Vida de Ribeirinho

            Tá bom dotô eu vou lhe conta, conheci Yanam numa festa que teve lá no Furo dos Macacos, aquela festa grande de duas maré que acontece todo ano, se eu não me engano é dada pelos Barbosinhas que moram passando a casa do seu Raimundo que faz barco, o sinhô conhece? Pois é, ela tava lá sentadinha num canto, quietinha, parecia um bichinho com medo de tudo. Botei o olho em cima e me apaixonei. No inicio fiquei de butuca, meio receoso de me aproximar, o sinhô sabe né dotô? Mulher nova no interior achava que tinha dono, mais a carne é fraca, quanto mais olhava, mais me interessava, tomei umas doses de pinga pra criar coragem e tirei a dama pra dançar, a bichinha quase não falava de tão medrosa que era. Bom mas o sinhô sabe, papo pra cá, papo pra lá, paguei até umas geladas pra ela se soltar, quando a festa acabou a gente já tava de  encontro marcado pru outro dia.
            Eu pensei que ia ser fácil dotô, mais a mulher gostava mesmo era de coisa séria, todo dia a gente se encontrava no campinho, aquele de perto da Sede comunitária da Vila Progresso onde a molecada se reúne pra jogar bola no final da tarde quando a maré tá baixa. Foi lá que o namoro pegou fogo, era um negocio de agarrar pra cá, passar a mão pra lá, beijo de língua, esfrega daqui, esfrega dali, eu sou humano né dotô, chegou uma hora que num dava mas, então falei pra caboca.

            — E aí, cumé que é? Vai dá ou num vai dá?
 
            Ela desconversou, falo que era moça de família, essas coisas, mas eu sou insistente né dotô, peguei no pé dela até ela cansar, então fizemos um acordo, eu ia te que pedir entrada na casa do pai dela, depois com jeitinho a gente arranjava uma maneira de apagar o meu fogo, nem pensei duas vezes marquei o dia e fui falar com o pai dela. Quando cheguei na casa o velho tava sentado na porta me esperando, muito educado dei boa noite e esperei que me mandasse entrar, tava meio nervoso, mas sou um caboco que não costuma fugir das responsabilidades e já que o homem não falava nada e só me olhava, botei o medo de lado e falei:
 
            — Seu Manel eu tô namorando a sua filha e vim aqui pidi que o sinhô me dê permissão pra encontrar com ela aqui na sua casa.
 
            Ele nem ligou, continuou picando o fumo como se num tivesse escutado nada do que eu tinha falado, comecei a suar frio de medo e quando já tava quase borrando as calças  o velho resolveu falar.
 
            — Então tu anda de beijos com Yanam num é? Por  mim tudo bem, tu pode continuar namorando ela. Agora só tem uma coisa se tu comer a minha filha sem casa eu te capo, se tu quiser é assim.
 
            Eu topei né dotô, que é que podia fazer? Todo dia eu ia na casa dela depois que voltava da roça. A gente ficava na sala com a mãe dum lado, o pai roncando do outro e um monte de moleque correndo pelo meio da gente.
            Vai mês, vem mês e nada, ai resolvi dá um basta na situação, nosso namoro tava pior do que na época do campinho, agora nem beijo de língua tinha, vi que o jeito era casar. Ajeitei tudo, falei com a família, marcamos a data, acertei com o padre, só faltava o lugar pra gente morar. Procurei um pedaço de terra pra construir nossa morada e me agradei daquela sobrinha que fica na frente da ponta da Miséria. Levantei lá uma casinha jeitosinha, pintei de branco com as janelas e portas de azul, tudo muito bonitinho, com a casa terminada fui em Macapá e comprei motor de luz, moveis, televisão, geladeira, comprei até maquina de lavar, afinal minha nega merecia né dotô.
            Finalmente chegou o dia do casório, meu pai tinha matado dois boi, o pai dela seis porco pra fazer churrasco pru pessoal, a bebida era nu bandão, fizemo tudo pra festa ser de arromba. Recebo o povo do Bailique com pompa, todo mundo se divertiu pra valer, até o padre ficou de porre, eu num via a hora dos convidado ir embora pra ir pra nossa casinha, quando o dia tava amanhecendo é que as ultimas pessoas foram embora, corri pru nosso barquinho, mas a maré tava baixa e eu ia ter que esperar subir, pois o barco tava atolado. Ficamos na casa do meu pai até o final da tarde, tentei dormir para descansar, mas não consegui, quando a maré tava em cima peguei meu barquinho e rumei pra casa. A noite ia alta quando chegamos, descemos e eu pensei comigo que finalmente ia matar minha vontade naquela caboca, mas a bichinha tava tão cansada, coitadinha! Pidiu pra deixar pro outro dia e eu concordei, né? Queria que a coisa fosse bem feita. Quase que não dormi de novo, o dia amanheceu e já tava anoitecendo quando ela resolveu levantar, ai eu ataquei, num dava mais pra esperar, ela pidiu calma disse que queria tomar um banho, concordei de novo, afinal já tinha esperado tanto, podia esperar mais um pouco, ela foi se lavar e eu me preparei todo imaginando como a coisa ia acontecer, dali a pouco ela voltou, se deitou do meu lado e toda cheirosa e dengosa disparou:
 
