A turma chegou.
De seu canto no carro, no banco de trás, encostada na janela,
com cheiro de pinga e cerveja, ela sentiu o carro parar, o motor
desligar e a porta abrir.
Chegamos.
Ainda não sabia se foi ela que pensou ou eles que falaram. Só
quando sentiu mãos lhe pegando, braços lhe carregando,
e vozes mandando ela descer que Victoria, filha de Seu Décio
Nunes e Dona Angela Nunes, a Heleninha Roitmann de São José
do Riacho, desceu para entrar na sua casa. Quando desceu, ela se
desequilibrou e caiu na calcada. E quando se levantou, olhou em volta,
como para reconhecer a rua onde morava.
— É aqui, Victoria.
— Tem certeza que está bem?
— Cala boca! Você está até mais bêbado do
que ela.
— Será que ela dá conta de entrar na casa?
— Eu não vou ficar para carregar ninguém não!
— É! Vamos embora! Já são três e meia!
— Puxa vida! E meu pai disse para eu chegar no máximo duas da
madrugada!
— O meu também! E meu velho é chato. Vamos embora!
— Vejam! Ela está andando numa boa. Está indo para a
casa dela. Podemos ir.
— Sim, ela que se vire com o pai dela. Vamos logo!
Essas vozes tão “simpáticas e solidárias” eram
dos “amigos” de Victoria. “Vivi” pé-de-cana. Victoria dos cabelos
loiros. Eles entraram no carro e foram embora. Victoria andou até
sua casa, sem olhar para sua turma. Estava muito ocupada tentando
acertar o passo. Do portão até a porta de sua casa
seriam uns bons sete metros, em linha reta, numa calçada de
pedra. Andando, tentando firmar o passo, lutando contra a tonteira, dizendo
a si mesma cada vez que andava um passo: “Não estou bêbada”.
Mesmo assim tropeçou três vezes.
Numa dessas vezes, deu com a testa no chão e o jardim rodou
ao redor dela. Victoria viu seu avô entre as arvores, olhando
para ela e balançando a cabeça, em sinal de desaprovação.
“Mas o vovô morreu há cinco anos”, ela pensou. O ar estava
frio. A noite estava escura. Ela se lembrou das vezes em que saia
da casa de noite, escondida dos pais, para roubar frutas no pomar da família,
e tremia de frio, de medo da escuridão, de medo dos pais pegarem
ela. Agora, bêbada, já não tinha medo do escuro.
Mas a lembrança dos medos do passado, o medo de passar vergonha
se os pais pegassem ela, a imagem do seu velho avô, que tanto
lhe mimara, tudo isso era bastante para que ela tremesse, mesmo que
o ar não estivasse tão frio, e Victoria pisava de mansinho,
para não fazer barulho. Ela caia, e em vez de reclamar da
queda, rezava para não acordar a família.
Ela andava tão devagar, olhando para o chão e com tanto
medo e frio, e tão bêbada, que não viu quando
chegou na porta de casa. Parecia uma criancinha aprendendo a andar.
Andando devagarinho, ela bateu o nariz na porta de casa, e pediu
pelo amor de Deus que os pais continuassem dormindo. A porta estava diante
dela, afinal. O nariz estava doendo um pouco. E ao redor da
casa tudo estava escuro. Ela pôs a mão na maçaneta,
se escorando enquanto a girava. A porta não abriu. Tentou
girar para o outro lado, a maçaneta não girou.
- Está trancada! - Ela disse.
Victoria procurou a chave debaixo do tapete, não estava. Procurou no parapeito da janela pelo lado de fora, também não estava. Olhou para a escadinha que havia entre a porta e o fim da calçada, e rolou até o chão. Estava tão bêbada que rolou em três degraus.
— Bom, agora só falta o velho acordar e me levar para dentro.
Não que tivesse medo físico do velho, que já não lhe batia há muito tempo, e de qualquer forma Victoria tinha bebido tanto que se o pai criasse caso, ela dava nele um bofetão, mesmo que depois levasse dez. O que ela não queria era ver o olhar desaprovador do pai, ouvir o velho começar a se lamentar e dizer que por culpa dela ele teria uma velhice indigna, que ela estava jogando fora excelentes oportunidades, que as irmãs e as primas dela estavam se formando, ou casando, e ela estava bebendo com uma turma de vagabundos, ouvir isso era pior que apanhar.
