HELGA
“Os mortos nascem, não morrem.
Estão trocados, para nós, os mundos”.
Fernando Pessoa
Quando
conheci Helga ela já estava morta.
O cara de olhos fundos tem a pele macerada de drogado e quando ele ri eu
lembro de cachorros mortos. Tenho certeza que ele sabe muito mais do que
aparenta saber. Numa conversa flutuante que tivemos dois dias atrás
ele contou que Helga adorava folhear revistas de modas nas manhãs
de segunda-feira. “Aquilo parecia um sonho! Ela deitava-se ali na berger
e a luz branca da manhã ficava pulsando em volta dela! Clarice,
a sua persa de pêlos vermelhos e olhos cor de mel, aconchegava-se
bem em cima de seu ventre e ficavam as duas, mulher e gata, submersas na
claridade. Era uma pintura em moldura luminosa. Um Mondrian da melhor qualidade!”,
diz o cara. Ele também revela que, ao sair do banho, Helga exalava
um suave perfume de mostarda e que poderia conseguir uns slides do balé
onde Helga dançou a Pedra de Roseta e executou os impossíveis
dégagez.
Na hora pensei que o sujeito havia fumado demais e que estava delirando.
Mas não fiz nenhum comentário. Fiquei em silêncio ouvindo
as batidas do meu coração, ali, envolvido pelo cheiro de
papel da Armênia característico do haxixe, dentro da sala
sombreada pelo abajur em forma de cogumelo, imaginando a textura do som
da voz de Helga chamando meu nome no diminutivo.
É verdade que algumas mulheres são pálidas e que outras
usam batom vermelho-vivo. Helga era as duas coisas: uma mulher pálida
com os lábios pintados de vermelho-vivo. Deitada no caixão
ela estava assim. Talvez ela estivesse um pouco mais pálida por
causa da morte e isso deixava mais vivo ainda o vermelho do batom que lhe
cobria os lábios enrijecidos.
Fiquei um bom tempo olhando para o cadáver de Helga. As pessoas
acharam estranho. Não entenderam o meu comportamento e eu também
nada expliquei. Apenas fiquei ali de pé ao lado do caixão
olhando fixamente para Helga. Seu rosto oval lívido. O nariz retilíneo
com os dois algodãozinhos nas narinas, os grandes olhos redondos
irremediavelmente fechados, a boca carnuda pintada de vermelho-vivo como
uma última luxúria, os grandes olhos verdes – que nunca me
viram -, fechados como uma frase negativa, as pálpebras pintadas
de azul metalizado, a fronte para sempre muda e, por alguns segundos, entrei
naquela claridade fria da morte e foi como se Helga sempre estivesse comigo.
Há uma foto com Helga sorrindo. Um instantâneo já meio
amarelado com Helga se divertindo numa festa. Suas saias estavam ainda
erguidas, flutuantes, por causa do último giro da dança;
mantinha as mãos firmemente apoiadas nos quadris e olhava risonha,
com o pescoço estirado para um lado; no entanto não se podia
ver para quem estava rindo. Sei que os olhos dela eram esverdeados, mas
na foto em que ela está sorrindo (um sorriso melancólico,
mais assustado do que feliz) os olhos estão vermelhos pela superexposição
do flasch.
Foi numa tarde abafada de julho que descobri que os olhos de Helga eram
esverdeados. Natália havia pegado uma caixa de sapatos cheia de
pequenas coisas que foram de Helga. Ali havia conchinhas nacaradas do mar
de Java, embalagens de bombons e de chocolates brancos, sementes desconhecidas
de estranha coloração, penas multicoloridas de pássaros
pequenos, vidrinhos vazios de perfumes caros, bonitas e estranhas miniaturas
de bonecas Karaja, moedas antigas do centenário da República,
bolinhas de gude, pedras de rio, um olho de boi, um ás de copas,
dados azuis, bilhetes de trem, um cachimbinho colombiano de cerâmica
e a fotografia com Helga sorrindo com os olhos vermelhos pela superexposição
do flash. “Eram esverdeados”, sussurrou Natália passando-me a foto
sem que eu nada perguntasse.
