— ... mas vai ficar em casa
fazendo o quê?
— Nada. Que foi o que eu
sempre fiz.
— Mas não é
possível uma pessoa ser assim...
— É possível.
Eu sou assim.
— Você vai acabar
enlouquecendo, vai acabar ficando sozinha...
— O que, aliás, foi
o que eu sempre quis.
— ... vai acabar querendo
conversar com os móveis...
— Olha aqui, Denise, eu
já converso com os móveis, já estou enlouquecida,
já sou sozinha, gosto do meu canto, detesto ser solicitada e vou
desligar, tá bom?
— Mas, Sonia, custa tomar
um chopp?
— E quem fica com o meu
cachorro?
— É por causa do
cachorro, então?
— É.
— Um animal, Sonia? Você
está ficando igual a ele.
— Eu já sou igual
a ele. Todos nós somos cachorros, se é que você entende
o que eu quero dizer. E eu saio de casa, sim, todos os dias da semana.
E Deus fez as pessoas...
— Chega dessa conversa,
Sonia. Daqui a pouco eu passo aí.
— Eu não vou abrir.
— Não é possível,
criatura, onde você quer chegar com isso?
— A lugar nenhum. É
você quem quer sair.
— Você não
fica com o seu cachorro a semana inteira?
— Pelo contrário.
Eu TRABALHO FORA a semana inteira. E morro de pena porque ele fica sozinho,
coitado. Sério mesmo, Denise, você está cansada de
ver como eu trabalho correndo para voltar logo para casa, tadinho.
— Quem sabe ele não gosta de ficar sozinho
também?
— Ah, não gosta, não. Precisa ver
quando eu chego em casa, parece que ele está vendo Deus.
— Sonia, que parar com essa loucura?
— Denise, juro por Deus. Por que as pessoas querem
tanto sair com uma maluca, que só pensa no seu cachorro ?
— Porque você precisa.
— Olha, eu agradeço muito mas, sério
mesmo, ele fica sozinho durante o dia, a semana inteira. Eu já dou
esse castigo enorme pra ele, coitado. Quando chega o sábado, que
é o único dia que eu posso ficar com ele, fica você
a querer me convencer de que "a vida me espera lá fora". Pros diabos
com essa sua vida! Minha vida é aqui, ao lado do meu amigo fiel,
que nunca reclama de nada, precisa ver. Outro dia eu pisei nele, arranquei
o fêmur com músculo e tudo e ele até hoje abana o rabinho
pra mim. Tem que passear devagar, senão ele não agüenta,
depois tem que fazer massagem nos dedinhos...
— Tudo bem, já fez?
— Já, mas não fiquei com ele o tempo
suficiente para compensar a semana. Só tem hoje e amanhã.
Depois é segunda novamente e eu vou ficar longe dele o dia todo,
tadinho. Sabe lá Deus o que ele fica fazendo aqui nesse museu, isolado,
sem ninguém...
— Quem sabe, ele não gosta?
— Deixa de palhaçada, Denise, que eu tenho
mais o que fazer.
— Ficar no sofá, vendo televisão,
com ele do lado.
— Claro que não, né? Tem roupa pra
passar também.
— Hoje é sábado, Sonia!
— Graças a Deus!
— Quer parar de falar em Deus, você parece
uma crente.
— E o que é que tem o meu sofá? Eu
adoro o meu sofá. Aliás, eu é que não entendo
as pessoas, que não gostam da própria casa. Pagam um aluguel
altíssimo por um lugar, de onde querem fugir o tempo todo. Procuram,
feito loucos, um apartamento para ficar longe dele o maior tempo possível.
Eu, hein? Eu vou desligar.
— Eu gosto da minha casa.
— Tô vendo.
— Só que é bom sair, de vez em quando,
sei lá, ver o mundo.
— E quem disse que eu não vejo o mundo? Até
a TV CULTURA eu pego daqui. Pode perguntar o que quiser.
— Você sabe, por exemplo, o preço do
chopp?