— O velho já é chato quando está errado, ainda mais quando tem razão. — Ela disse isso em voz alta.
Um minuto depois ela se levantou, sacudiu a poeira da roupa, e caminhou à toa, sem saber para onde ia nem de onde vinha, quando ouviu um barulho perto da porta. Andou até lá, e viu, antes de entrar, o seu avó, olhando para ela com desaprovação. Victoria esfregou os olhos, e o avó sumiu, no ar, como que por encanto.
— Mas o vô morreu a quinze anos. — Ela disse em voz alta, de novo.
E agora não sábia se tinha visto o avô numa janela
ou na porta, encarando-a. Mesmo assim, Victoria andou até a porta,
rodou a maçaneta, e a porta abriu, pois estava destrancada desta
vez. E ela entrou, com um pouco de medo e sem entender nada.
Logo que entrou, Victoria deu de cara com a escada de trinta degraus,
que ficava no meio da sala. A casa tinha dois andares. Ela olhou para a
escada com um pouco de medo, afinal tinha rolado numa escadinha de três
degraus, agora tinha que encarar uma de trinta, mas mesmo assim ela se
encheu de coragem, até porque não tinha outra opção.
Respirou fundo. Foi até a escada. Pôs o pé direito
no primeiro degrau, o esquerdo no segundo, o direito no terceiro, o esquerdo
no quarto, e rolou escada abaixo.
Quando se levantou, o lado direito do rosto estava dolorido e um dedinho
da mão esquerda, com a qual ela tinha tentado se aparar na queda,
doía demais quando ela o movia. Mas o pior era a risadinha de desdém,
que ela ouvia enquanto se levantava. Era um riso amargo, seco, áspero,
ofensivo mesmo. Era assim que o avô dela ria para o pai dela. Mas
nunca havia rido assim para ela. E já tinha morrido há quinze
anos. Mas a risadinha estava viva. Zombando dela. E em algum lugar que
ela não sabia dizer qual, se podia ver a imagem do avô.
Uma coisa era certa: a escada estava à sua frente e para subir
era preciso coragem. Mas quando ela tentava estufar o peito e ergue a cabeça
para subir a escada, a risadinha voltou, fazendo-a sentir raiva e medo
ao mesmo tempo.A visão da escada a fazia rodopiar, mas a perspectiva
de dormir na sala, no sofá, com o corpo encolhido e tonto, ou no
tapete, estirada e roncando como uma porca, era muito pior, até
porque nesse caso ia dar de cara com o pai logo de manhã cedo. Então
ganhou coragem. Com toda determinação de que era capaz, enfrentou
a escada. Com a cabeça erguida e o peito estufado, subiu um, dois
e três degraus e parou, orgulhosa de ter chegado aquele ponto. Então
subiu mais um, dois, três degraus, tropeçou e rolou escada
abaixo.Desta vez, bateu com a bunda no chão.
— Que ótimo — ela disse — não preciso de pai nem mãe para apanhar. Faço isso sozinha.
Ela se levantou, esfregando as nádegas, voltou a olhar para a
escada, e decidiu agir com mais prudência. Passou a subir como criança
pequena, com dois pés em cada degrau, depois colocava um pé
no degrau acima, e outro pé no mesmo degrau, sempre olhando para
os pés.E ela estava indo bem, quando na metade da escada sentiu
vontade de urinar. Então Victoria parou, pensou, e resolveu continuar.
“Ora essa, eu me controlo.”, ela pensou. “Mostro a mim que já sou
grande, depois a minha família, depois ao mundo.” E ela subiu, resoluta.Mas
logo parou, com um pensamento terrível: “E se eu fizer xixi na cama?”Ela
tentou afastar essa possibilidade pensando que já era grande, dona
do nariz, que de noite bebia, e nunca havia dado vexame.“E vou dizer isso
ao meu pai, minha mãe e meus irmãos se eles vierem encher
meu saco. Já sou grande, cuido de mim.”
