A ESTÓRIA DE UMA GUERRA

Essa é a estória de uma guerra, que como todas as outras, começa por nada, e acaba com o nada. Estabilo era uma ilha muito bonita. Havia nela tudo o que há nas ilhas muito bonitas, Praça, Igreja, Bosques com flores e um riacho, limpo e gelado. A vida era boa em Estabilo. Os bosques alimentavam-se das chuvas e da música, que parecia sempre tocar por lá. Porém os homens já estavam fartos da ilha, porque, desde a criação, eles têm essa necessidade visceral de destruir seus paraísos.

Estavam os homens dali a beber e conversar na taverna do Almeida, que ficava à praça, e de onde se via os pombos brigarem na grama e as beatas passarem para a missa. João valente, que como o nome já diz, era o homem mais valente do reino, falou aos outros:

— Eis que a vida aqui me cansa. Não há nada o que fazer!

— Poderíamos fazer alguma coisa para ocupar nosso tempo. Disse Almeida de lá do balcão.

— E se plantássemos mais plantas, e cantássemos mais músicas e escrevêssemos mais poesias ? indagou Levi, o artista.

— Não, isso é tediante. Retrucou Tales, o matemático.

— O que fazer então? Insistiu Almeida

— Já sei — gritou João Valente com a própria entonação de quem tem uma boa idéia – Vamos fazer uma guerra, que é aquilo que os homens fazem quando estão desocupados.

Todos olharam-se, receosos. De fato era uma idéia interessante, engendrar uma guerra, pegar em armas, tomar reféns e conquistar territórios. Porém, não seria arriscada de mais? João Valente concordou, era um pouco arriscado, " mas é tudo de que precisamos para desfazer a monotonia de nossas vidas ", insistiu. Levi logo surgiu com a primeira dificuldade:

— Como faremos uma guerra, se não temos com quem lutar? Nosso reino é uma ilha e não há outras por perto. Não há nenhum reino que conheçamos aqui nas redondezas. Sabemos que existem reinos distantes e longínquos, porém sabemos também que são poderosos.

— É verdade, concordou Almeida. E além disso, só a viagem que teríamos de fazer, deixando-nos longe de nossas mulheres e filhos, já nos tornaria em soldados cansados e melancólicos...

— Para isso também há solução, replicou João Bravo. Não há necessidade de que saiamos do reino para fazermos a guerra. Poderemos fazê-la aqui. Dividiremos a ilha em duas partes, duas tropas. Essas brigadas lutarão entre si, aqui dentro mesmo. Eu e Levi podemos comandar uma, Almeida e Tales podem chefiar a outra. Chamaremos os outros homens, e faremos dois exércitos iguais em número. Traçaremos nossos planos, confeccionaremos nossas armas, e daqui a um mês podemos começar a batalha, aqui na praça.

— João — Interrompeu Levi — Queres que nós nos matemos? Nós, que somos todos amigos e camaradas?

— Claro que não Levi, não sejas tolo. Confeccionaremos armas que não possam machucar, apenas ferir levemente, para que o ferido fique em casa e não participe mais da guerra. É tudo uma grande apoteose, não se trata de realidade.

— Sendo assim eu concordo, — disse Almeida

— Eu também — Concordou Tales.

— Tenho medo — confessou Levi — Mas façamos os preparativos.

Foi assim que preparam a guerra. Não precisavam pedir permissão a ninguém, visto que era um reino sem reis. Moldaram escudos, fundiram espadas, teceram vestes e engenharam armaduras, que cobriam as vestes. Pensavam planos, artimanhas de guerra, a melhor maneira de subjugar o inimigo. É bem verdade que era uma falsa guerra, mas ao se preparem para ela, o espírito das guerras, que é astuto e sagaz, foi tomando-lhes de conta, sem que se apercebessem disso. Finalmente, quando o mês já se passara, as tropas estavam prontas, e iam chegando à praça os cavalos e cavaleiros, arcos e arqueiros, atiradores e catapultas, soldados e espadas.

João valente vinha à frente de um dos exércitos, o preto. Montado em um cavalo negro, protegido por um escudo de ferro e com uma enorme lança, de ponta arredondada, para que não ferisse ao inimigo. Levi vinha atrás, a pé, tocando na trombeta os cantos de guerra, atiçando seus soldados, intimidando seus inimigos.

Tales chefiava o outro, vermelho. Era engenharia sua as catapultas. Só seu exército as tinha. Havia calculado os ângulos e medido as distâncias. Ao invés de pedras, atiraria sacos de farinha, e não era grande desperdício, visto que farinha era o que não faltava no reino. Almeida, era o responsável pela logística das tropas. Fornecia a farinha e calculava o alimento. Não podia haver nada em excesso, posto que o inimigo poderia, em conquistando o armazém, fazer uso do estoque. Mas também não poderia haver nada em escassez, visto que a guerra não podia parar. As mulheres e crianças estavam às beiras das portas, assuntando a loucura, ao mesmo tempo apreensivas e ansiosas. Foi dado o sinal. A batalha começou.

A praça coloriu-se de preto e vermelho, num emaranhado de homens, que lançavam uns sobre os outros suas espadas sem pontas e escudos de ferro. Sacos de farinha, que recebiam na cabeça, deixando-lhes brancos os cabelos, caíam do céu. Para as espectadoras, tudo parecia um grande carnaval. Porém, de repente, foram aparecendo aqui e acolá manchas de sangue nas vestes dos lúdicos guerreiros. E parece que ao sentirem o cheiro de sangue, subiu-lhes o espírito da guerra, e tornaram-se agressivos, esses homens tubarões.

Não se sabe de onde surgiu exatamente a primeira espada com ponta, mas depois de vinda a primeira, e de ter trespassado a vítima primeira, outras foram surgindo, como se todos já soubessem que aquilo fosse acontecer. As catapultas não mais atiravam sacos, mais sim pedras e a praça continuava ainda colorida de rubro — negro, porém agora o rubro devia-se ao sangue, e o negro às carnes, pisadas.

Lentamente foram tombando os tubarões — soldados. Almeida já era morto há horas, em cima do balcão da taverna. Tales tinha espetada em seu coração matemático uma espada, de ponta fina e afiada, e que tinha em relação ao corpo um perfeito ângulo reto. João Bravo, o corajoso, caíra cabeça para um lado e corpo para o outro. Levi foi o último a morrer, e enquanto agonizava, pensava consigo, " Tivéramos nós plantado as plantas, cantado as canções, escrito as poesias..." E então morreram todos.

Foi assim que Estabilo tornou-se uma ilha de mulheres e crianças. Foi assim que o riacho tornou-se uma estrada de barro, e que as flores morreram. Foi assim que destruiu-se a praça e tombou-se a igreja. Assim que os bosques alimentaram-se dos corpos, e morreram, porque aqueles bosques estavam acostumados a alimentar-se de músicas. Foi assim que destruíram sua bela ilha, talvez bela demais para eles. Tudo por conta de alguns homens desocupados, que começaram uma guerra, que é aquilo que fazem homens desocupados. Guerra que começou por nada, e acabou com o Nada, visto que nada era o que restara da ilha. Triste sina essa dos homens, que desde a criação, destróem seus paraísos. 

David Nogueira
 

 

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