HELGA
              Quando conheci Helga ela já estava morta.
            O cara de olhos fundos tem a pele macerada de drogado e quando ele ri eu lembro de cachorros mortos. Tenho certeza que ele sabe muito mais do que aparenta saber. Numa conversa flutuante que tivemos dois dias atrás ele contou que Helga adorava folhear revistas de modas nas manhãs de segunda-feira. “Aquilo parecia um sonho! Ela deitava-se ali na berger e a luz branca da manhã ficava pulsando em volta dela! Clarice, a sua persa de pêlos vermelhos e olhos cor de mel, aconchegava-se bem em cima de seu ventre e ficavam as duas, mulher e gata, submersas na claridade. Era uma pintura em moldura luminosa. Um Mondrian da melhor qualidade!”, diz o cara. Ele também revela que, ao sair do banho, Helga exalava um suave perfume de mostarda e que poderia conseguir uns slides do balé onde Helga dançou a Pedra de Roseta e executou os impossíveis dégagez.
            Na hora  pensei que o sujeito havia fumado demais e que estava delirando. Mas não fiz nenhum comentário. Fiquei em silêncio ouvindo as batidas do meu coração, ali, envolvido pelo cheiro de papel da Armênia característico do haxixe, dentro da sala sombreada pelo abajur em forma de cogumelo, imaginando a textura do som da voz de Helga chamando meu nome no diminutivo.
            É verdade que algumas mulheres são pálidas e que outras usam batom vermelho-vivo. Helga era as duas coisas: uma mulher pálida com os lábios pintados de vermelho-vivo. Deitada no caixão ela estava assim. Talvez ela estivesse um pouco mais pálida por causa da morte e isso deixava mais vivo ainda o vermelho do batom que lhe cobria os lábios enrijecidos.
            Fiquei um bom tempo olhando para o cadáver de Helga. As pessoas acharam estranho. Não entenderam o meu comportamento e eu também nada expliquei. Apenas fiquei ali de pé ao lado do caixão olhando fixamente para Helga. Seu rosto oval lívido. O nariz retilíneo com os dois algodãozinhos nas narinas, os grandes olhos redondos irremediavelmente fechados, a boca carnuda pintada de vermelho-vivo como uma última luxúria, os grandes olhos verdes – que nunca me viram -, fechados como uma frase negativa, as pálpebras pintadas de azul metalizado, a fronte para sempre muda e, por alguns segundos, entrei naquela claridade fria da morte e foi como se Helga sempre estivesse comigo.
            Há uma foto com Helga sorrindo. Um instantâneo já meio amarelado com Helga se divertindo numa festa. Suas saias estavam ainda erguidas, flutuantes, por causa do último giro da dança; mantinha as mãos firmemente apoiadas nos quadris e olhava risonha, com o pescoço estirado para um lado; no entanto não se podia ver para quem estava rindo. Sei que os olhos dela eram esverdeados, mas na foto em que ela está sorrindo (um sorriso melancólico, mais assustado do que feliz) os olhos estão vermelhos pela superexposição do flasch.
            Foi numa tarde abafada de julho que descobri que os olhos de Helga eram esverdeados. Natália havia pegado uma caixa de sapatos cheia de pequenas coisas que foram de Helga. Ali havia conchinhas nacaradas do mar de Java, embalagens de bombons e de chocolates brancos, sementes desconhecidas de estranha coloração, penas multicoloridas de pássaros pequenos, vidrinhos vazios de perfumes caros, bonitas e estranhas miniaturas de bonecas Karaja, moedas antigas do centenário da República, bolinhas de gude, pedras de rio, um olho de boi, um ás de copas, dados azuis, bilhetes de trem, um cachimbinho colombiano de cerâmica e a fotografia com Helga sorrindo com os olhos vermelhos pela superexposição do flash. “Eram esverdeados”, sussurrou Natália passando-me a foto sem que eu nada perguntasse.