            — Sinto muito neguinho  acabei de adoecer;
            — Adoecer? Como assim? Tu acabou de sair daqui boinha da silva como é que agora tá doente? Num vem cum papo;
            — É verdade neguinho, adoeci, minhas regras vieram, eu tô de bode, tu num sabe o que é?
            — Sabe eu sei, só num tô entendendo o que isso tem a ver;
            — Olha neguinho quando a mulher tá de bode num dá pra fazer, doi muito sabe;
            — E quanto tempo eu vou ter de esperar?
            — De cinco a dez dias.

            Ai eu me desesperei dotô, depois de tanto tempo ia ter de ficar de molho por mais dez dias? Olhei pra ela amuado já sabendo que num ia ter jeito. Fiquei de novo esperando o tempo passar e a hora chegar. Passei a dormir na rede e ela na cama, era um martírio quando a noite chegava, ficava rolando dum lado pro outro sem consegui dormir, levantava de madrugada pra tomar banho frio, andava pela casa, bom lá pelo quarto dia já tava subindo pelas paredes, foi quando meu pai me chamou pra uma pescaria no Sucuriju, num queria ir, mas tava precisando do dinheiro, afinal agora eu tinha uma mulher pra sustentar, acabei indo, pidi pra minha mãe tomar conta de yanam enquanto estivesse fora.
            No embarque os tripulantes do barco do meu pai encheram o saco dizendo pra não deixar minha mulher sozinha porque o boto ia roubar ela de mim, eu nem liguei, num queria pensar no assunto, e depois naquela época eu achava que essa historia boto era lenda, num existia. Passamos dez dias embarcados pescando peixe de pele pra retirar o grude, o sinhô sabe o que é? Aquele negocio branco igual gordura que fica dentro do peixe, o pessoal do estrangeiro gosta muito e paga um dinheirão, acho que eles devem comer, aqui no Bailique a gente num dá nem pro cachorro da casa.
            Nós já tinha recolhido um bocadão de peixe quando o meu pai resolveu que tava na hora de voltar. Enquanto o barco pegava o rumo de volta eu num parava quieto de ansiedade, depois de meses de espera finalmente eu ia matar a minha vontade na caboca.
            Atracamos no porto da casa do meu pai, desci doido pra ver minha  nega, chamei por ela e minha mãe avisou que ela tava esperando por mim na nossa casa, fiquei fulo da vida dotô, ia ter que pidi barco emprestado e como era dia de culto na Macedônia os visinho só ia voltar na baixa da maré, o barco do meu pai era muito grande pra atracar no meu trapiche, conclusão dotô, passei a noite sem dormir. No outro dia bem cedo peguei o barquinho do Jorota emprestado e me mandei, agora eu tava decidido, ia comer a caboca desse no que desse, já tava até com água na boca.
            O tempo parecia que não passava, o barco tava pesado pro motor, a correnteza parecia muito forte, no fundo eu sabia que era ansiedade minha. Lá pelo meio dia com o sol a pino eu avistei a Ponta da Miséria, um pouco mais à frente vi Yanam tomando banho de rio, ela tava nuinha dotô, como é bonita a safada! De repente eu vi alguma coisa borbulhando na água, firmei a vista e enxerguei a cabeça dum boto se esfregando pelas pernas dela, num contei conversa doto, corri pra dentro do barco peguei a cartucheira e quando o bichão levantou a cabeça atirei, um dos chumbo entrou bem no meio dos olho, num ia deixar o boto comer minha nega antes de mim. Ela levou um baita susto e ficou me olhando abestalhada com os olho arregalado, encostei o barco e quando desci a mulher se danou a me bater e a chorar me chamando de louco e assassino.    Depois do acontecido foi um cagaço só, ela ficou um tempão sem falar comigo, foi embora pra casa do pai, num queria me ver na frente nem pintado de ouro. Eu com muito jeitinho, presentinho pra cá e pra lá consegui dobrar a mulher de novo. Agora que eu finalmente fui perdoado e a mulher vai voltar pra casa o sinhô vem com esse papo de que eu vou ter de ficar preso por não sei quanto tempo porque matei um boto cor de rosa e o bicho tá em extinção. 

Araciara Macedo
 

 

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