E ela continuou na escada, subindo, quando teve uma visão: Ela
na cama, com ressaca, a mãe dela enchendo o saco para ela se levantar,
e Victoria, num pulo, avança para a mãe e se diz grande
e dona do nariz. Nisso dela pular, a coberta cai e o colchão aparece
mijado. Imagine só a cara da velha...
Victoria tentou ignorar isso e continuou subindo. Mas imaginou a cara
da mãe olhando para ela, e a cara dela, com a cama molhada de xixi,
depois de dizer que já era grande. Só de imaginar tal cena,
Victoria corou até as orelhas.
Ela se decidiu. Deu meia volta, desceu um degrau, tropeçou em
outro e rolou escada abaixo.
Quando se levantou, super machucada, estava mais preocupada em segurar
a bexiga, que na queda quase tinha vazado.
“Já sou grande, já sou grande, já sou grande.”
Ela pensou. “Vou ao banheiro.” Ela entrou no banheiro, baixou as calças,
sentou no vaso e quando começou a urinar ela se lembrou: “Mas lá
em cima também tem banheiro”.
E uma voz idêntica a voz do seu avô começou
a falar no ouvido dela: “Bêbada, bêbada, bêbada...”.
— Calma vô — ela disse — eu só bebi um pouco demais... Mas o vovô morreu!
Ela pensou um pouco e disse:
— Acho que não foi um pouco só que eu bebi demais não. Foi muito demais.
Quando ela se levantou do vaso, pensou: “Bom, o risco de lambuzar as
calças foi eliminado, e o risco de molhar a cama foi afastado.
Agora subo, e deito, e durmo.”
Victoria chegou na escada e olhou para o ultimo degrau. Começou
a subir com os olhos fixos no ultimo degrau. Tropeçou e caiu no
chão. Não rolou escada abaixo porque tropeçou logo
no primeiro degrau.Bateu a cabeça ao cair e quando tentou de levantar
imaginou ver estrelas. Ao redor da cabeça dela pareciam estar 4
cabeças do avô dela, girando em volta como a lua gira em torno
da terra.
Victoria tentou levantar-se, mas a mão dela não se firmou
e ela caiu de novo. As quatro cabeças começaram a rir dela.
A risada áspera do avô. Victoria, furiosa, começou
golpear o ar, tentando atingir as cabeças, mas só serviu
para ela sentir uma grande dor no braço. Ela então percebeu
que tinha pegado uma luxação no braço.
— Foi por isso que minha mão não se firmou. E como dói!
As quatro cabeças de vovô olharam para ela com muita pena.
Uma cabeça falou: “O pai dela não vai gastar.” E outra
respondeu: “É, o Décio vai ralhar com ela. Coitada...”. Os
olhares de dó, os comentários e principalmente o “coitada”
só serviram para Victoria ficar com mais raiva ainda. Ela se levantou
de um pulo, e ficou pela sala a pular e a dar tapas no ar. Mas o braço
voltou a doer muito. E ela desistiu, com raiva do mundo e muita pena de
si.
Respirando com ofegação enquanto o ar voltava devagar,
pois nisso de pular pela sala ela ficou sem fôlego (ainda por cima,
ela era asmática), Victoria olhou para a escada, andou até
a escada e voltou a subir, como antes, como criança, primeiro um
pé, depois outro, ambos no mesmo degrau, e aí punha um pé,
depois outro, no degrau seguinte, e assim ela chegou até o penúltimo
degrau. Diga-se a propósito que enquanto subia ela olhava para os
próprios pés, os quais balançavam em sua mente, mesmo
estando parados no chão. Quando já estava no alto da escada,
ela tomou coragem, olhou para frente, pronta para o ultimo degrau, e deu
de cara com o avô, olhando para ela, de braços cruzados, não
só vivo como em plena força física, alto, gordo e
corado.Instintivamente, ela deu dois passos para trás, esquecendo
que estava numa escada. Rolou escada abaixo, indo dar com o nariz no chão,
o qual começou a sangrar.
