QUATRO ESTAÇÕES

       Houve uma noite escura e feia no último inverno. Num dos apartamentos de um prédio fora também tormentosa a noite. Mas logo raiara o dia, e este dia seria o primeiro de uma linda primavera.
       Os ipês e jacarandás mostravam sua beleza singular, na disputa ferrenha de colorir mais a cidade. Mas naquela manhã de primavera, uma outra flor de beleza ousada suplantaria a frivolidade das árvores que margeavam as ruas da cidade.
       Linda, uma flor de lascívia, desfilando sua feminilidade num vestido de um vermelho provocante, notava-se a beldade ímpar de Maria dos Prazeres a passear sua luxúria em meio das gentes.
       Um frescor de fêmea ainda úmida do banho matinal, oloroso e ardente, ressurgia de cada poro do corpo de Maria dos Prazeres. Poder-se-ia dizer que ela era uma flor que após o aridez insípida do inverno desabrochava. e caminhava fazendo-se ser vista. Maneava a cabeça esvoaçando os cabelos longos e loiros. Desprendia-se todo deu cheiro de dama da noite, ainda mesmo sendo dia.
       Diante disso, os ipês deixavam cair suas flores com que pretendiam dourar mais o dia. formavam um tapete de sol para Maria dos Prazeres passar. Agora, o roxo dos jacarandás era mais escuro. Enlutaram-se ante a presença nada singela de Maria dos Prazeres. Se as flores sentissem inveja, arroxear-se-iam como os jacarandás o fizeram naquele dia. Pura inveja e desejo obstinado de vingança.
       Para ela, houvera sido cansativa a noite. Saiu cedo, fazendo esvoejar juntamente com seu vestido e seus cabelos, sua consciência bipartida. Despregava-se do espírito. Era como uma andorinha. Desalmada e presunçosa. Pretendia fazer o verão. O dia seria lindo, o verão seria lindo. E Maria dos Prazeres rodopiava pelos ares. Quente e rubra - uma andorinha vestida de vermelho; era ela, Maria dos Prazeres.
       Seu andar sorria para a cidade que cinzenta, parava para reverenciá-la. Uma fêmea em cio. Apaixonada e apaixonante. A primavera sempre faz ressurgir as maiores belezas da vida. A cidade não podia permanecer indiferente. Era a primavera que iniciava.
        Maria dos Prazeres era um atrativo concupiscente aos olhos dos homens que atravessavam seu caminho. E seu andar sorria para a cidade que lhe reverenciava a magnífica feminilidade - coisa rara nos dias seus. Era realmente um prestígio vê-la assim, linda  e delicada.
       Era a vida que protestava por Maria dos Prazeres. Fazendo retinir, de manso, em seus seios, cochas, por todo o corpo, a cada fibra a cada curva, seu fantástico e exuberante e maléfico desejo de fruir daquela primaveril maravilha. Um sentimento de pujança tomava conta dela. Algo hipnótico que a compelia para fora - para viver; eram as paixões que desabrochavam. Viciosas todas elas. Dir-se-ia que fosse uma fúria saída do claustro para a alcova. Uma fúria impudente e libidinosa.
       Maria dos Prazeres contava com pouca idade e descobriu que tinha sede, uma sede profunda e velha. Dirigiu-se à fonte.
       Naquela manhã cinzenta de céu de chumbo saiu de casa  cedo, bem cedinho, e foi passear. Para ela o dia era belo. O primeiro dia da primavera, o primeiro, também de sua vida. Tinha de aproveitá-lo.
       Parou num café que já regurgitava a manhã nervosa. Comprou um maço de cigarros e sentou-se cruzando as pernas. Quis café e pão de milho. Pediu-os.
       Como era bom estar ali. Entre os cheiros do café, dos pães e perfumes, destacava-se o seu. O tilintar das colheres nas bordas das xícaras, o burburinho que faziam as gentes, deixavam-na esquecer-se do inverno que tragedioso  terminara. Era tudo uma viva sinestesia a penetrar-lhe pungentemente o corpo. era a primavera que sorria para Maria dos Prazeres. Quente, a bebida descia-lhe pela garganta com a dureza que lhe é própria, aquecendo-lhe inda mais o corpo fresco de mulher moça.
       Havia muito que percebera essa mocidade. Quando conhecera aquele lindo jovem. Não fazia tanto tempo assim. Porém, tarde de mais. Engravidara dias depois e o doce amante desaparecera para nunca mais voltar, e com ele as paixões de Maria dos Prazeres, por si mesma e pela vida sua. Tudo por culpa do trágico bebê que viria ao mundo.  Era o inverno que começava...
      Maria dos Prazeres, jovem, bela e grávida. Teria que cuidar sozinha do filhinho que estava por nascer. Em lugar de um, nasceram dois. Um de cada sexo. Gêmeos maravilhosos contudo, filhos de pai ignorado e de  mãe solteira. Mas que linda mãe solteira!
       Agora tudo era simples e diferente. Não seria mais mãe solteira. Seis meses após o parto apaixonara-se de novo. Era o primeiro e mais feliz dia de sua vida. Abolira-se dos sofrimentos seus. Queria existir e nada mais. Viver e amar, amar e viver. Era a primavera que começava...