            A verdade é que eu estava absorvido demais nas coisas que saíam da caixa para pensar em perguntas. Aquela caixa de sapatos era para mim um tesouro encantado. Cada objeto que saía de dentro dela era uma iluminação, um pedaço de luz impregnado da vida de Helga. Através daquelas coisas  eu me aproximava mais da luminosidade que envolvia  Helga.
            Tento e não consigo roubar o brinquinho de safira. Cínica, Natália diz: “Não existe nenhum chá de ervas que possa curar isso aí! É Engel. Helga gostava de dizer isso em alemão: ‘Dagegen ist einmal kein krant gewachen’! A voz dela enrouquecia, a pronúncia era horrível, a gente ria tanto!...”, e devolvo os brinquinhos para a caixa de sapatos.
            Claro que Natália nunca entenderá o que sinto por Helga. “É um absurdo se apaixonar por um cadáver, por alguém que você conheceu morta, dentro do caixão!”, ela diz num tom amargo, antes de fechar a porta.
            Mas não me preocupo com Natália e sei que ela nem desconfia que fiquei com o que havia de mais valioso na caixa de sapatos: uma gota amarronzada do Givenchy. Com ela consigo recompor a brisa, a temperatura, o sabor da presença de Helga. Com essa simples gotinha de perfume transformo Helga em um estado de alma, uma espécie de fôlego interno e ela fica quase palpável quando aproximo o nariz do punho de minha camisa e aspiro lentamente a fragrância adocicada, o  mesmo aroma limpo que exalava da pele de Helga quando a vi pela primeira e última vez morta dentro do caixão.
            Quinta-feira marquei um encontro com uma tal de Gerusa. Não sei quem ela é e nem como conseguiu o número do bip. Simplesmente eu estava ali na sala ouvindo a fita que gravei quando fui visitar o apartamento onde Helga viveu sua última semana quando o bip tocou. Li a mensagem: “É você que me faz morrer meu amor minha linda. Gerusa. As nove no A Bela Aurora”.
            Conheço o lugar e a letra da canção. Era a preferida de Helga. Em seu belo sobrado com sacadas para o mar Edmea Tetua, a cantora lírica italiana, mostrou-me a fita cromo onde está gravada a voz de Helga cantando os versos da canção. “É um milagre: ela parte de um lá natural, subindo até o mi bemol ao mi natural e depois ao fá superagudo. Uma extensão de três oitavas. A voz se desenvolve em espirais!”, diz Edmea extasiada e eu fecho os olhos e imagino um caracol marinho deslizando no fundo do oceano, a voz líquida de Helga se expandindo como uma imensa onda de cristal, se dissolvendo nas espumas brancas da areia fina do mar que se estende logo abaixo da sacada do sobrado.
            Exatamente as nove horas (a mesma hora da morte de Helga) Gerusa chega no A Bela Aurora.  Estou sentado na mesa perto das janelas com persianas, defronte ao copo cheio de Beaujolais tinto, com os fones de ouvido, ouvindo os espaços vazios do último lugar onde Helga viveu:  ruídos de água correndo na pia, do vento nas cortinas, do miado de Clarice, o zumbido do motor da geladeira, o mi-ré-mi-si-ré-dó-lá de Para Elisa da caixinha de música, a respiração abafada do silêncio de Helga pulsando dentro de meus tímpanos.
            Eu apenas havia ligado o gravador enquanto passeava pelo apartamento e fui registrando esses sons. Faço isso em todos os lugares onde Helga esteve e viveu. Registro esses sons e depois os ouço numa atenção flutuante, absorto, com os sentidos relaxados, a cabeça vazia e eles me trazem a presença de Helga, provocam em mim um estado de alheamento igual a um sonho onde só existimos eu, Helga e os sons de sua ausência.