Com um mistura de medo, birra, raiva de ter rolado de novo e desejo
de mostrar a si mesma que dava conta de subir na escada, e apesar da imensa
dor que tinha no dedinho, no braço, no nariz e na bunda, ela se
levantou rapidamente, se apoiando no braço direito, que estava bom.Mas
ela ainda estava tonta com a queda, e alem disso bêbada. Por isso
a sala rodopiava em sua mente e a escada balançava . O avô,
lá em cima, olhava para ela de cara fechada.
Victoria, de pé ante a escada, fechou os olhos e as mãos,
e disse em voz alta, pausadamente: — O vô morreu, é
apenas uma imagem, e eu vou subir.
Parecia uma garotinha emburrada, enquanto falava isso, bêbada
e machucada. E como criança recomeçou a subir a escada,
o pé direito, depois o esquerdo, os dois no primeiro degrau,
depois no segundo, no terceiro, no quarto, no quinto, e assim, sempre sem
olhar para a frente, só para os pés e para os degraus
da escada, a bêbada Victoria chegou até o trigésimo
degrau. “Vivi” pé-de-cana. Victoria de loiros cabelos. “Heleninha
Roitmann” de São José do Riacho. Ela viu quando a madeira
dos degraus da escada cedeu lugar aos ladrilhos de porcelana do piso do
andar de cima. Deu um passo e deixou para trás o último degrau.
Deu mais um passo para frente e com as mãos sentiu a parede. Com
mais dois passos se atreveu a levantar a cabeça. Estava em cima.
Olhou para trás e viu a escada. Venceu a escada. A casa ainda rodava
em sua mente, mas a escada já não balançava porque
já não a via. Agora era só ir ate o quarto e dormir.
E olhando ao redor de si, não havia mais o avô. Eis que Victoria
andou até o quarto, machucada mas triunfante, toda empinadinha,
na medida em que conseguia endireitar o corpo, bêbada e machucada
daquele jeito. Então ela abriu a porta do quarto e viu o avô.
Ela recuou para trás, pálida, em pânico, o sangue
do nariz fazendo um belo contraste com a palidez do rosto e o loiro dos
cabelos, e com a boca aberta pela metade ela tentou gritar, mas só
saiu um gemido:
— Mas você morreu há quinze anos!
É, mas estava lá. A principio, olhou para Victoria com cara fechada, depois se aquietou, reparou no nariz sangrando e fez uma expressão preocupada. Ele pegou na mão esquerda dela, e ela gritou. Então ele reparou no dedinho inchado, e quis pegá-la pelo braço. Quando ele tocou-lhe o braço, ela deu outro grito: então ela disse, gemendo e chorando:
— Vovô, por favor, não aperte, vou ser boazinha.
Victoria tinha regredido à infância.
Aquela casa que agora abrigava a família de seu Décio
tinha sido construída pelo avô de Victoria, pai de Décio,
Mário Nunes, que começou como pedreiro e lenhador, depois
viera desbravar as terras virgens de São José do Riacho,
muito antes do distrito virar município, quando ali só tinha
mato. O nome do avô de Victoria era Mário Nunes. Décio
era o filho mais velho. E quando Décio se casou foi viver na casa
do pai, que também havia ajudado a construir, e que acabaria ficando
para o filho mais velho na partilha da herança. O avô era
dono da casa quando nasceram os primeiros filhos de Décio, inclusive
Victoria, a mais mimada e ao mesmo tempo a mais castigada dos netos. Naquela
casa grande, tinha vivido uma família imensa, os avôs, os
tios, os primos, os pais e os irmãos de Victoria. Depois os tios
foram morar em seus próprios lares, depois o avô morreu, e
finalmente a vovó foi para o céu, poucos anos antes.Victoria
tinha sido uma menina bastante agitada, que aprontava, apanhava, e aprontava
de novo. O pai, a mãe e o avô de Victoria batiam muito nela,
cada um do seu jeito. A mãe lhe dava chineladas no bumbum. O pai
dava-lhe cascudos e, as vazes, bofetões. O avô apertava-lhe
os braços, os pulsos e as mãos com toda a força de
que um caboclo lenhador era capaz. Dos três, era o avô quem
mais doido e mais freqüentemente. Ainda na velhice ele mostrava o
vigor de um moço, tanto que só viria a morrer de um desastre
de carro. E havia uma coisa estranha em Mário Nunes, o velho não
gostava que o filho ou a nora batessem em Victoria. Quando isso acontecia,
ele saia com a neta no colo, para passear pela cidade, e brigava com os
pais dela, depois que ela dormia. E em nenhum outro neto ele batia, a nenhum
outro neto o velho mimava, para nenhum outro neto o velho Mário
Nunes dava realmente atenção. Parecia que o velho achava
que Victoria era o única alegria que poderia ter. E quando ela aprontava,
a decepção e o despeito eram maiores do que com os outros
netos, e o velho Mário Nunes era rigoroso com ela. A marca registrada
do avô era torcer os barcos, ou os pulsos, ou as mãos da neta.
