DE REPENTE UM FUNERAL

    Este país sempre abraçou uma das mais belas e exóticas culturas do planeta. É desnecessário peregrinar-se ao exterior afins de escapulidas daquela nossa rotina diária, já que são tantas as diferenciações espalhadas pelo país que, às vezes, perdemos uma chance fácil de conhecer algo inusitado. No meu caso, isto também aconteceu. E bem longe da minha cidade de Santos, no estado de São Paulo.
    Quando saía de férias, aproveitava exatamente todos os dias e horas para viajar aonde quer que a minha mente desse o sinal de liberado. O ano era 1995 e minha decisão havia sido pelo estado do Maranhão. Lá fui eu, sempre sozinho, pois a pior coisa em viagem é ter opiniões contrárias sobre o que fazer. Iria conhecer um dos estados da região nordeste que ainda só havia passado de raspão, pelo ar ou por terra.
    Assim, conheci São Luís, suas magníficas praias, como a Praia do Curral; sua culinária deliciosa, como as deliciosas tortas de caranguejo; suas diversões (os quiosques, o reggae etc.); suas lindas mulheres, nesse caso, abstenho-me de nomes, e as interessantes cidades históricas vizinhas, como Alcântara; além de muito mais que não enumerarei aqui pois não sou dono de agência de turismo.
    Findo a cobertura de viajante pela cidade e regiões próximas, atrevi-me a fazer um turismo mais barato e aventureiro, que me levaria ao interior do estado e à uma paisagem pouco conhecida do público em geral. Assim, viajei em carrocerias de caminhonetes, ônibus velho e estradas cariadas pela falta de olhos de um governo do qual não sei o âmbito. Nos pontos de destino, havia um contato que me levaria a conhecer seu povoado e sua gente. Esta pessoa já estava avisada da minha chegada no local e sempre apresentava-se muito simpática e hospitaleira.
    Desse modo cheguei, numa bela manhã, em Tutóia, uma simpática cidade que até hoje ainda freqüenta alguns folders de agências turísticas nacionais e internacionais. Desembarquei do ônibus velho com minha mala e boa terra que, sem a minha aprovação, apegou-se em mim durante o percurso na estrada empoeirada. Iria encontrar o meu guia de apoio em um restaurante próximo, que encontrei sem dificuldades graças aos sorrisos e indicações benevolentes do povo de Tutóia. Conheci o Carlos (caso não esteja enganado no nome), tomei um bom café da manhã e ainda tive o prazer de conhecer o vice-prefeito e outros nativos de lá. Assim, meu café acabou sendo complementado com cervejas de bate-papo. Minha conta havia dado R$8,00 e o silêncio reinou quando puxei uma nota de R$10,00 pois, infelizmente, naquele local, pessoas como uma simpática telefonista do único posto de lá, recebia R$9,00 por mês para trabalhar das 10 da manhã às 10 da noite. Não me perguntem como, pois também não consigo entender o funcionamento de certas leis e praxes trabalhistas.
    Carlos, o meu sorridente cicerone, apareceu com um Jipe e fomos visitar uma das pontas dos enormes Lençóis Maranhenses, que ficam próximos à cidade, e que consiste numa desertificação forrada de dunas e reconfortantes lagoas. É uma atração muito extensa, bastando apenas pisar e rolar nas extremidades de suas dunas, acompanhado de surpreendentes engolições de areia, para poder se sentir satisfeito. Lindíssimo. Sorte e azar por poucos conhecerem, pois a preservação existe inversamente à perda de oportunidade turística de muitos que, certamente, iriam adorá-los.
    Voltando à Tutóia, um senhor pediu carona a Carlos, que a deu, apesar de que entraram numa enorme confabulação sobre algo que não conseguia escutar. Nos arredores de Tutóia, Carlos disse que iria me deixar no restaurante pois precisava fazer algo para o senhor caroneiro. Movido por intensa curiosidade, avisei que não havia deixado o feijão no fogo em nenhum lugar, portanto, estava com tempo para ir aonde fosse possível. Carlos perguntou se eu tecia alguma aversão pela morte ou assuntos semelhantes, tema do qual avisei que não carregava a mínima restrição, conquanto que não fosse a minha. Assim, fomos fazer algo do qual era interesse do senhor caroneiro, ajudado pelo Carlos e bisbilhotado por mim.
    A resposta veio rapidamente após uma breve circulada pela cidade. Estávamos em frente a uma casa simples, como tantas outras da região, mas com somente um diferencial: era uma pequena fábrica de caixões. Observando que eu não estava entendendo muito bem o que se passava, o senhor caroneiro explicou-me que as cidades mais distantes dali não possuíam fábrica de caixões e, quando alguém já começava a esboçar o adeus dessa vida, pegavam um barco, vinham até Tutóia, compravam um caixão e voltavam com ele para as suas regiões afim de que dessem um apoio funerário caso o coitado viesse mesmo a falecer. O meu interlocutor disse-me que viajou de barco durante 3 dias para chegar em Tutóia, e não esbanjava a certeza de que, até voltar, a pessoa ainda estaria viva, afirmando que a referida pessoa, neste caso, era a sua mãe.
    Dessa maneira, num lugar pouco conhecido, vim a conhecer o elixir da longevidade, explicado ironicamente pelo senhor caroneiro, pois é normal o dito moribundo, ao ver um caixão sendo encostado ao seu lado, levantar rapidamente, sorrir e cumprimentar todos pela ajuda no seu próprio pronto-restabelecimento. Realmente, é algo para se pensar.
    Sempre se sabe quando alguém é forasteiro, e isto não deixou de acontecer em Tutóia, diante do tipo de traje que eu usava, óculos escuros e corpo bronzeado. No caminho até o porto da cidade, fomos carregando o caixão que era levado no banco de trás do Jipe, veículo este que era todo aberto, sem capotas e portas, resultado de chuvas que teimavam em não fazer visitas por lá. Assim, Carlos dirigia e eu, ao lado, dava um apoio para que o caixão, preso pelos braços do senhor caroneiro e ambos na parte de trás do jipe, não caísse. Bastou essa disposição para que, por onde passássemos, todos retirassem seus chapéus, ou suas sombrinhas, e fizessem o sinal da cruz em homenagens póstumas a mim, pois era provavelmente um infeliz familiar carregando um esquife para um longínquo parente falecido. Educadamente, agradecia às ovações e retribuía com um breve sorriso desconsolado. Decidi agir assim pois ficaria muito complexo explicar ao povo por qual genealogia de nós aquela caixão estava ligado. Funeral sem falecido consumado, alojamos o féretro em um pequeno barco e este, junto ao seu fiel e verdadeiro escudeiro, singrou a sua triste viagem ao encontro de sua provável dona. Enquanto isso, passei às explicações devidas ao povo que tanto se entristeceu diante do meu penoso desfile fúnebre e que ficou sem entender bulhufas quando permaneci no porto sem a companhia inefável do caixão, que já ia longe.
    Todas as explanações em suas devidas concordâncias, dei-me por satisfeito, agradeci ao Carlos pela bela cidade e a comicidade do repentino funeral, subi na carroceria de mais uma Pick-Up, abarrotada de sacos de farinha, e continuei buscando este Brasil genuíno. 

Márcio Costa
 
 

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