Na Catalunha,
esta viajante sente-se em casa. Cercada pelos seus cenários apaixonantes,
o coração sobressalta-se. Diante de tantos anos de convívio
com aquela terra, valoriza as contingências de um cotidiano a que
sabe dar nome. Já não lhe é tão difícil
identificar, para si mesma, a origem de certos hábitos locais, o
cheiro que exala de sua opulenta culinária, o espectro, enfim, de
sua brilhante cultura.
A viajante
teve a sorte de apossar-se de alguns de seus segredos graças aos
amigos que a ajudaram a entender uma cultura que emergiu da singular mistura
de um povo que é, ao mesmo tempo, marinheiro, camponês, mercador,
renascentista.
Para esta viajante,
Barcelona, alma desta Catalunha, é pouso obrigatório. Conserva
no 3º andar de certo edifício da Diagonal, elegante avenida
que atravessa a cidade, roupas, a máquina de escrever e um dicionário
Aurélio manuseado. Tudo é pretexto para lá regressar.
Cada visita,
além de robustecer-lhe a memória, ensina-lhe o caminho da
compreensão histórica desta Europa complexa e fascinante,
perseguida sempre por séculos pretéritos que teimam em aflorar,
como fantasmas, nas esquinas ensolaradas.
A viajante,
de natureza irrequieta, imagina-se, às vezes, uma peregrina egressa
do medievo, sem dispensar o cajado, o chapéu, a sacola com farnel
provido de pão paese, presunto serrano, oriundo de
aldeias esquecidas, quase à margem da realidade contemporânea,
para prosseguir viagem.
A viajante olha
o mapa. São visíveis na Catalunha as rotas românticas
e góticas, outrora palmilhadas pelos romanos, fenícios, cartagineses,
visigodos, mulçumanos, que, enquanto semeavam a terra com idiossincrasias
singulares e semens inquietos, faziam germinar os frutos de sua divilização.
Forjou-se assim um país belo, visto de perto, denso, quando apreciado
de longe, como um mosaico. Cada traço de sua cultura encaixa-se
à perfeição em um conjunto resoluto e harmonioso.
A viajante traça
seu roteiro. Abandona as rotas coerentes que trazem no seu substrato lógica
história e irrepreensível adequação estética.
Tem em mira a anarquia da paisagem e do próprio sonho. Anseia, sim,
pelo Mediterrâneo. Diante daquele mar, que lhe alvoroça o
imaginário, ela sorri. A ilusão da América iniciou-se
ali. O mundo latino fecundou-se no mare nostrum.
Ela detém-se
em Arenys de Mar, encantadora vila marinheira. Suas casas, na parte antiga,
conservam ainda hoje elementos típicos da arquitetura popular. O
culto do mar está ali presente. O ofício de pescar ou pilotar
barcos veio-lhes portanto como destino natural. Embora rústicos,
seus homens fundaram prestigiosa escola náutica, que lhes serviu
de estaleiro. Com tais barcos alcançaram a América, a partir
do século XVIII. Para enfrentar as pilhagens, comuns à época,
amuralharam a povoação. A elegante Torre Del Encants, remanescente
dessa iniciativa do século XIII, adverte-os dos perigos. Como as
pedras, porém, nunca bastaram, invocavam a ajuda divina mediante
a construção da igreja de Santa Maria d’Arenys, de fachada
barroca. No seu interior, envolto em solbras, o retábulo, obra de
Pau Costa, é dos mais suntuosos do país. A viajante reconforta-se
com sentimento nostálgico. Dele provém o desejo de visitar
o cimitério. Cravado no alto da colina, a vista é comovente.
Será acaso a mesma paisagem de que dispõem os mortos? Ali
enterrado, Salvador Espriu, notável escritor que engrandeceu a língua
e o espírito do país, decerto também respira a aragem
advinda do seu amado Mediterrâneo.
Aquele litoral,
povoado de tantas aldeias encantadoras, não se esgota. Caner de
Mar, Lloret de Mar, que nomes sonoros! Convém pronunciá-los
com os lábios semicerrados para acentuar-lhe a gravidade poética.
A viajante encaminha-se
para San Feliú de Guixols, nos domínios do baixo Ampurdán.
Suas paisagens rarefeitas e ternas comovem a peregrina. De imediato compara-as
à Toscana, igualmente nobre e camponesa, de caráter primaveril.
Recolhe-se nestas paragens a febre sutil da civilização.
É sob tal magia que a viajante vence caminhos vicinais, os únicos
que desvelam a região.
San Feliú
não tem mais de 15.000 habitantes. Formada em torno do monastério
do mesmo nome, existem a seu respeito documentos datados do século
X. O monastério ostenta, com sobriedade, a famosa Poerta Ferrada,
construída por três arcos em forma de ferradura, de concepção
pré-românica.
Embora a cidade
tenha o sacro como vizinho, as atividades profanas, em torno do monastério,
não se retraem. Os dois universos souberam gerar entre si perfeito
equilíbrio. À noite, o povo entrega-se à sardana,
dança de identidade nacional, no passeio público. O cheiro
da maresia excita as narinas e as pernas bailarinas. Outros olores são
igualmente memoráveis. Aqueles que a cozinha do restaurante Eldorado
Petit exala com sua inesquecível culinária, saída
das inventivas mãos de Luis Cruañas. A viajante refina o
paladar ao degustar a Brandala fria de pescados, as gambás de Palamós,
o peito de pato ao vinagre de escalônia. Confia na memória,
ara não esquecer. É com a memória, aliás, agente
central, que segue a viagem. Com ela, a tiracolo, a peregrina acreditará
no que viu, aspirou, viveu.