Até o pai dela, que respeitava o pai mais que tudo na mundo, tentava
defender Victoria, quando Mário Nunes pegava a neta para bater.
Portanto, quando o pai de Victoria tocou-lhe na mão, pegando sem
querer o dedo inchado, e depois no braço inchado dela, Victoria
achou que era o avô, que voltava para lhe castigar, que ia torcer-lhe
e aperta-lhe a mão e os braços, como quando ela era uma garotinha.
Para fugir do corretivo de seu suposto avô, Victoria deu um passo
para trás, e bateu na parede. O pai dela, que para ela ainda era
o avô, foi atrás dela, e ela correu até a escada. Mas
teve medo de chegar perto da escada. Voltou-se, portanto, e tentou driblar
seu suposto avô. Tropeçou e caiu de cara no chão. O
nariz, que tinha estancado, recomeçou a sangrar, e enquanto ela
tentava se levantar, sentiu que alguém a pegava e a colocava no
colo. Era o pai, que com ela nos barcos entrou no quarto de Victoria e
a deitou na cama.
Victoria parou de reagir. Deixou-se carregar pelo pai sem nada dizer,
pois o tinha reconhecido. E estava com muito sono, alem de bêbada.
O dia estava até amanhecendo e aquela era a hora do pai dela se
levantar para trabalhar.
Enquanto “seu” Décio ajeitava a filha na cama, Victoria pensava:
“Passei da escada, cheguei em cima; cheguei em cima e aqui estou”.
Logo em seguida estava dormindo.E “seu” Décio foi para o quarto
dele, sentou numa cadeira e começou a falar
com a esposa:
— Bem, não sei o que faço com a Victoria. Eu ia
mandar ela para a casa do meu irmão, lá na capital para ela
fazer um cursinho e depois a faculdade, ia arrumar um lugar para ela ficar
com os irmãos dela, se ela passasse no vestibular, agora não
vou mais.
— Você faz o que quiser, mas me deixa dormir! — Disse
Dona Angela.
— Meu bem, você não está levando a serio
o que está acontecendo com nossa filha. As amigas dela, as primas,
as irmãs dela estão todas estudando, trabalhando, se casando,
mas ela está bebendo com essa turma de malandro. Ninguém
dessa turma presta, e qualquer hora pode ser coisa pior que bebida.
— No ano passado você pagava no pé dela porque ela
só vivia com os livros estudando. Agora ela largou dos livros
e você pega no pé dela porque acha que ela tem que estudar.
— Não pego no pé de ninguém. Não
tenho nada contra ela se divertir de vez em quando, mas não bebendo,
e não toda noite, e sem descuidar do estudo, e seria bom também
se ela conhecesse gente seria.
— Nessa cidade morta, Décio, jovem não se diverte
sem beber. E você conhece alguém sério nessa idade?
Isso é só uma fase. Vai passar.
— E enquanto passa, ela vai jogando a vida fora!
— Que exagero! Ela só bebe de vez em quando. Você
também bebe e estar saudável, forte e bem disposto.
— Ela não bebe só de vez em quando, não,
bebe todo dia! Ou melhor, toda noite. E a qualquer hora ela aparece grávida
de algum desses malandros. Será que ela só bebe?
