UM OLHAR VIAJANTE

Na Finlândia, país da Europa do Norte, com grande parte de seu território coberto por densas florestas, seus cerca de 5 milhões de habitantes, concentrados em grande parte nas três principais cidades do sul e sudeste, incluindo a capital, Helsinque, celebram com muita intensidade a presença benfazeja do sol que, no verão, brilha durante cerca de 20 horas do dia.

São 23,30h e, sob a luz natural do círculo polar Ártico, faço anotações colhidas do meu olhar viajante, neste verão de noites que duram pouco mais de 3 horas, como se a compensar as outras estações do ano, quando a noite avança pelo dia e a luz só aparece das 10 às 3 ou 4 horas da tarde.

Neste adorável país de palavras, para mim, impronunciáveis, língua repleta de äää enfeitados e consoantes duplas, a comunicação dá-se noutro idioma — a soma de sorrisos e gestos. Na selva escura da língua estranha, algumas palavras, como Kulttuuri e Bibliotek, soam música familiar (acaso?).

A língua, ao que parece, é também a que se escolhe. A Finlândia esteve igualmente sob o domínio da Suécia e da Rússia, mas, curiosamente, os filandeses aprenderam e aprendem o sueco como língua oficial, ao lado do finlandês, mas jamais falaram russo. Mais que recusa ao imperialismo, essa atitude parece-me o resultado de uma identificação cultural, considerando-se que a maioria da grande literatura do país foi escrita em sueco. Arte e cultura nascem sempre das identificações e transformam-se em identidade.

Escutar as vozes da natureza, simuladas pelo vento, no magnífico Monumento a Sibelius, escultura tridimensional em aço, da artista Eila Hitunen, tanto pode ser um ato de identificação como de pura (re)criação, de acordo com a capacidade de leitura de cada observador, não importa se represente um enorme piano ou uma floresta de bétulas prateadas. Dessa forma, o compositor Jean Sibelius, além do mérito de falar musicalmente todos os idiomas, é também marca de nacionalidade e, de quebra, atração turística.

A Kalevala, epopéia popular finlandesa, obra monumental composta a partir da recolha de relatos orais, transmitidos de geração a geração, é outra marca de nacionalidade, ao ponto de Kalevala ser sinônimo de Finlândia. As livrarias de Helsinque exibem versões de A Kalevala em várias línguas, menos em português e não me consta que essa obra tenha sido traduzida em nossa língua. Leio uma tradução em espanhol e dela darei notícias.

O artista e o espelho

Durante as férias de julho tive a oportunidade visitar duas extraordinárias exposições que, mesmo considerando-se a distância temporal e geográfica a separar um autor do outro, trazem um ponto em comum, digno de reflexão: o artista diante do espelho.

"Rembrandt by Himsef", na Galeria Nacional, em Londres, mostra nada menos do que sessenta auto-retratos de Rembrandt (Holanda, 1606-1669), em pintura, desenho e gravura, pela primeira vez reunidos numa única exposição.

Andy Warhol Photography, desde maio na Galeria de Arte Contemporânea do Museu Kunsthalle, em Hamburgo, na Alemanha, é uma abrangente retrospectiva de 350 trabalhos de Warhol, principal figura da pop art (Estados Unidos 1926 - 1987)

Além das fotografias, das quais Warhol partia para criar os famosos retratos em técnica serigráfica, muitos dois quais já vistos em São Paulo (sala especial na Bienal), é possível também apreciar uma enorme quantidade de seus auto-retratos, sempre em Polaroid.

Vamos às coincidências entre esses dois artistas separados por exatos 300 anos, (re)unidos às vésperas de um novo milênio:

- Ambos olharam-se no espelho e multiplicaram-se em expressões faciais diversas, ao longo de várias fases de suas vidas.

- Ambos vestiram-se com fantasias para, com elas, serem retratados, dentro das ousadias que suas respectivas épocas permitiam (Rembrandt de vestes gregas, chapeús exóticos e outros adereços, Andy, com a famosa peruca platinada ou em montadíssimas drag queens, ora morenas, ora loiras).

- Ambos os artistas, de personalidades enigmáticas, além de retratarem os outros e auto-retratarem-se obsessivamente, também se deixaram retratar por outros artistas, seus pupilos.

- Ambos eram estranhos ao gosto de suas épocas e países (Holanda e Estados Unidos), conferindo audácia e excesso de realismo ao seu trabalho. Ambos são, hoje, parte da mitologia cultural do Ocidente.

De onde viria esse fascínio obsessivo pelo mágico reflexo de si próprio no espelho? "esse rosto que me olha e é olhado", a "duplicação ou multiplicação espectral da realidade" de que falava Borges, que também transformou seu medo aos espelhos em tema recorrente de sua criação literária.

Não seria uma forma de exorcizar o(s) outro(s) eus contidos em si mesmo? aqueles que Fernando Pessoa transformou em heterônimos? Mistério de gênios que um simples olhar não explica.
 

Dalila Teles Veras
 
 
 
 

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