A verdade é que eu estava absorvido demais nas coisas que saíam
da caixa para pensar em perguntas. Aquela caixa de sapatos era para mim
um tesouro encantado. Cada objeto que saía de dentro dela era uma
iluminação, um pedaço de luz impregnado da vida de
Helga. Através daquelas coisas eu me aproximava mais da luminosidade
que envolvia Helga.
Tento e não consigo roubar o brinquinho de safira. Cínica,
Natália diz: “Não existe nenhum chá de ervas que possa
curar isso aí! É Engel. Helga gostava de dizer isso em alemão:
‘Dagegen ist einmal kein krant gewachen’! A voz dela enrouquecia, a pronúncia
era horrível, a gente ria tanto!...”, e devolvo os brinquinhos para
a caixa de sapatos.
Claro que Natália nunca entenderá o que sinto por Helga.
“É um absurdo se apaixonar por um cadáver, por alguém
que você conheceu morta, dentro do caixão!”, ela diz num tom
amargo, antes de fechar a porta.
Mas não me preocupo com Natália e sei que ela nem desconfia
que fiquei com o que havia de mais valioso na caixa de sapatos: uma gota
amarronzada do Givenchy. Com ela consigo recompor a brisa, a temperatura,
o sabor da presença de Helga. Com essa simples gotinha de perfume
transformo Helga em um estado de alma, uma espécie de fôlego
interno e ela fica quase palpável quando aproximo o nariz do punho
de minha camisa e aspiro lentamente a fragrância adocicada, o
mesmo aroma limpo que exalava da pele de Helga quando a vi pela primeira
e última vez morta dentro do caixão.
Quinta-feira marquei um encontro com uma tal de Gerusa. Não sei
quem ela é e nem como conseguiu o número do bip. Simplesmente
eu estava ali na sala ouvindo a fita que gravei quando fui visitar o apartamento
onde Helga viveu sua última semana quando o bip tocou. Li a mensagem:
“É você que me faz morrer meu amor minha linda. Gerusa. As
nove no A Bela Aurora”.
Conheço o lugar e a letra da canção. Era a preferida
de Helga. Em seu belo sobrado com sacadas para o mar Edmea Tetua, a cantora
lírica italiana, mostrou-me a fita cromo onde está gravada
a voz de Helga cantando os versos da canção. “É um
milagre: ela parte de um lá natural, subindo até o mi bemol
ao mi natural e depois ao fá superagudo. Uma extensão de
três oitavas. A voz se desenvolve em espirais!”, diz Edmea extasiada
e eu fecho os olhos e imagino um caracol marinho deslizando no fundo do
oceano, a voz líquida de Helga se expandindo como uma imensa onda
de cristal, se dissolvendo nas espumas brancas da areia fina do mar que
se estende logo abaixo da sacada do sobrado.
Exatamente as nove horas (a mesma hora da morte de Helga) Gerusa chega
no A Bela Aurora. Estou sentado na mesa perto das janelas com persianas,
defronte ao copo cheio de Beaujolais tinto, com os fones de ouvido, ouvindo
os espaços vazios do último lugar onde Helga viveu:
ruídos de água correndo na pia, do vento nas cortinas, do
miado de Clarice, o zumbido do motor da geladeira, o mi-ré-mi-si-ré-dó-lá
de Para Elisa da caixinha de música, a respiração
abafada do silêncio de Helga pulsando dentro de meus tímpanos.
Eu apenas havia ligado o gravador enquanto passeava pelo apartamento e
fui registrando esses sons. Faço isso em todos os lugares onde Helga
esteve e viveu. Registro esses sons e depois os ouço numa atenção
flutuante, absorto, com os sentidos relaxados, a cabeça vazia e
eles me trazem a presença de Helga, provocam em mim um estado de
alheamento igual a um sonho onde só existimos eu, Helga e os sons
de sua ausência.
Gerusa parece nervosa. Usa uma blusa de linho fino, de corte quase masculino,
e uns brincos pesados em forma de pirâmides que lhe repuxam os lóbulos
da orelha. Sem saber exatamente como eu a identifiquei antes mesmo dela
se aproximar da mesa. Seu tipo físico chama atenção.