— Quanto a isso pode ficar tranqüilo. Em relação
a homem Victoria é menina direita. Pode até ter muito defeitos
mas com homem é menina direita.
— Como você sabe, se não sai com ela? Ela é
esperta. Comigo, é toda humildade, concorda com tudo o que falo,
não faz nada de grave na minha frente, mas é só eu
virar as costas que começa todo aquele deboche irresponsável
dela. Inclusive, ela fala mal de mim que eu sei. Inventa um monte de piadinhas
sobre mim, quebra toda promessa que me faz. Ela é tão santa
quando eu estou olhando e aqui dentro de casa... Mas da porta pra fora,
vira uma palhaça bêbada. E me diga, com posso mandar ela para
cidade grande estudar? Primeiro, ela não vai estudar, vai beber.
Depois, se ela cai bêbada na rua, algum malandro pode se aproveitar,
e eu não estarei lá para defende-la. E ela pode ter contato
com coisa pior que cachaça, saindo toda noite para um boteco. Não,
ela só sai dessa casa depois que passar essa fase, quando estiver
levando a vida mais a sério, quando já tiver parado com isso
de toda a noite chegar bêbada.
— Décio, você faz o que quiser, deixa de fazer o
que quiser, mas eu vou dormir.
Enquanto Dona Angela virava o rosto, Décio matutava sobre o que
fazer com a filha. Não ia ajuda-la passar em nenhum vestibular nem
ia pagar os seus estudos, até porque era dinheiro jogado fora, ela
não estudava mais nada, só bebia, ele tinha que fazer algo
para Victoria parar de beber. Mas não era capaz de pensar em nada
nesse sentido. Olhando para cima, como se rezasse, ele pensou: “Qualquer
hora eu perco a paciência e engrosso com ela, o que não quero
fazer nem acho certo. Mas também não é certo ela ficar
o dia todo bebendo, e se for para ela tomar jeito, valeria a pena ela apanhar...
O que não pode é ela ficar nisso de encher a cara toda noite.”
Enquanto isso, Victoria roncava em seu quarto. A mãe dela cochilou
até as nove e depois foi cuidar da casa. Os irmãos dela acordaram
cedo, foram para escola, e voltaram na hora do almoço. E Victoria
dormiu até as três da tarde. Quando acordou, com muita fome,
sentiu dores no nariz, no braço direito, na bunda e no dedinho da
mão esquerda. Foi até a cozinha ver o que tinha para comer,
mas enquanto andava as dores aumentavam, e ela se queixou para a mãe.
A Angela mandou ela até a casa do vizinho, depois do almoço,
pedir para ele leva-la até o hospital, e o vizinho, que chegava
em casa por volta das quatro e meia da tarde, a levou até o hospital
público. Enfaixaram o braço e o dedinho dela, deram a Victoria
uma pomada para o nariz e pediram para ela parar de beber. Ela disse que
ia parar e os médicos, ouvindo isso, balançaram a cabeça,
incrédulos.
Por volta das sete horas ela chegou em casa e o Décio a chamou
para conversarem no quarto. Depois de meia hora de sermão, que Victoria
ouviu toda humilde, de cabeça baixa e concordando com tudo o que
o pai falava, ficou decidido que ela não ia mais chegar bêbada
em casa de madrugada. Depois, por volta das oito e meia, ela foi para a
casa do vizinho, que telefonara avisando que ela tinha esquecido a pomada
que ia usar para o nariz no carro dele. Victoria pegou a pomada na casa
do vizinho e depois de olhar com ironia para a casa construída pelo
velho Mário Nunes foi se encontrar com a turma dela.Quando uma amiga
que não tinha saído com ela na noite anterior a viu enfaixada
e com pomada no nariz começou a rir e perguntou se a farra foi boa.
Victoria, rindo também, disse que foi ótima, mas que ia parar
de beber pinga e passar a beber vodka.
— Por que? – Perguntou a amiga.
— Porque pinga me dá dor no braço, no dedinho e no nariz.
— respondeu Victoria, e as duas riram juntas.
É claro que a filha de Décio Nunes e neta de Mário
Nunes não ia sair contando por aí que apanhou de um fantasma.