            Gerusa parece nervosa. Usa uma blusa de linho fino, de corte quase masculino, e uns brincos pesados em forma de pirâmides que lhe repuxam os lóbulos da orelha. Sem saber exatamente como eu a identifiquei antes mesmo dela se aproximar da mesa. Seu tipo físico chama atenção. Há nela, em sua composição genética, uma mistura estranha de índio, negro e árabe. Sua pele é de um marrom acetinado e seus cabelos grossos, cortados a la garçonne, brilham num azul fosco. Ela tem uma fala entrecortada e se engasga várias vezes com a própria saliva. Diz que Helga sofria muito mas não define que espécie de sofrimento torturava Helga. Confessa que ela e Helga foram íntimas durante quase um ano. Um dia Helga mandou tudo a merda e Gerusa pirou. Não acreditou que a coisa toda estava mesmo acontecendo e tentou suicídio tomando vinte caixas de Lexotan. Foi a própria Helga quem ligou para a emergência e quem pagou as despesas da lavagem estomacal e do quarto particular na clínica de recuperação. Depois disso não se viram mais.
            Ouço tudo calado. Deixo Gerusa desabafar. Depois vamos andando em silêncio até a Galeria Villedo. Na entrada da galeria nos despedimos. Ela diz que fazer compras a acalma e que na casa de praia em Ilha Grande, defronte a Angra dos Reis, elas passavam as madrugadas jogando besigue e que, no quintal da ilha, Helga costumava enterrar bonecas em latas vazias, de biscoito, e sete dias depois, chorava na exumação dos corpos mofados e úmidos e eu sigo sozinho, tentando colocar as coisas em ordem dentro da cabeça.
            Há essa fixação de Helga por gatos, seu gosto por pedras semipreciosas, o conhecimento invejável que ela possuía sobre política internacional, a atracão irresistível pela cor violeta, o medo infantil das sombras, as tardes de sexta-feira e a coleção de lascas de dentes. Tudo no lugar, redondo, perfeito demais para não estar faltando nada. Ainda não esqueci o que me disse o porteiro do prédio: “A dona Helga sempre me oferecia jujubas!”, foi o que ele me disse sorrindo com toda a arcada dentária. E, talvez, seja esse fato paradoxal que esteja faltando. Não sei.
            A verdade é que Helga nunca deixou ninguém saber de suas viagens de trem. Só descobri por pura sorte, numa associação relâmpago, quando vi os bilhetes verdes de trem na caixa de sapatos.
            Para onde ia Helga nessas viagens de trem é impossível de se descobrir. Sei apenas que toda tarde de sexta-feira ela desaparecia. Na estação ferroviária ninguém se lembrava dela.
Cheguei a fazer todo o trajeto do trem numa sexta-feira a tarde. Peguei o trem das quatro e quinze e parei em todas as estações. Gravei todos os sons no meu gravador e voltei para casa cansado e deprimido.
            Durante a viagem, olhando a paisagem exuberante da serra, eu imaginava Helga ao meu lado apontando as cachoeiras, dizendo-me os nomes das árvores, querendo o pacote de biscoito de polvilho que o menino vendia pelos corredores dos vagões, ela sorrindo com a ponta do nariz vermelha por causa do frio da serra, suas mãozinhas dentro de minha blusa. Tudo acontecendo naquela cadência binária de ferro e árvores com folhagens prateadas pelo outono passando por detrás da janela e o sol se pondo naquele clarão calmo, ela respirando neblina e pôr-do-sol, me beijando dentro do túnel e a gente se distanciando.
            Lembro também do sonho que tive depois da viagem de trem: Estou numa cabine telefônica tentando desesperadamente ligar para Helga, mas o som estridente de um sino interrompe minha ligação. Há um guarda gorducho de aspecto cômico que me adverte por eu estar sem camisas e uma neblina verde, diáfana, como se fosse os olhos de Helga, envolve tudo e a todos com uma claridade sufocante. Quando acordei uma frase do sonho continuou martelando em minha cabeça por muito tempo: “A ausência seduz a presença”. Não sei quem me dizia essa frase no sonho, só sei que ela me entristeceu amargamente.