— E por que o preço do chope é tão
importante para a evolução da alma? Eu não consigo
entender a importância de ficar na mesa de um bar, duas patetas,
uma olhando para a cara da outra, poluindo o espírito com álcool...
— Falando sério, Sonia. Inclusive a Maria
me disse que no seu sofá está dando até rato.
— Não é bem rato. A Maria não
sabe de nada. É um camundonguinho, bem pequenininho, que aqui, no
Largo do Machado, eles chamam de "catita".
— Então, Sonia...
— Ih, mas você pensa o quê? Eu já
armei o esquema todo. Primeiro eu botei uma lingüiça numa ratoeira,
bem pertinho de onde ele rói todas as noites. Sabe onde ele rói?
Sabe onde ele rói? A mamãe aqui descobriu: é na porta
da varanda. Eu sou eu, né minha filha!
— Você o quê? !
— Todo dia quando eu acordava, eu via um pouquinho
de pó-de-porta-de-varanda no chão. Aí eu deduzi que
era um rato. Comprei um livro sobre ratos, consultei o pessoal da INSETIZAN,
falei com o porteiro...
— Você não ficou com medo?
— Que medo! Comprei-lhe uma ratoeira, tasquei-lhe
uma lingüiça e fui dormir, mas de antena ligada, que eu não
sou nada boba.
— Nada boba...
— De vez em quando eu escutava um barulho, levantava
correndo, ia até a varanda, mas a danada é tão danada
que só pegava a lingüiça. Mas eu sou mais esperta, né?
— Super...
— Tapei-lhe o buraco da porta e ela não teve
outra saída, a não ser ir para o meu quarto. E sabe onde
ela foi parar?
— Hm?
— Dentro da minha gaveta de Lexotan.
— Você tem uma "gaveta de Lexotan"?
— Tenho. Escuta.
— Mas, toda ela é só Lexotan?
— Que é que tem?
— Haja dor de cabeça!
— Quer escutar? Não vou contar mais nada,
hein?
— Fala.
— Só sei que aquele dia foi uma festa.
— Uma festa???
— Só que não deu certo. Ela é
muito pequenininha. Tinha que ter ratoeira miniatura, aí eu conseguia.
— É. Tinha que ter sabe o quê, Sonia?
"Catiteira".
— Ah, isso mesmo!
— Tasque-lhe uma "catiteira", quero ver se ela foge.
— Vou perguntar se tem.
— Sonia, a que ponto você chegou! Isso tudo
por causa de um rato! Olha o seu delírio para falar de um rato!
— Não é rato, é ca-ti-ta.
— ... a importância que você está
dando a um rato...
— Catita, Denise.
— É assim que você passa suas noites?
— Não, e tem mais. Hoje eu jurei que vou
ficar acordada a noite toda, só pra ver se eu pego ela na vassoura,
a cretina, já pensou?
— Daqui a pouco eu passo aí. Se você
não abrir, eu chamo a polícia.
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— Tá vendo como foi bom? Pede mais um chopp,
vai?
— É, né? Vocês chamam isso de
"vida".
— Que foi, Sonia?
— Nada...
— É o cachorro?
— Não. É que eu tinha milhões
de coisas para fazer em casa...
— Ficar com o cachorro, por exemplo.
— Não é só isso, Denise.
— Ah, esqueci. Tem roupa pra passar também.
— Deixa de palhaçada!
— Hoje é sábado, Sonia. Passar roupa
num sábado à noite?
— Uma coisa não tem nada a ver com outra.
Que é que tem? Eu gosto.
— Então, por que essa cara?
— Que cara?
— Pede mais um, a gente já vai.
— Não, deixa. Já estou aqui mesmo...
— Quer ligar pro Marcelo?
— Deus me livre!
— Vamos lá pra casa, então?
— Não! Também não é
assim.
— Tá morrendo de pena do cachorro?
— Até que não.
— Que foi então, amiga? Fala.
— ...
— Que foi?
— Nada, sei lá... ...uma saudade
da catitinha...