em tonalidades transparentes.
— Mrs. Lovejoy — pronuncio
quase alto, bem desperta, o sono perdendo-se para sempre.
Lovejoy, o prazer de amor,
um esquisito sobrenome inglês que sempre me intrigou. Ela deve se
chamar Mrs. Lovejoy — penso cada vez mais atordoada vendo-a perguntar ao
homem se deseja beber alguma coisa.
Sr. Pescador, João
Marceneiro, Miguel filho do Donald, até aí tudo bem.
Mas como alguém poderia se chamar Sr. ou Sra. Prazer do Amor sem
ser um pouco pornográfico, ou no mínimo motivo de chacota
? Por outro lado não tinha nome mais adequado para a senhora de
olhos ternos. Mrs. Lovejoy.
O marido recusa o café,
com um sorriso, comentam alguma coisa que não entendo, ela também
sorri. Então ele pede ao rapaz o café da mulher, tira o porta
moedas do bolso, sorri de volta. Tantos sorrisos me chocam ,principalmente
quando a vejo agradecer ao marido com olhos ainda mais brilhantes. Começo
a desconfiar que não são casados.
— Milk? — Mr. Lovejoy
pergunta para Mrs. Lovejoy que nega com um gesto de cabeça
agradecendo ao moço do carrinho.
Eu mal respondo para o rapaz
parado á minha frente, a cup of coffe, please, não consigo
deixar de seguir os olhos da mulher. Definitivamente, ela se chama Mrs.
Lovejoy.
Agora está abrindo
o pacotinho de açúcar, despeja o conteúdo no copo
plástico oferecendo ao marido. Mais uma vez ele recusa, e mais uma
vez os lábios esboçam outro sorriso. Estou abismada.
Não é o sorriso
são os olhos. Os olhos que me impressionam. Não, não
são os olhos, é o olhar. Mrs. Lovejoy olha o marido com paixão.
Hipnotizada sigo Mrs. Lovejoy
a contemplar o homem entretido na leitura. Ele parece notar a insistência
do olhar da mulher, pois no instante seguinte levanta a cabeça
perguntando se o café está bom. Os olhos então
retomam o tom transparente, duas esmeraldas brilhando na meia lua enrugada
do rosto de Mrs. Lovejoy.
Havia alguma coisa de aberrante
naquele olhar carregado de paixão. Como se centenas de noites
de amor não tivessem despregado das pupilas e ali permanecessem,
luminosas, irradiando felicidade . Pareceria até obsceno,
não fosse a somatória das sensações produzir
um conjunto ainda mais bizarro ,transbordando a mais absoluta paz.
Mrs Lovejoy agradece em
seu sereno olhar verde transparente uma vida inteira de amor.
Não sei bem porque
a frase me faz entrar em pânico total. Seria a possibilidade
de uma vida inteira de amor tão assustadora assim? Sei, não
é bem isso, o que me abala é confrontar Mrs. Lovejoy com
a história banal, vulgar, na qual me incluo, da maioria dos casais
bem casados.
— Quer um café?
— Não enche, não
vê que eu tô dormindo?
Em que estação
deixei o olhar brilhante dos adolescentes, o sorriso cúmplice dos
jovens recém saídos do motel? E a gentileza, se é
que houve alguma deve ter acabado na viagem de lua de mel. Amor? Ah, Mrs.
Lovejoy, me lembra, vai, me faz lembrar...
Como uma vampira tento capturar
toda a emoção dos estranhos olhos. Compreensão, prazer,
carinho, ternura, sensualidade satisfeita. Mas tem alguma coisa mais Mrs.
Lovejoy, esse brilho, essa alegria, só as pessoas que amam
tem, qual era mesmo o mistério...
Meus olhos se embaçam
e agora vejo só verde, verde, verde. Desvio o rosto de Mrs. Lovejoy,
fito a paisagem, temo que ela tenha ficado constrangida com meu jeito insistente.
Na verdade quero ir embora ,estou mesmo muito perturbada. Por outro lado
feliz, existe alguém, pelo menos uma única pessoa no mundo
que apesar da face murcha e amassadinha como papel no lixo não desgastou
o olhar com o passar dos anos.
O trem diminui a marcha,
ouço chamarem no alto-falante, é a minha estação.
O casal permanece sentado,
segue com o trem. Da porta do vagão fito pela última
vez o rosto tranqüilo de Mrs. Lovejoy.
Ela dá um risinho
maroto — parece entender minha pergunta.
— Como, Mrs. Lovejoy?
Cheia de compreensão
vem a mensagem enigmática:
— Todos olhos podem ser
transparentes, moça, depende da luz que refletem.
Então desço
as escadas do vagão para me inserir na claridade etérea
de Salibury, também meus olhos um pouco verdes, brilhantes, transparentes.
Magu Matos
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