MEÍRNO

    parece um sujeito atencioso. ouve com interesse o que os outros pronunciam. se concorda com o que estão falando, ensaia um gesto amplo. se discorda, torce a cabeça para os lados. por trás disso, no entanto, há um esforço sobre-humano.

   ele se explica: cada movimento nos lábios alheios é um distúrbio, uma desastrosa alteração do ar. aos poucos até o fluxo das nuvens se transforma em alarido. às vezes pareço concordar com o que me dizem, mas no fundo no fundo estou mergulhado em um enxame de possibilidades que se concretizam à simples passagem das palavras.

   outro dia um amigo me falou que um parente seu tinha sofrido um grave acidente. respondi-lhe  _ legal! notei em seu rosto desapontamento. virou-me as costas e quis partir. tentei contê-lo, buscando com gestos veementes socorrer nossa amizade.

   argumentei que havia sobras de palavras aninhadas em meus tímpanos, que restos de um antigo regozijo ainda não tinham deixado de vez minha consciência. não estava limpo o suficiente para ouvir sua notícia. roguei-lhe que esperasse mais algumas horas, até eu estar apto para o luto e poder chorar com ele ombro a ombro. tentei um pranto, unindo algumas passagens tristes que me vinham à mente, mas percebi que não era sincero e tudo aquilo tinha um gosto de lágrima caída de um remorso já estagnado. era impróprio para a ocasião.

   insisti nas escusas. mas como entender que às vezes, sem querer, apego-me a murmúrios extraviados dos discursos e construo um particularíssimo monturo onde as coisas se arrastam vestidas de palavras? não tinha culpa. era como se eu tivesse escondido um júbilo que no indevido instante escapou de seu refúgio.

   inútil. como iria convencer um homem de que algumas palavras caem de sua boca sem que ele perceba?


Cândido Rolim
 

 

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