Correspondência Mítica

São Paulo, 2 de julho de 1977: Ao muito prezado senhor, morador do seiscentos e quinze. Estimado amigo, venho através desta solicitar encarecidamente que me ajude na solução de um íntimo e desatinado problema, que tenho certeza sem nenhuma dúvida, muito facilmente poderia ser solvido pela sua brilhante pessoa. Aproveito também esta para estender meus votos de cordiais saudações, saúde esplêndida, e transmito desde já o pesar de que ainda não compartilhemos mais intimamente uma única e excelsa fraternidade. Mas os afazeres são tantos, acredito que com o senhor deve ocorrer o mesmo, e o lazer cada vez mais raro e difícil. Caro também, mas isso não importa agora, nem é desculpa que justifique em totalidade o nosso até agora inexistente convívio. Falta, aliás, que breve pretendo remover do meu destino, profundamente maculado por não conviver mais com pessoas tão agradáveis como adivinho o senhor e todos os seus. Desejo sinceramente que nossos corações se entrelacem em futuras e brilhantes tertúlias. O problema (não chega rigorosamente a ser um), mas a questão é a seguinte e passo à exposição do caso, pedindo-lhe as devidas licenças e desculpas por tamanha ousadia. Sou um trabalhador. Acordo todos os dias às cinco horas, tenho que chegar no escritório às seis, seis e meia no mais tardar porque sou eu quem tem a chave e dessa forma quem abre a porta aos demais funcionários. Quando me atraso, quarenta pessoas perdem seus horários de trabalho e ganham seus devidos descontos no fim do mês. Nunca os salários são fartos o bastante para que se possa dispor sem cair em desgraça dessas desagradáveis e desnecessárias mordisquelas no soldo já tão exíguo. Eu mesmo não ganho tanto que possa dispensar sem revertério algum isso que é meu. Bem, quando um homem tem deveres tão matutinos é indispensável um mínimo de horas de sono, não lhe parece? É exatamente esse o problema. Tento dormir mas é impossível a um morto dormir nas condições que se me apresentam noite trás noite. Descobri depois de nebulosas e infindáveis pesquisas, todas realizadas nessas insoniosas noites, que isso que me afligia, e não só a mim, mas a todos os meus, eram as suaves e delicadas sapatilhas de sua esposa. Penso ainda no que a faria andar tantas horas por noite. Estendi a divagação até a pergunta de por que não veste seus magníficos pés com qualquer outra coisa? São trancos secos e perseverantes, pontiagudos estalidos pelo teto. Contínuos. Contínuos. Lembram o som produzido por essas sandálias acamurçadas com um pompom rosa na ponta que determinadas mulheres usam antes de se deitar. Me diga num futuro encontro se acertei. O som não seria tão desastroso se não impusesse sua permanência auditiva hora após hora, sem intervalo, pausa ou variação mínima para que meus disciplinados ouvidos se refaçam. Minha pobre mulher se sufoca noturnamente de dezenas desses milagrosos comprimidos tentando numa aflição imersa em desespero e caos isso que por direito seria seu: o sono. Eu já desisti. Os plactoplacs intermitentes impossibilitam essa parcela de concentração exigida para tão saboroso e reconfortante mister. Pensei comunicar o síndico do edifício, mas me pareceu demasiado afrontoso e nem o caso era para tanto. Peço-lhe perdão pelo incômodo. Não tenho nada contra esse hábito inescrupuloso de andar e vagar madrugada afora. Nada tampouco contra sua mulher. Que ande quando lhe aprouver e o tanto que quiser. Não se trata apenas de minha inexpressiva pessoa. Pense nos outros todos, na minha esposa, a pobre, que perdeu cinco quilos, nos trabalhadores prejudicados e com seus orçamentos abalados apenas porque não pude dormir e me atrasei de algumas horas do compromisso de lhes abrir a porta. O amigo percebe que não se trata de questão puramente individual ou particular. Uma pequena parcela da classe operária é atingida pelos plactoplacs da sua senhora. Encarecidamente lhe peço que ordene à sua mulher que modifique o calçado. Temos tantos modelos para escolher, o país até exporta milhares de sapatos, quem sabe um com o salto de borracha? Ela poderia passar semanas se movimentando tranqüila, e nós também. Digo que nós teríamos finalmente a paz. Se por acaso se tratar de um desses calçados de estimação, quase da família já, tentem então, por favor, tapetes, pisos de borracha, forrações várias como carpetes, e demais. O seu vizinho do quinhentos e quinze agradece comovido. Repito os votos de magnífica saúde e esplendorosa abastança. Me despeço, ciente de que serei atendido em tão discreto e razoável pedido. Renovando saudações e a intenção futura de maiores e mais afetuosos contatos, atenciosamente, Ataliba Leonel Júnior, apto.515.