       Ser jovem, mostrar as cochas num frívolo andar de dama que se insinua ao público masculino, eram para Maria dos Prazeres sensações nunca antes experimentadas. Quando viu que se amava e era bela, o amante, ciumento, não permitiria. Quando mãe solteira, não lhe conviria. Mas agora não seria mais uma mãe solteira. Tudo lhe seria permitido no primeiro dia de sua vida, de sua verdadeira felicidade e juventude. Não havia mais sobre si aquele peso enorme do mundo.
       Dali da rua, onde não mais ouvia o choro dos filhos, poderia sorver com todos os sentidos cada paixão que se lhe avizinhasse. Prazeres entrava em êxtase. Ali no café cruzava as pernas numa graça infinita, suspendendo um pouco a saia, fazendo, com isso, aparecer, discretamente, só um pouquinho, a rendinha da meia três-quartos que lhe pressionava com suavidade as cochas maravilhosas. O colo exuberantemente à mostra num decote ousado, dando imaginar o formato das mamas com que as duas boquinhas insaciáveis tantas e tantas vezes aplacaram a fome. E ninguém se atreveria a dizer que aqueles peitos um dia deram de mamar.
       O corpo infernal de Prazeres era a imagem da corrupção. O que se não faria para tê-la ao lado na cama Com as tetas fizera os filhos calarem-se inúmeras vezes. Com um único gesto, faria com que todos aqueles que a cobiçassem, se atirassem aos pés seus. Era diabólica. Dois filhos vindos de um parto normal e nada, nenhuma imperfeição sequer. Sua formas inadmitiam qualquer  censura.
       Tomou o café e comeu o pão de milho. Saiu do café para passear fumando despreocupadamente seu cigarro. Por quê preocupar-se? Logo no primeiro dia da primavera! O dia lindo começava e Prazeres, tão linda quanto o dia recordava-se de outras primaveras. Esta era especial. Apaixonara-se. Era afinal  a vida que começava para Prazeres.
      Prazeres andava pela cidade sem denotar todo seu cansaço físico. Espiritualmente estava renovada. Aquele  amanhecer de primavera revigorara-lhe o ser. Balouçava os quadris e os cabelos, ao passo que as árvores balouçavam os galhos. E a brisa matinal era o que ninava a manhã naquela cidade. Quem dera se Prazeres pudesse ninar assim os  filhos... Mas suas tetas foram por um bom tempo o salvo-conduto, a propina que calava os filhos.
       Agora era uma mulher renovada. Apaixonadíssima e por conseguinte egoísta. Resolvera desmamar os filhos e seu leite secara com impressionante rapidez. Seus seios passaram a ser só quentes e belos. Desinteressantes às crias. Mas Prazeres não se importava pois havia muito leite de vaca com que alimentar os filhos.  Emagreceram. Rejeitavam o leite que não lhe era familiar. Tornaram-se nervosas e Prazeres, impaciente.
       Aquela noite fora odiosa. Esquecera-se de ser mãe para ser apenas a linda e egoísta mulher. As crias se não calavam e nem mesmo se contentavam com o leite de vaca. Queriam leite materno. Queriam sugar aquelas lindas tetas, ao passo que Prazeres queria somente dormir. Raivosa arrancou as fraudinhas das criancinhas.
       Nos outros apartamentos do prédio, os vizinhos que ressonavam na noite fria não ouviam o barulho agudo dos gritos histéricos de Prazers, nem o choro compungido dos pequeninos a misturar-se ao som oco das palmadas que Prazeres lhes distribuía em troca dos peitos quentes e maravilhosos, porém  secos.
       Cansada e com a mão dolorida, Prazeres cessou com a pancadaria. Os coitadinhos soluçavam, num misto de fome e dor e falta de ar com o excesso de choro.
       O dia estava por vir e Prazeres não havia dormido ainda. O lamento das odiosas criaturas famintas não deixava a desgraçada dormir. Pudesse ela recolhê-las à escuridão do útero... O faria sem questionar. Definitivamente não tinha capacidade para ser mãe. Que dirá mãe solteira.
       Se tivesse abortado como o exigira o terno amado, em lugar das  crianças, ele estaria ali. Mas agora era tarde demais. Optara por trazer ao mundo aquelas criaturas. E o choro ressurgiu com novo vigor. Por quê os bebês não se calam de vez em quando? Não sabem o quanto lhes pouparia horas penosas que se multiplicam nas classes sociais mais humildes?
       E como eram contínuos os choros dos bebês, Maria dos Prazeres desesperou-se. Aqueles pequenos lhe houveram sugado todo o leite. Estava seca. Mas o chorinho nervoso não cessava. As mamas ressecadas e belas da mãe somente com a beleza e tepidez não aplacavam a fome voraz e irritadiça das duas criaturas. Como era longa a noite! A mãe então, de posse dos dois bebês abriu a janela para espiar se o dia já raiara. Fora escura e tenebrosa e tormentosa aquela noite. Mas qual nada, nem o dia raiara, nem o choro se calara. O breu e o barulho eram cortantes. E Maria dos Prazeres sacudia nervosa as crianças. E o choro era mais alto. Estava cansada.
       Somente o susto provocado pela queda abrupta do décimo primeiro andar fê-las calarem-se... Estateladas lá em baixo, antes do raiar do sol, as crianças agora finalmente estavam quietas. E Prazeres sorria, sorria, sorria seu riso de primavera a desabrochar. O sol já despontava no horizonte. Era a primavera que começava.


Santigao da Silveira
 

 

« Voltar