Há nela, em sua composição genética, uma mistura
estranha de índio, negro e árabe. Sua pele é de um
marrom acetinado e seus cabelos grossos, cortados a la garçonne,
brilham num azul fosco. Ela tem uma fala entrecortada e se engasga várias
vezes com a própria saliva. Diz que Helga sofria muito mas não
define que espécie de sofrimento torturava Helga. Confessa que ela
e Helga foram íntimas durante quase um ano. Um dia Helga mandou
tudo a merda e Gerusa pirou. Não acreditou que a coisa toda estava
mesmo acontecendo e tentou suicídio tomando vinte caixas de Lexotan.
Foi a própria Helga quem ligou para a emergência e quem pagou
as despesas da lavagem estomacal e do quarto particular na clínica
de recuperação. Depois disso não se viram mais.
Ouço tudo calado. Deixo Gerusa desabafar. Depois vamos andando em
silêncio até a Galeria Villedo. Na entrada da galeria nos
despedimos. Ela diz que fazer compras a acalma e que na casa de praia em
Ilha Grande, defronte a Angra dos Reis, elas passavam as madrugadas jogando
besigue e que, no quintal da ilha, Helga costumava enterrar bonecas em
latas vazias, de biscoito, e sete dias depois, chorava na exumação
dos corpos mofados e úmidos e eu sigo sozinho, tentando colocar
as coisas em ordem dentro da cabeça.
Há essa fixação de Helga por gatos, seu gosto por
pedras semipreciosas, o conhecimento invejável que ela possuía
sobre política internacional, a atracão irresistível
pela cor violeta, o medo infantil das sombras, as tardes de sexta-feira
e a coleção de lascas de dentes. Tudo no lugar, redondo,
perfeito demais para não estar faltando nada. Ainda não esqueci
o que me disse o porteiro do prédio: “A dona Helga sempre me oferecia
jujubas!”, foi o que ele me disse sorrindo com toda a arcada dentária.
E, talvez, seja esse fato paradoxal que esteja faltando. Não sei.
A verdade é que Helga nunca deixou ninguém saber de suas
viagens de trem. Só descobri por pura sorte, numa associação
relâmpago, quando vi os bilhetes verdes de trem na caixa de sapatos.
Para onde ia Helga nessas viagens de trem é impossível de
se descobrir. Sei apenas que toda tarde de sexta-feira ela desaparecia.
Na estação ferroviária ninguém se lembrava
dela.
Cheguei a fazer todo o trajeto do trem numa sexta-feira a tarde. Peguei
o trem das quatro e quinze e parei em todas as estações.
Gravei todos os sons no meu gravador e voltei para casa cansado e deprimido.
Durante a viagem, olhando a paisagem exuberante da serra, eu imaginava
Helga ao meu lado apontando as cachoeiras, dizendo-me os nomes das árvores,
querendo o pacote de biscoito de polvilho que o menino vendia pelos corredores
dos vagões, ela sorrindo com a ponta do nariz vermelha por causa
do frio da serra, suas mãozinhas dentro de minha blusa. Tudo acontecendo
naquela cadência binária de ferro e árvores com folhagens
prateadas pelo outono passando por detrás da janela e o sol se pondo
naquele clarão calmo, ela respirando neblina e pôr-do-sol,
me beijando dentro do túnel e a gente se distanciando.
Lembro também do sonho que tive depois da viagem de trem: Estou
numa cabine telefônica tentando desesperadamente ligar para Helga,
mas o som estridente de um sino interrompe minha ligação.
Há um guarda gorducho de aspecto cômico que me adverte por
eu estar sem camisas e uma neblina verde, diáfana, como se fosse
os olhos de Helga, envolve tudo e a todos com uma claridade sufocante.
Quando acordei uma frase do sonho continuou martelando em minha cabeça
por muito tempo: “A ausência seduz a presença”. Não
sei quem me dizia essa frase no sonho, só sei que ela me entristeceu
amargamente.