São Paulo, 3 de julho de 1977, Ao caro amigo do 515, Prezado senhor Ataliba. Recebi com grave alegria e não menos espanto sua serena e deliciosa cartinha. Comovi-me com sua situação, bem como a de todos os demais funcionários e pessoas. Agradeço intenção e propostas de futura amizade e dedico toda minha atenção para lograr o quanto antes tão airoso desfecho. Sinto muitíssimo que as caminhadas noturnas da minha esposa o incomodem tanto. Claro que vai se desfazer de suas queridas e VERDES sapatilhas, ausentes do mínimo resquício e alma de um doce pompom que seja. Afinal, são simples sapatilhas, e não um membro da família, como o senhor tão suave e delicado insinuou. Tampouco a reposição vai ser tão simples como o amigo supõe. Trata-se de calçado importado, adquirido numa das nossas viagens. Não importa, se tanto lhe perturbava a tranqüilidade, que sua vontade seja feita. Durma tranqüilo, senhor Ataliba. E que sua senhora despeje todos os comprimidos no incinerador, uma vez que doravante serão inúteis. Ou então, se desejar empregá-los da melhor forma, e se possuem de fato eficácia médica comprovada, porque não os despeja todos garganta adentro de seus três adoráveis filhos? Gritariam menos, e os alicerces do edifício não correriam os riscos que correm atualmente. Imaginei meses seguidos que o senhor criasse feras no seu apartamento. E também já ia comunicar ao síndico essa contravenção quando recebi sua deliciosa missiva. E se prometo tomar providências quanto à preservação do seu sono, tome o senhor as justas medidas para a manutenção na exata ordem da minha saúde mental. Fico feliz ao saber que sua esposa perdeu cinco quilos. Deve se sentir melhor assim, pois não? E também não será mais necessário reforçar os cabos do elevador. Economizaremos um pouco então, despesas com o condomínio são tantas, que o mínimo poupado já é gratificante. Sem mais, desejando-lhe o de melhor, me despeço, Artur Silveira Fernandes.

São Paulo, 4 de julho de 1977, Prezado senhor Fernandes, recebi sua carta deixada na portaria. Não preciso dizer o quanto me surpreende sua pouca compreensão para com a infância. Seria capaz de jurar que o senhor brotou no mundo na forma como é agora, silencioso e carrancudo. Imagino o padecimento de sua santa mãe se esse fato ocorreu como afirmo acima. No mais tranqüilize-se, os meus três meninos vão se esforçar por lhe satisfazer a vontade. Não mais vão se divertir como as demais crianças. Permanecerão sentados no sofá vinte e quatro horas por dia, amarrados, para sua maior segurança. Espero que o fato de passarem o tempo se distraindo com a televisão não lhe desagrade, caso assim seja me comunique que destruirei o aparelho. E já que falamos de eletrodomésticos, pediria também que evitasse o estrondo do rádio, televisão e vitrola a todo volume. Se os seus são surdos, os meus não. Compre um aparelho auditivo para sua delicada mãe, poderá assim ouvir o mundo sem ensurdecê-lo. Acredito que se trata de um mal congênito porque os discos de sua filha são colocados despudoradamente na amplidão máxima do som. Somos obrigados também a assistir os programas que vocês aí em cima acompanham, porque é inútil tentar ouvir qualquer outra vibração que não o escangalho que escorre do seu apartamento. Espero igualmente ser atendido. Seu, Ataliba Leonel.