            É verdade que todos os caras que conversei e que tiveram a oportunidade de passar algumas horas com Helga ou mesmo de possuí-la afirmaram que Helga não passava de uma maníaca-depressiva, uma autista sem sentimentos, uma estátua de gelo. Todavia, todos se comoveram desesperadamente ao recordarem os pés delicados de Helga, suas mãos finas de concertista, seus cabelos sempre cheirando a algas marinhas, a sua pele macia, o estranho aroma de mostarda de depois do banho, suas coxas de penugens douradas, as unhas sempre pintadas de azul, a tatuagem pornográfica no bico do seio esquerdo, a pinta em forma de folha de loro no calcanhar, a covinha impossível no canto dos lábios, os caninos levemente salientes. Um dos caras comparou os olhos esverdeados de Helga ao absinto. Ele disse: “O absinto é um afrodisíaco da alma. A fada verde que vive no absinto quer a sua alma!”
            Apesar de tudo, não acredito que Helga tenha se entregado por inteira a alguém. Só a mim ela pôde se dar completamente. Eu que a conheci morta, liberta do peso de existir, submersa para sempre no infinito sono do futuro, só assim, livre do Tempo, do Absurdo e do Mundo, e até mesmo de mim que ela nunca viu, ela pôde se entregar aberta e eternamente. Somos um só porque nunca existimos uma para o outro. Nada nos aprisiona. Acredito nisso.
            Mas não me perco em fantasias É preciso ter método, paciência e decisão. Estou certo disso. O bilhete cor de rosa que encontrei debaixo da porta do apartamento na terça-feira é uma prova disso. Ele revela o quanto de falsidade e cinismo pode existir por detrás do ar meigo e angelical de uma pessoa como Matilde. Sei que foi ela quem escreveu o bilhete porque reconheci o coração que ela usa para pôr os pingos nos is. No bilhete ela escreveu : “Venha me ver!”, e, em letra miúda, “A morte é amarelo-limão com cheiro de baunilha”.
            É verdade que Matilde conseguiu me enganar durante a conversa que tivemos em frente ao salão Isidore. Por um momento cheguei mesmo a crer que ela fosse capaz de me ajudar. Mas descobri logo que tudo não passava de uma farsa. Helga nunca tingiu os cabelos de vermelho e nem tampouco fez o cruzeiro pelo Báltico. O prospecto com o roteiro da viagem que começava pela Noruega e depois seguia por Oslo, Leningrado, Helsinque, Estocolmo e Copenhague a bordo do M/S Mermoz, que Matilde jogou-me no rosto, é a prova irrefutável do grande circo que ela tentou montar comigo.
            O que não consigo entender, no entanto, é essa volumosa correspondência que Helga mantinha com Matilde. Pelo que sei são 241 cartas de Helga endereçadas a Matilde. É estranho. Quando vi o bilhete cor de rosa debaixo da porta do apartamento logo pensei que Matilde finalmente havia concordado em me mostrar as cartas. Grande ilusão. Ela só estava me testando. Colocando meus nervos a prova. Vendo até onde eu seria capaz de ir.
            Pude perceber toda a jogada de Matilde pelo beijo que ela me deu assim que cheguei em frente ao Salão Isidore. “Como se fosse de Helga!”, ela falou depois de me beijar. Tentei sorrir mas o gosto pastoso do batom me embrulhou o estômago. Matilde notou minha repulsa e se fez de inocente. Assumiu aquele ar cândido de anjo barroco e sorriu para mim seus dentes brancos. Mas foi só quando eu disse que Helga nunca me beijaria daquela maneira que Matilde revelou-se por inteira.
            O fato dela ter mentido sobre o cruzeiro e ter me humilhado em público ao me jogar o prospecto na cara só confirma a minha suspeita: ao contrário do que Matilde queria me fazer acreditar, por uma razão que ainda desconheço, Helga era na verdade canhota. Matilde saiu do sério exatamente por isso. Ela fez de tudo para que eu acreditasse que Helga era ambidestra. Daí a estória da correspondência. Mas quando perguntei sobre as 214 cartas ela perdeu completamente o rebolado.
