O sol ardia ainda naquele final de tarde.
Eleonora, jovem dona-de-casa, recolhe
as roupas, que já estão secas, do varal que fica nos
fundos, ao lado esquerdo da casa amarela em que mora há algum
tempo.
Na rua, reina aquele silêncio
preguiçoso que só é quebrado às vezes pelo
pássaro preto, que vive na gaiola pendurada na pequena e fresca
área de serviço; é ali também que vivem as
suas amadas plantinhas e onde costuma passar algum tempo conversando
com samambaias, begônias e avencas.
Neste dia, em particular, Eleonora se
encontra melancólica, enquanto recolhe as roupas do varal, passeia
vagamente o olhar pela rua que pode ser vista pelo corredor. Em que pensa
ela neste momento? Se lhe perguntassem não saberia responder. Seus
imensos olhos castanhos, levemente oblíquos, guardam aqueles segredos
que só os poetas descrevem bem.
Ela brinca com os bordados e crochês
da toalha branca que fez para o enxoval e continua a olhar distraidamente
a rua, quando seu olhar cruza com o de alguém. Em princípio
eram só os olhos que se viam. Num gesto impensado ela prende os
longos cabelos num coque e se flagra olhando fixamente para Tadeu.
Tadeu, homem sério, de poucas
palavras e pouco riso. É um mecânico que costuma voltar da
oficina em que trabalha, sempre ao cair da tarde.
Eleonora, quando o viu se afastando com seu
macacão sujo de graxa e aquele andar decidido de quem sabe exatamente
para onde vai, sentiu-se enrubescer sem saber porque. Fechou maquinalmente
o botão da blusa e tentou em vão não pensar em Tadeu.
Afinal, por que isso agora? Já tinham se visto tantas vezes, eram
vizinhos.
Tadeu também se inquietou com
aquele encontro de olhares, sem querer se pegou lembrando do incidente
durante o banho, e novamente mais tarde durante o jantar, o que provocou
um comentário da mulher sobre ele ter visto pássaros azuis,
ou estar sonhando com a Mega Sena.
Naquela noite, ainda bem quente, ele
vestiu um calção e inusitadamente, foi sentar-se um
pouco na calçada .
— Está fazendo muito calor
— argumentou, numa resposta ao gesto interrogativo da mulher.
Pegou um canivete e pôs-se a limpar
as unhas impregnadas de graxa. Às vezes arriscava um olhar meio
disfarçado em direção à casa amarela, mas de
lá só se via o brilho azul metálico, que vazava pelas
frestas da cortina, proveniente do aparelho de TV.
Com Eleonora as coisas não foram
muito diferentes, sentia um certo estremecimento ao lembrar-se do ocorrido,
e nessa noite nem as tramas da novela conseguiram demovê-la do alheamento
em que se encontrava, foi deitar-se mais cedo sentindo ainda sobre si o
olhar penetrante de Tadeu.
Eleonora e Tadeu dormiram com um único
pensamento.
Na manhã seguinte Eleonora agiu
normalmente — um pouco mais sonhadora talvez —
Coou o café, ferveu o leite, esperou que o marido voltasse da padaria
com os pães e tomaram juntos o café. Ela fez questão
de acompanhá-lo até o portão, o que há
algum tempo já não fazia e demorou-se um pouco mais para
entrar, os olhos passearam perdidos pela rua. Eleonora sentia que algo
havia acontecido com ela, era algo especial, grande, mas ela não
sabia definir o quê.
Tadeu, contrariando seus hábitos,
ficou um pouco mais na cama esta manhã, também ele tinha
uma sensação estranha, a maneira que aquela mulher o olhara...
Era bom, mas também perigoso. Quando saiu de casa, passou
rapidamente pela casa amarela. E forte, não olhou uma única
vez em sua direção.
Eleonora o viu. Pendurava a gaiola quando
ele passou. Resolveu esta tarde, ler na área, quando sentiu que
ele vinha passando, ergueu os olhos do livro e os manteve presos nos dele.
Tadeu, surpreendido pela firmeza, ficou sem ação, mas sustentou
o olhar.
Nesta noite repetiu o feito da anterior e munido
de canivete sentou-se lá fora; surpreso, deparou com Eleonora
e o marido, também sentados na calçada.
Forte ela desta vez, nem uma olhadinha sequer.
Amanheceu chovendo, Tadeu passou vagarosamente pela
casa amarela, procurou disfarçadamente e a encontrou debruçada
na janela, trazia ainda na expressão, aquele aturdimento, morno
e doce do sono e isso o excitou.
Os dias transcorreram calmos, Eleonora cumprindo
as normas do dia-a-dia excitava-se com o jogo e inventava novas maneiras
e pretextos. Decidiu que mudaria os cabelos, ou talvez usasse um batom
mais forte. Sentia necessidade de fazer-se bela. No horário costumeiro
e com os cabelos arrumados, foi terminar seu bordado, na área. Quando
se olharam desta vez, Tadeu, que não costumava fazer isso, voltou
a olhar, o que lhe proporcionou um prazer enorme, totalmente visível
no brilho dos olhos.
Sorrindo consigo mesmo, Tadeu sentiu-se envaidecido,
tanto quanto Eleonora, sentia também,
um grande prazer no jogo.
— Hoje o dia amanheceu especialmente
bonito, disse Eleonora ao marido, enquanto olhando a rua, viu que Tadeu
passava, exibindo uma bela camisa nova.
Ela passou o dia cantando, brincando com o pássaro,
e contando as novidades para as plantas, tentava explicar que aquela camisa,
significava muito mais que uma roupa nova.
Passaram-se os dias nessa rotina de novidades visuais,
Eleonora a cada dia com um penteado diferente, e a cor de batom também,
Tadeu, raramente passava com o macacão sujo, do primeiro dia —
embora aquele macacão tivesse um significado especial para ela.
Nenhuma palavra, jamais uma única palavra
entre eles fora trocada, nada sabiam um do outro, apenas se olhavam, e
seus olhares diziam tudo.
Alguns dias se passaram sem que Tadeu conseguisse
vê-la. Eleonora sumiu.
Tadeu quase enlouqueceu. Voltava para casa duas
ou três vezes ao dia, alegando ter esquecido algo, nada de Eleonora.
Sonhou com ela repetidas vezes, pensou em ir procurá-la, mas dizer
o quê?
Fingindo desinteresse, interrogou a mulher, os filhos,
tudo em vão. Ninguém realmente sabia nada.
Perdeu o sono e o apetite. Preocupou-se. Desistiu.
Eleonora tem agora muito o que fazer, e seus olhares
estão mais brilhantes e sonhadores do que nunca. Ela está
radiante, acabaram-se as tardes vazias. Prepara com ansiedade a mudança
para a casa nova, uma casa maior, onde poderá receber com conforto,
o filho, que de comum acordo com o marido, se for menino, se chamará
Tadeu.