São Paulo, 5 de julho de 1977, Senhor Leonel, Se tudo possui seu devido limite, o amigo ultrapassou o seu. Minha mãe não é surda, não temos o mínimo problema quanto à audição e desejaria que o senhor e os seus fossem ao inferno com tão delicados e ultra-sônicos ouvidos. Exijo também que o imbecil de seu primogênito não faça mais as bruscas manobras com o automóvel na garagem do edifício. Nem ele tem idade para dirigir nem critério. Se o pára-lama do meu carro sofrer o mínimo arranhão, o senhor se verá comigo. No mais asseguro que vamos continuar escutando rádios, vitrolas e tevês no volume desejado, e se isso tanto lhe perturba, por favor, se mate.

São Paulo, 6 de julho de 1977, Senhor Artur, se sua mulher continuar a andar com esses malditos tamancos algo de terrível vai acontecer. Meu filho vai dirigir na garagem porque eu quero que seja assim. E quanto aos gritos, tente fazer o mínimo que seja. As crianças daqui para a frente vão tocar tambor e saxofone, para seu aprazível deleite. Estamos pensando em formar uma banda, nós todos aqui em casa, em sua exclusiva homenagem. E por favor, arrebente sua televisão que nossos tímpanos já estão pelo chão há muito tempo.

Senhor Ataliba: Escrevo para comunicar que a peste do seu primogênito está amarrado e muito bem amordaçado na minha sala de banho. Atreveu-se o imbecil pimpolho a marcar fundo a lateral do meu automóvel. Se avisar a polícia, o síndico ou qualquer outra dessas atitudes covardes, pode ter certeza que o matarei. O júri me absolverá comovido quando chegar ao conhecimento real dos fatos torturantes a que sua família, e este idiota amordaçado em especial, nos submeteu a todos aqui em casa. Exijo que vocês todos desapareçam do prédio, deixando apenas a quantia exata para refazer meu veículo. Espero sua resposta.

Artur, você desconhecia o período que passei no exército. Fui mestre em explosivos. Sua querida mãezinha está igualmente amordaçada no quarto dos fundos, junto com o pestilento animal que levava a passear. Se quiser rever os dois, devolva meu filho, quanto ao carro, poderemos conversar depois. O pavio não é muito comprido, e a carga é suficiente para esfarelar sua lindamente engruvinhada progenitora. Quanto a sair do prédio, rimos muito durante três horas.

Ataliba: Proponho a troca de sua lacrimejante senhora e absurdo filho pela minha mãe e sua cadela de estimação. Atende por Daniela e é muito suscetível. Dê-lhe boa comida nesse meio tempo. Por favor aceite o intercâmbio porque não suporto ninguém da sua família por perto.

Artur: Sua filha, sua mulher, sua mãe e Daniela estão amarradas juntas ao mesmo tonel de pólvora. Não devia deixar que fossem à feira sozinhas em tempos como estes. Devolva os meus e terá os seus.

Ataliba: Os seus ocupam todo o espaço da minha sala de banho. Notei que devemos estar os dois sozinhos em cada casa. Quero dizer, os meus estão aí e os seus aqui. Proponho uma coisa: Por que não os deixamos morrer e vamos embora? Ganhamos muito bem os dois, teríamos fartura. Juntos recomeçaríamos tudo. Em prédios separados, é claro.


J. L. Mora Fuentes

Do livro: "Fábula de um rumo" Ed. Moderna, 1980, SP
Este conto está on line no site: Casa do Sol e está sendo divulgado em Blocos com o consentimento de seu autor.

 

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