            É pensando no olhar de nojo do olhar de Helga ao se deparar com a sordidez humana que entro no MT. Shasta. Helga freqüentava o bar por que adorava o contrabaixista. Pergunto pelo cara e a loira oxigenada que está dando cerveja para o puddon que ela tem nos braços - que são brancos como duas estalactites congeladas -, responde que o contrabaixista entrou numa errada, que os policiais o pegaram com os bolsos cheios de amendoins. Digo apenas um “sei” sem entonação e volto para o apartamento vazio.
             Adormeço com o nariz grudado na manga da camisa, sentindo o corpo de  Helga me esquentando por dentro, aquecendo meu sono como um leite quente debaixo dos cobertores. Sussurro o nome de Helga três vezes antes de adormecer e as quatro e trinta e três o telefone toca. Uma voz nicotinada, nasal, marcadamente afeminada, talvez um travesti, diz que Helga não iria gostar de ver sua vida vasculhada como um saco de lixo por cães famintos. Respondo que está amanhecendo e que preciso dormir um pouco e a ligação cai.
            Acordo uma três horas depois com os olhos ardendo e as mãos trêmulas. Tomo banho, faço a barba, bebo um suco, me visto e saio com os olhos ainda ardendo, vermelhos, por detrás dos óculos escuros. Em frente a entrada do prédio, dentro do Tempra prateado, a mulher de óculos escuros me faz um sinal. Não a conheço mas acho seu rosto familiar quando me debruço na janela do carro e encaro as lentes escuras dos óculos dela. “Já nos vimos antes?”, pergunto com um sorriso falso.   Ela me manda subir, engata uma segunda e sai rodando macio.
            Fica uns quinze minutos dirigindo em silêncio. Depois começa a falar pausadamente que Helga freqüentava a casa de madame Zora e que seria mais prudente de minha parte deixar tudo como estava, que não valia a pena mexer com a vida dos mortos. “Helga era uma pisciana pura. Madame Zora fazia-lhe o mapa astral a cada três meses. Já estava tudo previsto”,  ela diz numa voz rouca, anasalada, exatamente a voz que ouvi as quatro e meia da madrugada. Por uma razão que não pode perceber completamente ela mostrou-me a palma da mão e sorriu.
            Não acredito em nada. Nunca acreditei. Mas não digo isso a ela. Meu interesse por Helga me transformou num sujeito cauteloso com as palavras e num ouvinte atento e não deixo escapar quando ela diz que os lírios, os cravos e as violetas eram as flores prediletas de Helga. “Ela estava sempre sonhando com elas”, a mulher de óculos escuros diz estacionando o Tempra prateado no calçadão. Antes de descer do carro pergunto se ela sabe porque Helga nunca saía de casa antes das três horas da tarde e ela me dá um sorriso malicioso como resposta.
            Sigo a pé pela orla imaginando o que Helga faria se estivesse viva nesse final de manhã de céu branco, oceano extenso e ruas quase vazias. Pulo para a areia. Tiro os sapatos, dobro a barra da calça e sigo pela beirada da água pensando que talvez Helga fosse nadar numa manhã assim. Posso vê-la nua mergulhando nas ondas. Dizendo que a água está morna. Os olhos esverdeados brilhando, levemente avermelhados por causa do sal. A pele branca se destacando na imensidão. Ela sorrindo ao dizer que a espuma faz cosquinhas no nariz. Feliz por ter achado uma concha vermelha lá no fundo. Depois, cansada, ela se deita como uma estrela na superfície das águas e se deixa levar pela correnteza, o corpo nu a deriva.
            Mas acabo sorrindo dessa minha fantasia. Helga não era assim. Helga nunca saía de casa antes das três da tarde e, pela cor pálida, ela também nunca tomava o sol da manhã do mar.
            Vejo as gaivotas que estão na beira da água voarem assustadas e serem absorvidas pela claridade do céu. Tento não lutar contra a tristeza. Tento estupidamente não me deixar dominar pela consciência avassaladora que se apodera de mim, mas é inútil. Existimos, eu e Helga, como um só. Sou para ela esse sopro do fim da manhã. Ela é essa morte que carrego dentro dos olhos e tudo ainda está por fazer. 

Jorge Mendes

 

 

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