Inclina-se agora
à esquerda da estrada, afasta-se alguns quilômetros do mar,
ainda no sagrado território de Ampurdán. Quase se acerca
de Gerona, famosa capital de província, com o intuito de rever,
no museu da catedral, a Tapeçaria da Criação, do século
XII. Nela estampa-se, fulgurante, a interpretação da gênese
do mundo.
Avista La Bisbal,
retrato fiel de outros vilarejos. Aquela visita assegura-lhe familiaridade
com a região. Contudo, a viajante acautela-se. A terra catalã
é comedida, os sentimentos da natureza não sofrem ali desmedidos
estremecimentos. Aspira tão-somente à serenidade de um paraíso
apaziguado.
É preciso
agora visitar o Palau, de pompa discreta. Comprar também a cerâmica
popuar, de caprichosos desenhos. Fartar-se, em seguida, na casa de chá
da esquina, cuja arte de confeitar, de feição mediterrânea,
subverte até mesmo os mais frugais. Para equilibrar suas papilas,
a viajante prova dos embutidos, da butifarra ao fuet. Há
que celebrar os pecados do mundo.
Sob a égide
da luminosa primavera, a peregrina prossegue pelo Alto Ampurdán.
As aldeias, vizinhas umas às outras, passam-lhe a ilusão
de que o carro não se move. A memória agiliza-se para seguir
de perto suas emoções. Súbito, o carro freia. O rebanho
de ovelhas, balindo, tangidas por velo camponês, cruza o caminho
em direção ao riacho, originário, quem sabe, dos Pirineus,
perto dali.
Em Figueras,
localiza, em meio ao burburinho, o museu Dali. O gênio do pintor
alastra-se pelas salas, dando evidência de uma fantasia obcecada.
As imagens redimem-se por força do pavor e das convicções
sombrias do artista. Aquela estética rebuscada, porém, exaure
a observadora. Urge retomar o caminho do mar. Logo vence Rosas, às
pressas. Toma a estrada, montanha acima, cercada por escarpmas agrestes.
Vista do alto, incrustada nas rocas, com suas casas caiadas de branco enlaçando
as lanchas, os barcos pesqueiros ancorados na serena baía, Cadaqués
é jóia de fina ourivesaria. Ds janlas das casas que se agrupam
em escala ladeira acima, a visão geral, à noite, é
espectral.
A viajante passa
por baixo do portal em arco rebaixado em busca da praia. Observa que a
cidade agregou ao núcleo antigo belas casas oitocentistas e modernistas.
Desde o século XIX, aliás, Cadaqués atrai arquitetos,
artistas, intelectuais. Picasso, Segóvia, Paul Éluard, Marcel
Duchamp sonharam com a reverberação do sol deste litoral.
Salvador Dali construiu sua extravagante casa, cobrindo as varandas de
véus como se quisesse impedir os pássaros de bicar as paredes,
em meio às moradas dos pescadores de Porrlligar, perto dali.
A viajante aceita
jantar no La Gaivota, refúgio de artistas. As irmãs Ribeira
preparam-lhe peixe ao forno e um suflê que tem a leveza de um pensamento.
Os pequenos prazeres a induzem ao sono.
O dia desponta
esplêndido. Ela apressa-se em chegar à fronteira francesa,
embora as fronteiras terrestres, por norma, a intimdem. Teme pular de um
hemisférico concreto para o abismo. De abandonar o beneplácito
de uma cultura conhecida em troca de um fanatismo que não controla.
O gosto do café
trava-lhe as considerações e a estimula a prosseguir. As
rocas do Cap Creus jogam as espumas das águas para o alto, onde
ela se encontra. Os vendavais são, ali, teatrais e implacáveis.
Chegam-lhe os ruídos da Tramontana, o célebre vento catalão.
Como uma medusa, as cabeças do vento engolem a Catalunha por inteiro.
À sua passagem, tomba o que é mais leve que o ar.
Lá está
o final da franja pirenaica do lado catalão, que vem do vale do
Aran e esgota-se em Albéres e Cap Creus. A peregrina divisa então
a França. Em Port Bou, por onde passam os trens da Espanha para
o resto da Europa, comove-se ao evocar Walter Benjamin, o pensador alemão.
Naquele solo ele padeceu a lenta agonia da espera de um visto espanhol
que lhe permitisse escapar da fúria nazista em plena guerra. A demora,
porém, minou-lhe os nervos antes da rejeição final.
Sem esperança, decidiu pelo suicídio. Tal feito macula a
beleza do panorama. Esta, aliás, é uma zona de sofrimento.
Quantos milhares de espanhóis republicanos, fugindo de Franco, cruzaram
em andrajos e desespero a linha pirenaica?
Sob o impacto
desta amarga visão, a viajante dá volta ao carro. Regressa
ao Alto Ampurdán até Peralada, com suas muralhas. No povoado,
visita o convento Del Carme, vê de perto a biblioteca que abriga
200 incunábulos. Sucumbe ao mistério da escrita antiga e
das iluminuras perfeitas. A vida ali parece eterna.
À noite,
passeia pelo jardim afrancesado do castelo, transformado agora em cassino,
onde também se apresentam grandes intérpretes. Aceita a taça
de champanhe que lhe oferecem, enquanto a rainha Sofia, convidada de honra,
não chega. Depois, dirige-se ao seu assento. Plácido Domingo
promete-lhes um repertório camerístico.
Aquela era,
sem dúvida, uma noite de luar ígneo e comovido.