É verdade que todos os caras que conversei e que tiveram a oportunidade
de passar algumas horas com Helga ou mesmo de possuí-la afirmaram
que Helga não passava de uma maníaca-depressiva, uma autista
sem sentimentos, uma estátua de gelo. Todavia, todos se comoveram
desesperadamente ao recordarem os pés delicados de Helga, suas mãos
finas de concertista, seus cabelos sempre cheirando a algas marinhas, a
sua pele macia, o estranho aroma de mostarda de depois do banho, suas coxas
de penugens douradas, as unhas sempre pintadas de azul, a tatuagem pornográfica
no bico do seio esquerdo, a pinta em forma de folha de loro no calcanhar,
a covinha impossível no canto dos lábios, os caninos levemente
salientes. Um dos caras comparou os olhos esverdeados de Helga ao absinto.
Ele disse: “O absinto é um afrodisíaco da alma. A fada verde
que vive no absinto quer a sua alma!”
Apesar de tudo, não acredito que Helga tenha se entregado por inteira
a alguém. Só a mim ela pôde se dar completamente. Eu
que a conheci morta, liberta do peso de existir, submersa para sempre no
infinito sono do futuro, só assim, livre do Tempo, do Absurdo e
do Mundo, e até mesmo de mim que ela nunca viu, ela pôde se
entregar aberta e eternamente. Somos um só porque nunca existimos
uma para o outro. Nada nos aprisiona. Acredito nisso.
Mas não me perco em fantasias É preciso ter método,
paciência e decisão. Estou certo disso. O bilhete cor de rosa
que encontrei debaixo da porta do apartamento na terça-feira é
uma prova disso. Ele revela o quanto de falsidade e cinismo pode existir
por detrás do ar meigo e angelical de uma pessoa como Matilde. Sei
que foi ela quem escreveu o bilhete porque reconheci o coração
que ela usa para pôr os pingos nos is. No bilhete ela escreveu :
“Venha me ver!”, e, em letra miúda, “A morte é amarelo-limão
com cheiro de baunilha”.
É verdade que Matilde conseguiu me enganar durante a conversa que
tivemos em frente ao salão Isidore. Por um momento cheguei mesmo
a crer que ela fosse capaz de me ajudar. Mas descobri logo que tudo não
passava de uma farsa. Helga nunca tingiu os cabelos de vermelho e nem tampouco
fez o cruzeiro pelo Báltico. O prospecto com o roteiro da viagem
que começava pela Noruega e depois seguia por Oslo, Leningrado,
Helsinque, Estocolmo e Copenhague a bordo do M/S Mermoz, que Matilde jogou-me
no rosto, é a prova irrefutável do grande circo que ela tentou
montar comigo.
O que não consigo entender, no entanto, é essa volumosa correspondência
que Helga mantinha com Matilde. Pelo que sei são 241 cartas de Helga
endereçadas a Matilde. É estranho. Quando vi o bilhete cor
de rosa debaixo da porta do apartamento logo pensei que Matilde finalmente
havia concordado em me mostrar as cartas. Grande ilusão. Ela só
estava me testando. Colocando meus nervos a prova. Vendo até onde
eu seria capaz de ir.
Pude perceber toda a jogada de Matilde pelo beijo que ela me deu assim
que cheguei em frente ao Salão Isidore. “Como se fosse de Helga!”,
ela falou depois de me beijar. Tentei sorrir mas o gosto pastoso do batom
me embrulhou o estômago. Matilde notou minha repulsa e se fez de
inocente. Assumiu aquele ar cândido de anjo barroco e sorriu para
mim seus dentes brancos. Mas foi só quando eu disse que Helga nunca
me beijaria daquela maneira que Matilde revelou-se por inteira.
O fato dela ter mentido sobre o cruzeiro e ter me humilhado em público
ao me jogar o prospecto na cara só confirma a minha suspeita: ao
contrário do que Matilde queria me fazer acreditar, por uma razão
que ainda desconheço, Helga era na verdade canhota. Matilde saiu
do sério exatamente por isso. Ela fez de tudo para que eu acreditasse
que Helga era ambidestra. Daí a estória da correspondência.
Mas quando perguntei sobre as 214 cartas ela perdeu completamente o rebolado.
É pensando no olhar de nojo do olhar de Helga ao se deparar com
a sordidez humana que entro no MT. Shasta. Helga freqüentava o bar
por que adorava o contrabaixista. Pergunto pelo cara e a loira oxigenada
que está dando cerveja para o puddon que ela tem nos braços
- que são brancos como duas estalactites congeladas -, responde
que o contrabaixista entrou numa errada, que os policiais o pegaram com
os bolsos cheios de amendoins. Digo apenas um “sei” sem entonação
e volto para o apartamento vazio.
Adormeço com o nariz grudado na manga da camisa, sentindo o corpo
de Helga me esquentando por dentro, aquecendo meu sono como um leite
quente debaixo dos cobertores. Sussurro o nome de Helga três vezes
antes de adormecer e as quatro e trinta e três o telefone toca. Uma
voz nicotinada, nasal, marcadamente afeminada, talvez um travesti, diz
que Helga não iria gostar de ver sua vida vasculhada como um saco
de lixo por cães famintos. Respondo que está amanhecendo
e que preciso dormir um pouco e a ligação cai.
Acordo uma três horas depois com os olhos ardendo e as mãos
trêmulas. Tomo banho, faço a barba, bebo um suco, me visto
e saio com os olhos ainda ardendo, vermelhos, por detrás dos óculos
escuros. Em frente a entrada do prédio, dentro do Tempra prateado,
a mulher de óculos escuros me faz um sinal. Não a conheço
mas acho seu rosto familiar quando me debruço na janela do carro
e encaro as lentes escuras dos óculos dela. “Já nos vimos
antes?”, pergunto com um sorriso falso. Ela me manda subir,
engata uma segunda e sai rodando macio.
Fica uns quinze minutos dirigindo em silêncio. Depois começa
a falar pausadamente que Helga freqüentava a casa de madame Zora e
que seria mais prudente de minha parte deixar tudo como estava, que não
valia a pena mexer com a vida dos mortos. “Helga era uma pisciana pura.
Madame Zora fazia-lhe o mapa astral a cada três meses. Já
estava tudo previsto”, ela diz numa voz rouca, anasalada, exatamente
a voz que ouvi as quatro e meia da madrugada. Por uma razão que
não pode perceber completamente ela mostrou-me a palma da mão
e sorriu.
Não acredito em nada. Nunca acreditei. Mas não digo isso
a ela. Meu interesse por Helga me transformou num sujeito cauteloso com
as palavras e num ouvinte atento e não deixo escapar quando ela
diz que os lírios, os cravos e as violetas eram as flores prediletas
de Helga. “Ela estava sempre sonhando com elas”, a mulher de óculos
escuros diz estacionando o Tempra prateado no calçadão. Antes
de descer do carro pergunto se ela sabe porque Helga nunca saía
de casa antes das três horas da tarde e ela me dá um sorriso
malicioso como resposta.
Sigo a pé pela orla imaginando o que Helga faria se estivesse viva
nesse final de manhã de céu branco, oceano extenso e ruas
quase vazias. Pulo para a areia. Tiro os sapatos, dobro a barra da calça
e sigo pela beirada da água pensando que talvez Helga fosse nadar
numa manhã assim. Posso vê-la nua mergulhando nas ondas. Dizendo
que a água está morna. Os olhos esverdeados brilhando, levemente
avermelhados por causa do sal. A pele branca se destacando na imensidão.
Ela sorrindo ao dizer que a espuma faz cosquinhas no nariz. Feliz por ter
achado uma concha vermelha lá no fundo. Depois, cansada, ela se
deita como uma estrela na superfície das águas e se deixa
levar pela correnteza, o corpo nu a deriva.
Mas acabo sorrindo dessa minha fantasia. Helga não era assim. Helga
nunca saía de casa antes das três da tarde e, pela cor pálida,
ela também nunca tomava o sol da manhã do mar.
Vejo as gaivotas que estão na beira da água voarem assustadas
e serem absorvidas pela claridade do céu. Tento não lutar
contra a tristeza. Tento estupidamente não me deixar dominar pela
consciência avassaladora que se apodera de mim, mas é inútil.
Existimos, eu e Helga, como um só. Sou para ela esse sopro do fim
da manhã. Ela é essa morte que carrego dentro dos olhos e
tudo ainda está por fazer.
Jorge Mendes
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